Qualquer semelhança com alguma localidade da Bahia é mera coincidência. "A Psicóloga" é um livro de ficção.
Primeiro capitulo do romance "A Psicóloga" do jornalista Tasso Franco, 79, que começa a ser publicado no www.wattpad.com.
1. A TRAGÉGIA
O dia amanheceu como os demais em nosso povoado. Nessa época primaveril do ano os cardeais cantam bastante empoleirados nas árvores e na matinha da serra. São pássaros lindos com penugens brancas e aqueles capacetes vermelhos nas cabeças. O sol nesta época não brilha muito forte. Assim estava o rei dos astros iluminando nosso povoado.
Eu e o Roque, meu marido, acordamos cedo como fazemos todos os dias. Fui para a cozinha e preparei um cuscuz com ovos fritos. O Roque foi dar milho as galinhas em nosso terreiro e verificar as florações dos cajueiros e das mangueiras.
Alice, nossa filha de 15 anos acordou um pouco mais tarde. É uma mocinha linda. Nós, na verdade, somos todos lindos. Somos pessoas simples, pobres, dignas, que vivemos ao nosso mundo particular. No universo global somos um pontinho minúsculo no mapa. E tentamos não imitar em moda e adereços corporais artistas de televisão. Nem temos dinheiro para isso. No máximo, clonamos alguma coisa.
Nosso único armarinho, o de dona Nilza, só vende batons e perfumes baratos porque é o que podemos comprar. A gente vê na televisão aqueles vestidos bonitos das atrizes nas novelas e nos filmes. Alguns achamos até charmosos, mas não dá para nós.
A Alicinha, minha menina, cria alguma coisa em enfeites corporais e anda sempre muito bonita. Busca as novidades na internet. Pra falar a verdade eu acho todas as mocinhas e rapazes de nosso povoado formosas, belas. São como as flores, as frutas, como os pássaros da Serra dos Cardeais, assim se chama nossa localidade.
Mocinhas viçosas, naturais, brejeiras. Depois do café da manhã que tomamos juntos, eu, Roque, Alice e nosso gato Tom, Alicinha vai para a escola e nós seguimos para nossa marcenaria localizada nos fundos aqui de casa.
Roque é marceneiro. Não sei se vocês sabem o que é isso diante de tantas novas profissões que existem no mundo com o advento dos celulares e da internet. Claro que temos um aparelhinho desses e compramos um para nossa filha. Foi ela que insistiu para que fizéssemos esse investimento. Sempre falava para o pai que era um negócio e não um gasto.
Roque não é burro, nem teimoso. Marceneiro, ao que dizem, é uma atividade em extinção. Em nosso povoado, não. Vivemos disso há anos, mais de duas décadas, produzindo portas, janelas, bancos e armários. Vendemos a maioria do que produzimos para Aracaju o caminhão dos lojistas vem e pega.
É verdade que nos últimos anos as encomendas em móveis de madeira decaíram devido as novas inovações com as portas e móveis de madeiras plásticas, os modulados, os pré-moldados e nós fomos obrigados a nos reciclar e modernizar para sobrevivermos.
Eu me chamo Ohana. Até hoje não sei porque meu pai colocou esse nome estranho. Era vendedor de peles e couros curtidos de bois. Homem acostumado a labuta do campo. Em nosso povoado a maioria das pessoas têm nomes de santos: José, Pedro, Damião, Lucas, Agostinho, Domingos, Lurdes, Conceição, Isabel, Nazaré, Madalena e assim por diante. Pai colocou meu nome Ohana, o da minha irmã Ohilma e dos meus irmãos de Ohrácio e Ohreste. Tenho a impressão que tinha obsessão pela letra O que achava sonoras e por h, creio que para diferenciar dos nomes dos santos. Eu na verdade seria Ana e muita gente daqui só me chama assim.
Nosso povoado só tem escola primária. Pra estudar o ensino secundário tem-se que ir morar na Terra do Sol que é a sede do nosso município. Na minha época, pai não deixou estudar lá porque não tinha condições de me manter. Minha irmã deu mais sorte e virou professora indo morar na casa de uma tia irmã de pai, tia Glória.
Eu conheço Roque desde pequeno e foi assim que namoramos e nos casamos. As meninas daqui – pelo menos as do meu tempo – se casavam com os rapazes daqui, salvo algumas exceções. Era natural que isso acontecesse. A gente não viajava para outros locais e uma ou duas vezes na vida fui a praia de Atalaia, em Aracaju. Nosso povoado tem divisa com Sergipe e do outro lado está Poço Verde cuja estrada fica mais perto da capital sergipana do que da capital da Bahia.
Eu, na realidade, nem conheço Salvador. Passei um tempo de minha vida de casada cuidando de Alicinha e depois que ela fez 7 anos e entrou na escola primária resolvi também ajudar Roque na marcenaria, nas finanças e na contabilidade. Ele tinha dois rapazes que trabalhavam com ele e pensava em colocar mais gente porque ganhou mais clientes em Aracaju.
Os móveis que fabricamos vão todos para essas lojas da capital sergipana e mais recentemente para Alagoinhas, que é a cidade mais desenvolvida de nossa região. Foi assim diante dessas exigências que comecei a desenhar novas peças, novos modelos que tirei da internet graças ao aparelhinho de celular que temos e vamos inovando.
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Eu estava com os operários e Roque discutindo a fabricação do novo modelo de porta de correr que se move acionando um aparelhinho a bateria quando ouvimos um tiro. Eu mesma nunca tinha visto um revólver na minha vida e achei que era um tiro porque se assemelhava a zoada que via na TV em filmes. Logo depois houve outro tiro.
Roque e os operários saíram pela porta da marcenaria na direção da rua Lua Cheia para verificar o que estava acontecendo e viram umas crianças correndo e saindo do Dom Miguel, justo o colégio onde nossa Alice estuda. Roque voltou para o interior da marcenaria e me contou que estava havendo algo estranho na escola e pegou em meu braço e pediu para irmos até lá.
Quando estávamos saindo da marcenaria ouvimos mais dois tiros e corremos em direção da escola, que fica menos de 800 metros de nossa tenda e vimos que Alicinha e outros colegas corriam para a rua e em nossa direção.
A essa altura a rua da escola estava com vários moradores e uma correria de um lado para outro, crianças chorando, senhoras chorando, professores apavorados e as primeiras informações eram de que havia um atirador na escola, mas a gente não sabia se tinha atingido algum aluno.
Quando abraçamos nossa filha ela estava da cor de papel, pálida, nervosa, sem conseguir dizer uma palavra. Enquanto Roque providenciava um pouco de água para ela ouvimos mais dois tiros, secos. E logo em seguida houve um silêncio. As pessoas ligavam para a Prefeitura de nossa sede a Terra do Sol pedindo socorro e a presença da Polícia.
Alguns homens e mulheres conseguiram entrar na escola tentando encontrar seus filhos. Nesse interim saiu uma professora do estabelecimento escolar esbaforida, se sentindo mal, sendo socorrida na calçada por populares abanando seu corpo e dando água. Fui a partir daí que soubemos, pelo boca-a-boca popular, que havia estudantes feridos ou até mortos no interior da escola.
Em 40 minutos, aproximadamente, chegou uma ambulância do SAVU e logo depois um carro da Policia. O pânico aumentou. Mais pessoas saiam chorando do interior da escola.
Nossa comunidade nunca tinha passado por uma situação dessas e não sabíamos como nos comportar. Corremos para casa protegendo Alicinha e Roque trancou a marcenaria. Depois, ficamos em casa protegendo nossa filha, a essa altura, a mãe de Roque, dona Carmen, também nos ajudando no conforto a neta, a qual seguia tensa, muito nervosa, sem saber explicar o que acontecera.
Dizia ela, em soluções, que um menino havia atirado no outro na sala de aula. A professora só viu quando o aluno retirou o revólver de uma sacola e atirou na cabeça de um colega, falava assim sem muita certeza.
Então voltamos para a rua, eu e o Roque, e deixamos Alice com a avó, para sabermos o que tinha acontecido, na real. A essa altura vimos corpos cobertos com mantas sendo levados para ambulância, técnicos em enfermagem, socorristas possivelmente médicos, policiais e a confirmação de que 4 crianças haviam sido mortas.
Nem sei descrever ao certo a comoção que isso gerou nas pessoas. Os meninos e meninas mortas eram todos nossos conhecidos, seus país, seus tios, seus avôs e avós e a gente não conseguia falar muita coisa, só uns se abraçando aos outros, quando as ambulâncias partiram para a Terra do Sol. Ficamos nas imediações da escola, perplexos, trocando palavras desconexas, uns consolando os outros, sem saber exatamente o que dizer.
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