Os críticos literários da época são unânimes em afirmar que Aluísio se baseou em fatos reais num episódio envolvendo o estudante Capistrano, acontecido em 1877,
Rosa de Lima , Salvador |
30/05/2025 às 20:06
Casa de Pensão
Foto: BJÁ
Voltemos a uma rodada de escritores brasileiros inicialmente abordando uma obra literária que inaugurou o Naturalismo no Brasil, movimento criado na França por Émile Zola, autor de “O Romance Experimental” – a bíblia propagandística do gênero – que teve, outro expoente às luzes em Augusto Comte, o qual criou o positivismo e influenciou o naturalismo no Brasil. O maranhense Aluízio Azevedo foi seu principal representante, autor muito lido nas primeiras décadas do século XX com obras adotadas em colégios tais como “O Cortiço” e “O Mulato”, que são mais consideradas do realismo.
Na verdade, o Naturalismo é uma ramificação do Realismo, que se distingue por uma abordagem mais radical, já se utilizando da ciência para analisar o comportamento humano e a obra de Aluísio Azevedo que vamos comentar “Casa de Pensão” (Editora Escala, SP, 251 páginas, Coleção Grandes Mestres, R$25,00 nos portais da internet) publicada originalmente em 1884 narra a trajetória de Amâncio um rico jovem do Norte que foi estudar medicina no Rio de Janeiro, então, capital da República, e fica deslumbrado e se envolve com a vida boemia da cidade e sonha fornicar muitas mulheres.
Os críticos literários da época são unânimes em afirmar que Aluísio se baseou em fatos reais num episódio envolvendo o estudante Capistrano, acontecido em 1877, muito comentado na sociedade carioca. Em “Casa de Pensão” o autor cria uma galeria de personagens próprias de um pensionato cada qual com sua característica particular, desde o discreto e inofensivo burocrata e pessoas gananciosas e perdulárias, tais como madame Brizard e Coqueiro, os quais, em nome do dinheiro são capazes de vender a alma ao diabo. E arquitetam ofertar em bandeja sua cunhada irmã Amélia ao maranhense, uma pérola sedutora, virgem, com a contrapartida de dotes, bens, dinheiro.
Quem já morou numa pensão – e são muitos os brasileiros que já tiveram essa experiência e ainda têm – certamente vai apreciar esse livro com mais prazer e verossimilhança, pois, os tipos criados por Aluísio são frequentemente reais, tais como Lúcia – ávida por sexo enquanto o marido vive alheio a tudo a todos; o Sr. Campos e a Sra. Hortência seus protetores e onde Amâncio posou primeiro ao chegar no Rio recomendado a esta família e nutriu uma paixão intensa por essa pudica senhora. Enfim, são muitos os protagonistas na obra que pode também ser entendida como um romance.
E, nessa omeleteria em curso, é entendido também como um romance. Naturalismo e romantismo se confundem e mestre Aluísio Azevedo, um perfeccionista na arte de escrever, expõe de maneira visceral a sociedade carioca da época – monárquica devassa e adepta de saraus e encontros lascivos nos salões endinheirados do Império - num traço bem forte do Naturalismo radical, sem peias, sem nada esconder (o que, naquele momento da vida brasileira representou um misto de indignação e satisfação) e também expõe a doçura e leveza de sua linguagem no tratamento dado as questões relacionadas ao amor, às paixões e aos sonhos das possíveis conquistas.
Aos olhos atuais, então, ler expressões como “no quarto dos engomados, de camaradagem com as mulatas da casa que ai trabalhavam conjuntamente”; “quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior”; “Coqueiro tinha uma biblioteca e sua banca de estudos”; “Eis o ninho que te destino! É o lugar mais catita da casa”; “vibrou então o piano no salão de visitas!; “A mulher que já não era criança, ainda metia muita vista e passava por bonita”; “E fariscou o testamento”; revelam como era a linguagem do dia-a-dia naquela época, as expressões em moda, os desejos e assim por diante.
Um retrato fiel da Corte estabelecida no Rio de Janeiro onde sonhar era permitido até a atingir títulos honoríficos de honra e poder, os barões e marqueses em ascensão no segundo Império que Aluísio transporta esses sonhos para o jovem estudante do Norte que se vê envolvido num jogo sórdido de sedução e interesses financeiros tramado pelo dono da pensão e sua esposa para abocanhar o dinheiro do ingênuo maranhense.
Amâncio tem momentos de lucidez e independência em que luta para se livrar de Coqueiro, porém, ele já estava preso nos braços de Amélia com extensões na cama e quando seu pai morre no Maranhã e ele recebe um apelo da mãe para que retornasse a São Luis a fim de cuidar dos grandes negócios da família, Amélia impõe a condição de que só permitiria seu retorno após seu casamento com ela. O jovem vendo que estava na boca da arapuca tenta fugir e realizar um embarque clandestino.
No dia do embarque um oficial de Justiça acompanhado de policiais, em trama organizada por Coqueiro, é preso acusado de sedução. Duas falsas testemunhas corroboram a acusação. O caso tem grande repercussão no Rio e chega as páginas dos jornais sensacionalistas que, em tese, e querendo vender mais folhas, assume uma postura de defesa do anti-herói.
Seu guardião inicial Sr. Campos se prepara para ajudar o protegido, mas Coqueiro faz chegar as suas mãos uma carta em que Amâncio faz galanteios a sua esposa Hortência e questiona: “V. Exa. está se posicionando contra alguém que não soube respeitar nem a sua casa”.
Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido e levado em triunfo para almoço e vivas no Hotel Paris e se torna famoso, cortejado, abraçado. Ouvem-se gritos de liberdade e uma banda tocando a Marselhesa.
Revoltado, fracassado, humilhado, com a pensão em estado de quebradeira, Coqueiro pega um revólver do seu falecido pai e pensa em se matar, porém, muda de ideia, vai ao Hotel Paris e mata o estudante maranhense com um tiro a queima-roupa.
Há uma comoção geral no Rio de Janeiro. Coqueiro é preso, a mãe de Amâncio chega do Maranhão para a despedida do filho e vê seu nome do filho por toda parte e, numa vitrine, observa um retrato de Amâncio, de corpo nu, e a legenda “Amâncio Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris”.
Algum tempo depois, próximo ao julgamento de João Coqueiro, a opinião pública começa a mudar, o hoteleiro teria lavado a honra da irmã, Amâncio fez por merecer, e o autor, nessa ambivalência mostra a perversa e fútil sociedade da época, manipulada, capaz de mudar de lado de acordo com o “realismo” criado pelos poderosos e pelos meios de comunicação.
“Continuavam, pois, as noticias jurídicas. Coqueiro popularizava-se, ia conquistando opiniões e simpatias, ia aos poucos se instalando no lugar vago pelo desaparecimento do outros, Muitos colegas se voltavam já a favor dele, até Simões – Até Paiva! () Quando os amigos lhe falavam do ato do irmão de Amélia dizia: - Coqueiro mandu bem! Eu, se tivesse lima irmã, fosse ela quem fosse, faria o mesmo naturalmente”, escreve o autor.
Aluísio Azevedo, no entanto, não absolve Coqueiro e endereça a mensagem nas entrelinhas para que os leitores completem o julgamento, porém, deixa claro que assim era a sociedade daquela época, o que se parece muito com os dias atuais.
Termina o livro com a imagem da mãe vendo o retrato do filho numa vitrine onde se via seu corpo e a frase “Amâncio Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris, em tantos de tal.”
Os leitores, portanto, que julguem se João Coqueiro, adiante, merece ou não ser absolvido e exaltado por ter honrado a irmã abandonada pelo frívolo Amâncio. E, certamente, naquele Rio do final do século XIX essa questão deve ter sido bem discutida.