Ohana sonha com uma cobra lhe penetrando como se fosse um pênis e acorda assustada delirante
Tasso Franco , Salvador |
02/06/2025 às 19:47
Crianças pedem bombons para a bruxa Calona
Foto: SERAMOV
10 – A VOLTA DOS SONHOS E A BRUXA CALONA
OHANA
Nossa Alicinha foi estudar psicologia em AJU. Digo nossa porque também falo em nome do meu esposo Roque. Estamos tristonhos, abatidos, mesmo que sua ausência tenha sido planejada há anos em nosso desejo de que se formasse em nível superior numa faculdade. Mas, não sabíamos que a dor da saudade fosse tanta e agora estamos a experimentando..
Tio Damasceno – que é nosso guia familiar, a luz que ilumina alguns dos nossos caminhos – já tinha nos falado por experiência própria, ele que tem três filhos residentes em São Paulo e Paraná, que as famílias hoje em dia criam os filhos para o mundo bem diferente da época de seu pai e dos seus avós, que criavam todos na mesma aldeia e dela nunca saiam, salvo um ou outro.
Lembrava, ainda, que um dos responsáveis por esse êxodo foi a seca de 1930 que durou dois anos e muito gente foi embora para outras plagas em busca de uma vida melhor só deixando na nossa comunidade e nos sertões os velhos e as crianças. A fome foi tanta que comeram todos os bichos de quintal – galinhas, porcos, patos etc; os de estimação – cachorros, gatos, micos etc; e os do mato – raposas, coelhos, calangos, passarinhos etc. Não sobrou nada só a terra esturricada parecendo a cara de uma velha riscada com sulcos pelo sofrimento e pela fome.
O povo, no entanto, é o povo. Esse ser fantástico, impessoal, guerreiro, que resistiu como pode e quando as chuvas voltaram em 32 a vida retornou aos campos a terra compensando os prejuízos e brotando com força e viço tudo o que se plantava e o que nascia voluntariamente. As jurubebas, mangabas, goiabas, umbus, tudo brotavam com grande velocidade e a bonança retornou aos nossos lares.
É o nosso sal da terra que, também é açúcar. Diz o ditado popular que baba de sapo não diminui o perfume das rosas e as roseiras dos quintais que pareciam murchas, mortas, reavivaram e voltaram a perfumar. A Terra tem raiz e raízes. A dela, raiz inata, tanto que os mortos não morrem para alguns de nós, os da família, os queridos. E a chacina das crianças em nosso povoado mostrou isso, que estamos vivos e ninguém nos derruba; e existem as raízes das plantas que curam enfermidades com seus fervidos e efusões.
A gente não sabe se Alicinha um dia vai voltar para nós ou se seguirá montada no seu cavalo para outros mundos. Ao que dizem - e a gente vê na televisão - o planeta é grande globalizado e não é mais como no tempo das caravelas. Hoje, dorme-se em AJU e acorda-se em Lisboa; daí anoitece-se no Cairo, no Egito dos faraós.
Isabel para anunciar o nascimento de Jesus acendeu uma fogueira e daí vem nossas tradições juninas. Eu, uma aldeã, quando quero falo com Alicinha vendo sua imagem pelo WhatsApp. São os novos tempos. Nós somos apegados à nossa terra e daqui não queremos sair. Também não dá mais. Já passamos dos 40, o Roque se aproxima dos 50 e, ao que apregoam o mundo que chamam de moderno é dos jovens, as oportunidades de trabalho são deles, e são tantas as denominações dessas gerações que não dá para acompanhar o que é Z e geek. E, em parte, isso só nos interessa por causa de Alicinha.
O que vejo é que, embora vivamos numa pequena aldeia, num povoado, praticamos as mesmas coisas de quem mora num arranha céu em São Paulo. Se lá um casal vê uma série na Netflix sobre “Expresso do Amanhã” aqui também vemos; se jantam um filet parmegiana aqui também fazemos e sou boa nessa receita; se vão ao culto aqui também vamos. Enfim, o bem estar, as coisas simples, somos iguais, empatamos. Claro que não podemos assistir a uma peça de teatro; a um concerto de música clássica, nem ir a uma corrida de F1; mas também eles não podem trilhar uma serra de bike, tirar leite de uma vaca ou chupar cajus retirando-os dos pés.
Deus deu a cada qual um cobertor e se falta alguma coisa, sobra-nos outra e vice-versa. O mundo não foi feito para os justos perfeitos. Teve uma época em nosso território que o direito de um escravo era tentar sobreviver. Houve muito sofrimento e mortes. E, hoje, quantos negros e negras belos e belas, mestiços, curibocas, sararás temos por esse sertão. Eu mesmo sou raçada, arruivada. Roque é mestiço. Ninguém é puro. Só na alma.
A gente – creio em ti Deus, todo poderoso - não merecia as mortes das crianças que aconteceram na Dom Miguel. Isso, é incompreensível, e até hoje sofremos muitos.
E se já me atormentei mais, se já superei em parte o trauma com os sonhos da cobra e traição, essa maldita segue me infernizando. Tenho muita familiaridade com os bichos, mas só enxergo na cobra o satanás.
Tenho certeza que Alicinha com os conhecimentos que terá da psicologia poderá me ajudar e muito a compreender essa visão. No popular, me falam muitas coisas, que a serpente é traição; que a serpente é um pênis; que a serpente cura doenças; que é a esperança é luz, expressão. Que Cleópatra a rainha do Egito se matou com veneno de serpente, que aquela cobra com capuz dilatado era o símbolo da realeza do Egito, símbolo da renovação e da realeza, e eu fico é mais confusa ainda.
De fato, recentemente, sonhei que uma serpente me penetrava e tive um gozo infinito, suave, excitante demais e acordei delirando a ponto de Roque, como eu estava muito agitada, me barrufar de água gelada de sua boca como se eu fosse um galo de briga grogue. – Que é isso mulher, se acalma, foi o que ouvi dele.
Narro mais um fato ao jornalista que está escrevendo este livro para que fique registrado e toda a minha narrativa seja a mais transparente possível. Logo depois desse sonho da cobra me penetrando também sonhei sendo a cobra penetrando o Roque, que parecia acomodado. Quando falei isso para ele o marceneiro subiu nas tamancas.
No dia seguinte, momento de nossa feirinha no Largo da Capela e onde se situa o mercado municipal e as pessoas das roças veem para o povoado vender galinhas, ovos, plantas, frutas e verduras fui a tenda de Sêo Djalma sergipano o qual vende feijão e farinha, comprar dois litros de mulatinho e dois de farinha fina.
Sêo Djalma, homem piadista que todos conhecem por suas tiradas, também vende aos sábados uma feijoada num canto da tenda onde se aglomeram alguns ciganos, tabaréus e mulheres salientes que se oferecem por um agrado em dinheiro vivo. Ele tinha acabado de me dar um saco plástico contendo meu pedido do feijão quando se aproximou uma cigana querendo ler minha mão.
- Moça, moça, deixe eu ler sua mão, venha cá bpnitona, cutucava meu branco.
- Não desejo senhora, obrigada – adverti me afastando.
Sêo Djalma interferiu: - Oh! Calona deixa minha cliente em paz.
Então perguntei ao barraqueiro se ele a conhecia. – Sim é uma cigana que está sempre aqui aos sábados, às vezes só, outras com a filha que é uma bela mulher. São pessoas do bem. Se a senhora quiser pode deixar ler sua mão pois diz é coisa. Mas, acerta o preço antes.
Me interessei, imediatamente, e chamei a cigana de volta. Perguntei quando cobrava: - A madame paga 30 reais.
Achei caro. – É mais do que o preço pago por meu feijão. Ofereço 10 reais, disse.
Ela aceitou e me levou para um cantinho da tenda onde havia uma mesinha de madeira e quatro tamboretes, uma vassoura, um rodo, uma pazinha de lixo e um recipiente de plástico. Paguei os 10 reais.
Ela pegou minha mão direita com sua enorme mão com unhas pintadas de preto, um anel de ouro no dedo anular com desenho de uma cruz de três hastes e começou a falar: - A senhora vai viver muitos anos, mas quando tiver mais velha levará um susto, porém, não morrerá. Sua linha da vida segue adiante muito forte até quase o punho.
O perfume que exalava do seu corpo não era dos mais agradáveis. Seguiu dizendo; - Sua inteligência permanecerá esperta por muito tempo e a roda da fortuna não baterá na sua porta, assim como a sela do amor. Alguém vai querer lhe derrubar do cavalo, tome cuidado... estava me interessando bem pelo que ela falava, mas, não conseguia enxerga-la olho-no-olho, ela sempre de cabeça baixa, cabelos longos prateados, foi quando apareceram dois meninos atrevidos, saltitantes e gritaram: - É a bruxa Calona, é a bruxa Calona, dá bombons pra gente tia.
Fiquei apavorada, olhei para Sêo Djalma que estava rindo. Dois tabaréus que bebiam uma cerveja tiraram os chapéus das cabeças e se benzeram, os meninos seguiram pedindo bombos, a cigana ou sei lá o que, se afastou de mim, rapidamente, pegou a vassoura da tenda, que era forte, encorpada, bom saiote de palhas, retirou uma varinha fina com um cristal na ponta de dentro das saias rodadas e saiu correndo para a porta do mercado, mais meninos apareceram pedindo bombons gritando por tia Calona e eu corri também para ver o que aconteceria. Quando cheguei na porta do mercado os meninos disseram que ela tinha voado para a Serra do Lagarto.
Fiquei de queixo caído querendo saber de Sêo Djalma se aquilo era verdade, que teria voado, que minha irmã Ohilma tinha atirado numa bruxa parecida com ela, a qual soltou uma cobra pela boca e eu cortei seu pescoço com um facão, e o tendeiro me confessou que Calona era do bem, iria devolver sua vassoura, em breve, e que tiro de espingarda ou de revólver nela não pega porque tem o corpo fechado. Quanto a cobra deve ter sido uma brincadeira para apenas nos assustar.
Cheguei em casa com cor de parede pintada de cal e Roque logo desconfiou de que teria acontecido algo. Lhe narrei tim-tim por tim-tim e ele, como sempre, achou que minha narrativa era fantasiosa, que eu estava perturbada da cabeça. Apelei para que fosse conservar com Sêo Djalma, e ele me disse que não iria fazê-lo para não ser passado como ridículo. E mais me disse que, se eu continuasse com essas coisas, que chamava de invencionices, deveria tomar uns passes de algum espírita ou então procurar a velha rezadeira Samuelina, que atendia no povoado do Umbuzeiro, a qual havia, em tempos idos curado sua tia Dalva, esposa de Damasceno, de uns calundus que tomara seu corpo.
Eu fiquei irritada com Roque, mas, me contive, e para satisfazer seu desejo pedi que me levasse a Samuelina.
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*** No próximo capitulo: A carta de Alicinha aos pais e a interpretação dos sonhos de Freud.