Cultura

EMISSÃO SONORA PODE TER INFLUENCIADO NA QUEDA TETO DA IGREJA DO OURO


O problema é que no Brasil não existe uma legislação específica sobre o assunto.
Marcia Moreira , Senhor do Bonfim | 27/03/2025 às 17:19
Emissão sonora pode ter influenciado no desabamento do teto da Igreja de São Francisco
Foto: Débora Barretto

O desabamento do magnífico teto da nave central da Igreja de São Francisco, no Centro Histórico de Salvador, em 05.02.2025, chamou a atenção do poder público sobre a forma como vem sendo conservado o rico patrimônio arquitetônico existente na Bahia e no Brasil. Mas existe um fator que normalmente não é levado em conta, mas que pode influenciar em tragédias como essa: o som. As estruturas das edificações históricas estão sendo afetadas por emissões sonoras causadas pelo tráfego de veículos e, principalmente, por apresentações musicais.


O problema é que no Brasil não existe uma legislação específica sobre o assunto. Por isso, desde fevereiro, logo após o desabamento na Igreja de São Francisco, sete especialistas em acústica de todo o país estão focados numa iniciativa inédita: criar um Termo de Referência para elaboração de Plano de Monitoramento e Relatório de Ensaios Sonoros e de Vibrações nas áreas e edificações tombadas pelo Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, no município de Salvador


O objetivo é elaborar um Termo de Referência que sirva de parâmetro para a criação de uma legislação com foco na liberação da utilização sonora desses espaços. “Vai ser o primeiro Termo de Referência no país voltado para a questão da emissão sonora em centros históricos. Salvador sai na frente nessa discussão tão importante para a preservação do rico patrimônio histórico-arquitetônico de várias cidades brasileiras”, explica a arquiteta baiana Débora Barretto, idealizadora do grupo. 


Também participam do grupo o engenheiro Krisdany Cavalcante (MG), a arquiteta Bianca Araújo (RN), a engenheira Dinara Paixão (RS), a arquiteta Maria Lygia Alves de Niemeyer (RJ), a arquiteta Nayara Gevú (RJ) e o arquiteto Pedro Resende (BA). O trabalho tem apoio e está sendo acompanhado de perto pela Prefeitura de Salvador através da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur). 


O grupo se reúne semanalmente de forma virtual e o primeiro esboço do Termo de Referência já está sendo finalizado. Eles estudam e avaliam normas técnicas e legislações existentes em outros países sobre o assunto para criar um parâmetro que possa ser usado no Brasil.

Problema nacional


Com mestrado em Patrimônio e doutorado em Arquitetura na área de Acústica e Vibração pela UFRJ, a arquiteta Nayara Gevú defendeu em sua tese de doutorado o tema: A influência da vibração gerada pelo tráfego de veículos sobre o patrimônio cultural edificado. Ela iniciou a pesquisa em 2018 e publicou em 2022. O estudo foi concentrado no entorno da rua mais antiga da cidade do Rio de Janeiro, a Rua Primeiro de Março, que possui um grande acervo de edificações de valor histórico e cultural.


 “A vibração, gerada pelo tráfego de veículos e transmitida através do solo, é um dos fatores que podem comprometer a estrutura de uma edificação histórica. Edificações de valor patrimonial são consideradas mais sensíveis do ponto de vista estrutural e podem sofrer de forma mais intensa os efeitos das vibrações viárias”, afirma a arquiteta no início da tese. 


Para se ter uma ideia, o nível de pressão sonora recomendado pela NBR 10151 para a área onde se encontra a rua Primeiro de Março é de 65dB, para o período diurno, mas a pesquisa feita pela arquiteta Nayara Gevú, inicialmente em 2019 em parceria com o arquiteto Felipe Barros, e posteriormente, em 2022, revelou uma realidade bem diferente. “O ruído emitido pela linha de tráfego se apresenta numa grandeza de 80-85 dB. As fachadas mais próximas da via, que é o caso da maioria dos bens históricos dessa região, encontram-se fora do limite aceitável. Em relação aos níveis de vibração, todos os valores registrados nas fachadas e nas estruturas internas ultrapassaram os limites definidos pela norma considerada referência internacional DIN 4150-3, uma vez que não existem normativas nacionais”, avalia.


A arquiteta conta que soube do desabamento do teto da Igreja de São Francisco pelo celular e lembrou da própria pesquisa. “Fiquei muito impactada com as imagens. Nosso temor é que aconteça o mesmo em outros centros históricos”, afirma. Para Nayara, é preciso cuidar melhor do rico legado arquitetônico existente no Brasil e por isso ela destaca o trabalho que está sendo feito pelo grupo na criação deste Termo de Referência. “Precisamos manter esse patrimônio para as próximas gerações”, diz. 

Pesquisa Salvador


Em Salvador, a arquiteta Juliana Evaristo também lançou em 2022, pela UFBa, a seguinte tese de dissertação do seu curso de Mestrado: Avaliação de vibrações em edificações tradicionais do centro histórico de salvador. Foram avaliadas 15 edificações públicas seguindo critério de representatividade histórica e artística, incluindo a Igreja e o convento de São Francisco. Além das medições relativas ao tráfego, a pesquisa selecionou edificações para medição de vibração no Carnaval e no São João. Foram escolhidas edificações com tipologia construtiva de alvenaria de pedra e tijolo, com disponibilidade de acesso e localizadas próximas a fontes sonoras (palcos de shows). 


Em seu trabalho, Juliana ressalta que nas técnicas construtivas utilizadas pelos portugueses, na época da colonização, predominam utilização de terra, e depois de pedra e cal. “Um som não é somente um fenômeno acústico, portanto, ele é algo capaz de influenciar não apenas o órgão da audição, mas também produzir outras manifestações físicas. A Física conhece perfeitamente o efeito da ressonância que pode se fazer presente em tudo, visto que a estrutura da natureza é essencialmente vibratória”, diz.


Para Nayara Gevú, ambas pesquisas revelam a necessidade da preservação de um patrimônio arquitetônico que guarda a história e memória da construção do Brasil. “Como pensar no futuro sem levar em conta o pré-existente?”, questiona. 

A Igreja


A Igreja de São Francisco de Assis, no Pelourinho, foi construída a partir de 1708, é considerado patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Toda revestida em ouro, também foi declarada em 2009 uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no mundo. O desabamento do teto da nave central da Igreja de São Francisco aconteceu no dia 05.02.2025, deixando cinco pessoas feridas e causando a morte da turista Giulia Righetto, de 26 anos. 


Depois da tragédia, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Defesa Civil de Salvador fizeram uma vistoria em várias outras edificações católicas e mais sete igrejas foram interditadas (Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem; Igreja de São Bento da Bahia; Igreja dos Perdões; Igreja de Nossa Senhora da Ajuda; Igreja da Ordem Terceira do Carmo; Igreja dos Quinze Mistérios; Igreja e Convento de Santa Clara do Desterro; Igreja de São Miguel).