Cultura

SALVADOR 476 ANOS:A POBREZA DA MAIORIA DA POPULAÇÃO TEM 5 SÉCULOS (TF)

Os guetos proliferaram muito a partir dos anos 1970
Tasso Franco , Salvador | 29/03/2025 às 14:13
A favela desceu ao asfalto no Carnaval
Foto: BJÁ
   Salvador completa hoje 476 anos de existência. Tem muita coisa a comemorar porque faz parte dos ritos de um aniversário. A realidade de sua população estimada hoje em 2.600.000 habitantes é idêntica àquela de sua fundação no final do primeiro semestre do século XVI (1549), a maioria de pobres (70% a 80%) também chamados de baixa renda, com as devidas proporções de quantidade, modus de vida, natalidade, saúde, educação e cultura.
 
   Fernão Cardim estimou no final do século XVI que, no território de Paripe a Abrantes, tinha 14.000 habitantes sendo 3.000 portugueses, 8.00 tupinambás, 3000 escravos. A elite portuguesa representava 10% dos 3.000 (300), a classe média 20% (600) e 2.100 baixa renda. Se somarmos esses 2.100 + 8.000 (tupinambás) são 10.100 pobres (app 75%). Hoje, dos 2.600.00 há 1% de ricos 2.600 (a elite financeira); 30% app de classe média 780.000; 69% de baixa renda 1.794.000.
 
 A pergunta que se faz é por que passados tantos anos (476) os dirigentes da Colônia, do Império e da República não conseguiram modificar esse cenário? Atribuir tudo aos portugueses não tem sentido, pois, desde o II Império à Replica já se passaram quase 200 anos, a Bahia controlada pelos brasileiros.
 
 Salvador, hoje, a despeito de locais bem urbanizados e com construções de alto e médio padrões, no geral, é um favelão. São milhares de construções de intermediaria e baixa qualidade em assentamentos normais e sub-normais (estimados em mais de 600) chamados uns de bairros outros de invasões, onde a tônica construtiva é o “puxadinho”. Até o presidente da República, Lula da Silva, já disse que vai conseguir financiamentos para ampliações de “puxadinhos” o que significa dizer que é um problema nacional e seu governo tem o programa Minha Casa, Minha Vida.
 
  Essa população da baixa renda de Salvador só consegue sobreviver com os guardas-chuvas dos governos federal, estadual e municipal. Sem isso, invadiria o asfalto, como temeu certa ocasião, anos 1980, o pastor dom Avelar Brandão Vilela quando chegou para ser arcebispo de Salvador e ficou assustado com a pobreza. Jorge Hage, que era professor univseritário e foi nomeado prefeito de Salvador, por Roberto Santos, na década de 1970, sentiu o mesmo.
 
  Esses guardas-chuvas são do ensino fundamental ao superior em escolas públicas gratuitas, assistência médica nos níveis da baixa e alta complexidade, as bolsas de toda natureza, programas sociais diversos e outros.
 
  O problema da pobreza em Salvador é de origem. O Império Português já no Regimento de Almeirim (1548) – espécie de constituição prévia do Brasil – estabelecia em 5 princípios como seria a ocupação do pais tendo Salvador base da ocupação e povoação, defesa do território, governança e administração, expansão do cristianismo, importação e exportação – centro comercial do Atlântico Sul.
 
   E, para implantar esse modelo, de cara, além dos homens em armas e dos burocratas, a Corte enviou 400 degredados da prisão do Limoeiro, Lisboa, gente da pior espécie, segundo relatos do próprio Thomé de Souza, o qual, em carta ao rei Dom João III disse que estava “enfadado” deles e queria voltar para Portugal. 

   O modelo econômico adotado foi o agro exportador com base no açúcar e o mais que pudesse tirar dá terra até a descoberta do ouro, que não se deu na Bahia.
 
   Salvador, portanto, nasceu com esse modelo e os primeiros engenhos de açúcar foram implantados em seu território, na área do hoje Subúrbio Ferroviário e depois no território do Recôncavo já com uma quantidade enorme de negros africanos escravizados da Costa da Guiné.
 
  Já no século XVIII (1777) Cardim fala em 35.000 habitantes em Salvador sendo 12.280 brancos; 7.837 negros livres e 14.696 escravos. Veja vocês que, a essa época, e até mesmo antes disso, os tupinambás que eram estimados em 18.000 na época da fundação da cidade (1549), não existiam mais.
 
   O que aconteceu com eles? Os números são imprecisos: fugiram para o interior e foram também dizimados pelos portugueses a partir de Duarte da Costa e sobretudo com Mem de Sá. O que sobreviveu eram os descendes que passaram a ser contabilizados na rubrica de mestiços, miscigenação de tupinambás com europeus; tupinambás com negros - vom várias denominações curibocas, sararás, crioulos, etc..
 
  AS MAIORES CRISES
 
  A cidade enfrentou ao longo dos séculos algumas crises de alta gravidade que só fizeram ampliar a pobreza. O exploratório mercantil português baseado no açúcar era cobiçado pela França, Espanha e Holanda. O açúcar era o ouro da época. 

   Uma armada da Holanda com 24 navios, canhões e armas de mão, invadiu a cidade em 1624. Salvador tinha 75 anos de existência, no núcleo central app 10 mil habitantes e uma força armada pequena. A invasão foi num tapa no mesmo dia 8 de maio e o governador foi preso e enviado para a Holanda.
 
   A partir dai houve uma guerrilha comandada por um bispo e a retomada da cidade por forças navais da Espanha e Portugal, 52 navios, 14 mil homens, numa guerra maior que Salvador já viu e durou de 28 de março de 1626 a 30 abril. Após a guerra, a cidade estava destruída e aumentou a pobreza. A reconstrução demorou anos, sem qualquer planejamento urbano e sem ajuda aos pobres sobretudo os escravos.
 
  O segundo baque que a cidade sofreu foi a perda da sede do governo geral para o Rio de Janeiro, em 1763, com a mudança do eixo politico e econômico do Nordeste (Bahia/Pernambuco) para o Sudeste no triângulo (Rio/São Paulo Minas Gerais), a política ouro e café com leite que persiste até os dias atuais. 

  Salvador, sofreu em particular, porque sendo a sede do Governo Geral perdeu as estruturas burocráticas poderosas tanto do ponto de vista da politica como da economia, os órgãos, os investidores, os melhores salários e assim por diante. Uma nova mudança nesse paradigma só vai acontecer em 1962, com JK, e a construção de Brasília no Planalto Central.
 
  Mas, veja que o presidente Lula da Silva, embora pernambucano de origem, construiu toda sua carreira politica em São Paulo e a Bahia ao longo dos anos depois de 1763 nunca mais deu um governador geral nem um presidente da República.
 
  Sabemos todos de várias revoltas de negros no final do século XVIII e até meados do século XIX, em Salvador, a Conjuração Baiana, Sabinada e a Revolta dos Malês que foram gritos de libertação, mas não mexeram na economia nem mudaram a vida dos pobres, salvo n'algumas consciências.
 
   Posteriormente, no inicio do século XIX (1822/1823) a cidade sofreu a guerra de cerco da Independência da Bahia houve uma fuga generalizada da população para o Recôncavo, lutas que duraram um ano, e não afetaram a cidade do ponto de vista dos seus monumentos e casas, porque a única batalha foi em Pirajá, no campo.

  Quando Madeira de Melo foi embora para Portugal com suas tropas deixou a cidade oca, paupérrima, onde grassava a fome e nem ratos eram poupados. Quando o Exército Pacificador de Lima e Silva entrou pela Estrada das Boiadas (Liberdade), em 2 de julho 1823, também esfarrapado, se passaram anos até que a cidade se aprumasse.

   Adiante, na segunda quadra deste séculos a febre amarela e a colera mrbus mataram entre 25.000 a 30.000 soteropolitanos e foi outro caos. Os ricos se mudaram para áreas do vento na Barra e Vitória; e os pobres para os arrabaldes. O centro da cidade se esvaziou pois a orientação médica era salvar-se com ares que não estivessem contaminados, os morros, as encostas, etc.
 
   Em 1888 aconteceu o decreto real da princesa Isabel pelo fim da escravatura, no direito, mas, no fato, na prática, no real, nada mudou. O II Império estava morimbundo e desabou logo depois, mas, não houve uma contra-partida para melhorar a vida dos negros mestiços e, hoje, até mesmo as comunidades negras letradas abominam o movimento abolicionista.
 
   Nos Estados Unidos, ao contrário do que aconteceu no Brasil, houve uma guerra Norte-Sul entre Exército da União, Lincoln x Confederados, Lee com 650.000 mortos e a vitória do Norte e o fim da escravidão e, em seguida, a restauração sobretudo do Sul (a região escravista e racista mais acentuada dos EUA) com a implantação de uma rede de escolas primárias (ajudada inclusive do Exército), normais e superiores para negros.

   W.E.B. du Bois trata desse tema em “As Almas do Povo Negro” (1903) e cita que assim nasceram as universidades de Fisk (onde ele se formou e depois fez PHD em Harvard universidade de 1636); Hampton (1868), Wilberforce. Ohio (1856), Lincoln (Pensilvânia) 1866, Shaw (Carolina do Norte) 1865 num total de 34 instaladas antes da virada do século XIX e na Bahia a primeira universidade (a Federal) só foi criada em 1946, embora já houvesse a Escola de Medicina em nível superior com Dom João VI, 1808; a e a Politécnica de Arlindo Fragoso, inicio do século XX.
 
   A UFBA, por posto, nasceu para atender a elite uma vez que havia um vestibular de acesso e só aqueles jovens mais escolarizados tinham acesso. Falo de cátedra porque 22 anos depois dessa fundação me submeti a um vestibular em humanas para fazer jornalismo, era o que poderia enfrentar, passei, e quando cheguei na FAFIUBA, a maioria dos alunos era classe média branca. Não havia PPP (Pobres, Pretos da Periferia).
 
   Salvador caminhou com esses passos e as atividades econômicas nos séculos XIX e parte do XX, segundo relata Noélio Spínola Dantaslé, em “A Trilha Perdida Caminhos do Desenvolvimento Baiano do Século XX” “as atividades agrícolas e industrias que se desenvolveram na Bahia (nos séculos citados) constituíram extensões dos interesses do capital mercantil”. E o tráfico de escravos aumentou com a produção do fumo :” Moeda de troca no tráfico negreiros, o fumo foi responsável por intenso comércio entre a Bahia e o Golfo de Angola e de Benguela”.
 
   A cidade também ao longo dos séculos conseguiu desenvolver uma indústria textil, naval, óleo de baleia, chapéus, velas, etc, mas o forte da economia baiana no século era, o cacau e o fumo e a indústria textil iria desaparecer com o avanços da industrialização de São Paulo, mais moderna, mais dinâmica e que acabou engolindo tudo.
 
   Com dinheiro dos bancos ingleses intermediado pelo banqueiro Guinle, o governador JJ Seabra (1912/1915) conseguiu realizar a primeira modernização urbanística da cidade com a construção da Av Sete/Oceânica e mudando sua fisionomia colonial. E uma nova virada só vai acontecer com ACM prefeito e a abertura das avenidas de vale, na segunda quadra do século XX.
 
  Foi o governador Octávio Mangabeira (1947-1951) que cunhou a expressão “enigma baiano” ao perceber a contradição entre o potencial econômico da Bahia e a pobreza do seu povo, como disse na época “a miséria que estava condenado”. Nasce dai um esforço maior de planejamento econômico na Bahia, iniciado por Juracy Magalhães com o Plandeb, uma longa história que se desdobrou em várias ações, contendas politicas e na atualidade é o SEI.
 
   Foi Mangabeira com a Escola Parque de Anisio Teixeira e apoio da classe empresarial e financeira que começou a modelar ações sociais. Em 1950, o Estado totalizava 4.834.575 habitantes e Salvador 417.235 habitantes (8.6% do total). Essa média vinha desde 1900 (9,0%); 1920 (8.5%). Dos 418 mil mais de 320 mil eram pobres. Pobre não significa desoneste, nem miserável. mas um ser que sofre bastante para sobreviver com dignidade.
 
   A explosão demográfica de Salvador e RMS vai acontecer na década de 1970 (a cidade chega 1.000.000 habitantes) quando projetos industriais, habitacionais e de infra aconteceram sobre a partir da implantação do Poló Petroquímico de Camaçari (Governos Geisel/Luis Viana Filho) e no decorrer das décadas seguintes vira o que se chamou de “cidade dormitório”.
 
   Ademais, a cidade recebeu uma quantidade imensa de retirantes das secas ao longos anos 1960/1980 uma vez que já corria no interior que o lugar dos empregos era Savador e sua RMS.
 
   Mas, onde colocar tanta gente? Nos guethos, nas encostas, nas baixadas, onde fosse possível. Mas essa não foi uma ação dos governos e sim popular e politica (algumas invasões foram articuladas por candidatos a vereador e vereadores) feita de forma aleatória e como fosse possivel e a cidade inchou. 

   Em mais 30 anos a partir de 1970 dobrou de população para mais de 2.000.000 de habitantes e, hoje, 2.600.000 o que representa 18% do total do estado e a RMS com 4.000.000 significa 34% da população do estado estimada em 15 milhões de individuos. Veja que, Salvador, na década de 1940/1950 tinha população correspondente a 8% do estado. Hoje, 18%. Subiu 10% só que na casa dos milhões. 

   Em resumo final, não há governo que consiga resolver esse problema de forma estrutural e nem há projetos nessa direção. O que existem são paleativos e ações até de grande alcance na mobilidade, na saúde, na educação, mas não alteram os padrões econômicos e as pessoas (os individuos, as familias) continuam pobres. Agora, também, com um agravante que algumas áreas da cidade estão (quase) sob controle do crime organizado.

  Essa é a situação da cidade do Salvador, hoje, uma das mais violentas do pais, bela, exuberante na parte fisica, porém, muito desigual e louve-se os programas dos três governos e as ações empresariais. (TF)