Nara Franco é jornalista
Nara Franco , Brasília |
17/06/2025 às 12:26
Arnaldo Barbosa e Nara Franco
Foto: DIV
Em meio à Festa Junina do Guará — meu bairro aqui de Brasília —, algo me chamou atenção: um pequeno livro de capa laranja exposto sobre uma mesa, ao lado da foto ampliada de um senhor repleta de dedicatórias. Pensei se tratar de uma homenagem póstuma. Até que um homem de uns 60 anos, cabelos brancos e bigode, se aproximou de mim e começou a contar a história do retratado.
Pausa rápida para falar da festa: super organizada, com quentão, canjica, pamonha, caldos e muito forró. O tema da noite era a mulher nordestina. Aproveitei que o arrasta-pé ainda não tinha começado para investigar o mistério do livro.
Descobri que a obra foi escrita por Arnaldo Júlio Barbosa, o senhor da foto, e que o livro — um cordel intitulado A Jovem Margarida e as Proezas do Amor — foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria Escritor Estreante de Poesia. O mais surpreendente? Arnaldo está vivíssimo, aos inacreditáveis 107 anos!
Mais do que um escritor tardio, Arnaldo é também personagem vivo da história de Brasília. Deixou o sertão do Rio Grande do Norte no fim dos anos 50 para trabalhar na construção da nova capital. Foi um entre os cerca de 60 mil candangos — muitos deles nordestinos — que migraram para o Planalto Central atraídos pelo sonho de Juscelino Kubitschek e por oportunidades de emprego. Calcula-se que entre 1956 e 1960, durante o auge das obras, mais de 70% da mão de obra na construção de Brasília era nordestina.
Arnaldo trabalhou como pedreiro na construção da Escola Parque da 308 Sul, próxima à icônica igreja de Oscar Niemeyer. Depois, tornou-se funcionário público e permaneceu na cidade. O poema que hoje emociona leitores nasceu muito antes disso, ainda em 1947, fruto do autodidatismo e da paixão literária do autor.
A história de Margarida, personagem central do cordel, acompanha uma mulher dividida entre dois amores — aquele com quem deseja se casar e aquele com quem é obrigada a casar. São 143 estrofes estruturadas em sextilhas rimadas, todas em redondilha maior. O lirismo e a precisão da métrica chamaram a atenção dos críticos, ainda mais por se tratar de um autor sem formação acadêmica. A publicação do livro em 2023, aos 105 anos, foi possível graças ao esforço da família — Arnaldo tem 14 filhos e mais de 80 netos e netas.
E lá estava ele, na festa do Guará, chegando devagar, de bengala, atento a tudo. Pedi um autógrafo, tirei uma foto. Quase não fala mais, mas transmite presença e dignidade. Enquanto organizava os livros na mesa, uma de suas netas me contou que os manuscritos ficaram guardados por décadas até serem descobertos e organizados pelos descendentes.
A consagração veio em forma de carinho e reconhecimento: além da indicação ao Jabuti, Arnaldo recebeu o título de cidadão honorário de Brasília na Câmara Legislativa (CLDF), por sua contribuição tanto na construção da cidade quanto na produção cultural. Alguns de seus textos também foram publicados na revista digital The Bard.
A noite seguiu com bingo, concurso de fantasia, muito forró e celebração da cultura nordestina. Voltei para casa com o livro autografado nas mãos e a certeza de ter vivido um daqueles encontros que conectam passado, memória e poesia de um jeito mágico.