Cultura

MEMÓRIA DO CINEMA COMO ESPAÇO MULTICULTURAL, p LILIANA PEIXINHO

*Liliana Peixinho - Jornalista, memorialista, ativista humanitária.
Liliana Peixinho ,  Salvador | 14/03/2025 às 15:12
Seu Rubens e seu filho, Robson,
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O entrevistado sobre o valor do  cinema como espaço multicultural com projeção de filmes, apresentação de shows musicais e de teatro, é seu Rubens Pereira de Souza.

Nascido em 21 de abril de 1942, desde menino, seu Rubens trilhou a vida no caminho dos sonhos, como operador de máquina de filme, nos Cine e Theatro São José e no Cine Popular, entre os anos 1950 e 1980,  na cidade Senhor do Bonfim, norte da Bahia. 

Logo ao chegar na casa de seu Rubens, no Bairro  do Mercado, lugar de muitas memórias coletivas da cidade, o abraço de saudação, carregado de emoções,, choro de alegria, pelo reencontro com um tempo potente em cultura, amizade, cuidado familiar, afetos.

Seu Rubens e seu filho, Robson, receberam a reportagem, numa manhã de sexta-feira, como num ritual do túnel do tempo. O sofá da sala foi espaço  de resgate de fatos históricos, sessão de mostra fotográfica, regadas a emoções, alegrias. 

O filho Robson, herdou do pai o gosto pelo registro de imagens, e considera seu Rubens, "O último dos Moicine". Na potência de lucidez, bom  humor e lembranças de um tempo precioso de vida, a conversa, fluida e leve, atravessou o tempo entre os anos 50, até hoje, mais de 70 anos depois.

Seu Rubens conta que antes do Cine São José as paredes de armazens da cidade eram usadas para passar filmes. Juntava gente que vinha entregar mercadoria e no improviso do entretenimento o povo sentava nos caixotes para ver filmes  romântico, de faroeste, aventura, comédia.

Filho de seu Zezinho, que era sapateiro, eletricista e tocador de clarinete, seu Rubens herdou do pai - como primeiro operador do Cine São José, anos 50, o gosto pelo trabalho na máquina de projeção.

A história de seu Rubens com o Cinema começou ainda criança, com seu pai, no Cine São José, e foi até depois do nascimento de seus três filhos. Um deles, Valberto, o "Val",  nasceu no estúdio, ao lado de máquinas de projeção, no Cine Popular, que ficava ao lado do Cine São José.

Quando criança ele ficava ao lado do pai, seu Zezinho pai, observando o manejo com a máquina, ao mesmo tempo que adorava assistir aos filmes, ali mesmo da cabine de operação. 

Seu Rubens conta que seu pai trabalhava no Cine e Theatro São José com Rafael e o filho Rômulo. Depois que o pai faleceu, em 1954, seu Rubens foi colocar em prática o que aprendera, quando criança, ao lado do pai, e foi operar a máquina cinematográfica, junto com seu irmão, "Romo".

Como operador, seu Rubens trabalhou de 1957 até o fechamento do Cine e Theatro São José, em 1983.

Seu Rubens acompanhou um tempo onde a luz era gerada por motor e o gerador era ligado às 18 horas. A cidade ficava às escuras, depois das 23 horas .

O cinema funcionava com gerador próprio e a sessão começava às 20 horas e ia até a fita acabar. Depois, com a energia pública, vieram as sessões de matinês.
 
Seu Rubens é testemunho de um tempo onde os filmes viajavam de trem, chegavam em caixas pesadas de latas de alumínio, e  eram carregadas em carroça, da Estação Ferroviária da Leste. Depois de exibidos em um cinema, os filmes eram enviadas para outras cidades. Em Juazeiro, por exemplo, seu Peixinho e o sócio seu Nilton, promoviam sessões de filmes em salas de exibição que criaram. Os filhos mais velhos de seu Peixinho, Raul e Liliana, relatam histórias, do final dos anos 60 e início de 70, sobre como as latas de filmes viajavam de cidade a cidade. Em Juazeiro, por exemplo, eles ajudavam o pai,  e  pegavam o ônibus da  empresa Joalina, para levar um filme que tinha acabado de passar no Cine São Francisco, na rua 

 Apolo, para passar na sala de projeção em Ipiranga, bairro vizinho à cidade de Juazeiro.  

Seu Rubens relata, com emoção, sobre    o movimento na cidade, onde o cinema era um espaço de entretenimento, com vários acontecimentos culturais, um lugar mágico, belo,alegre, romântico.

Além dos filmes o Cine Theatro  

São José também promovia shows de artistas famosos, como Nelson  Gonçalves, Luiz Gonzaga, Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Jackson do Pandeiro. A então estudante de Magistério do Colégio Sacramentinas, anos 70,  Maria Vilma, lembra que assistiu aos shows de cantores como  Jerry Adriane, Márcio Greik e Evaldo Braga.

Os filmes e artistas circulavam pela região 

O sistema de distribuição de filmes e contratação dos artistas era reproduzido em outras cidades da região. Empresários, promotores culturais, como  Sabino Ferreira Peixinho, "seu Peixinho", depois de atuar em Juazeiro,  mudou-se para  Carnaiba (de Baixo e de Cima)- município de Pindobaçu, onde, no início dos anos 70, estruturou espaços de cinema e shows musicais de artistas  consagrados, numa espécie de turnê, pela região. Foram muitos artistas, como Wanderley Cardoso, Agnaldo Timóteo, Nelson Gonçalves, Luis Gonzaga, Waldick Soriano, que se apresentaram nos palcos do cinema, levando cultura para rincões de um povo sedento de entretenimento.

Em Senhor do Bonfim, seu Rubens lembra de episódios marcantes como  num show de Agnaldo Timóteo, quando uma pessoa levou um solavanco do cantor porque, sorrateiramente,  apalpou o bumbum do artista. Lembra que antes do show de Altemar Dutra, o cantor pediu a seu Rubens para conseguir um wisky, o que prontamente se mobilizou para providenciar. 

Filmes longos 

Seu Rubens relata sobre os filmes muito longos, de duas a três horas de duração, com até mais de 10 rolos de fitas. Nesses filmes, diz ele, fazia-se um pequeno intervalo onde o público saia do prédio do cinema para ir  lanchar, tomar um sorvete na rua.

Quando a fita enganchava e tinha que emendar, o público, sentado em cadeiras de madeira, com encosto, aproveitava para chamar o baleiro e  oferecer para sua paquera, ou namorada, um bombom, um chiclete, um pirulito,num clima onde o cinema era espaço de entretenimento, com vários acontecimentos  culturais. 

Incentivadores

Seu Rubens lembra como era feita a divulgação: "Os cartazes dos filmes eram expostos em lugares como a praça da igreja, na porta do cinema, nas esquinas e  também no Hotel de seu Peixinho, que era o mais badalado da região, onde se
recebia muitos artistas, viajantes, e era localizado no centro da cidade, na rua Rui Barbosa. Seu Peixinho era muito popular e gostava de promover a cultura, de forma amigável,e atenciosa", relata seu Rubens. 

Com emoção, seu Rubens fala sobre o  movimento que o Cinema provocava na cidade.  "As longas filas de pessoas para entrar no cinema,  chamava atenção de toda a cidade. Era muita gente e as filas arrodeavam o prédio do Cine São José até a esquina da Praça Nova do Congresso", diz ele com os olhos brilhando, refletindo a alegria ao ver tanta gente para ver os filmes que ele era o responsável em projetar as imagens para um público que assistia aos filmes como histórias mágicas. 

O dia que o "mudo Piroca" falou 

Era um domingo, dia de Cinema, e o filme em cartaz "Átila- Rei dos Unos", assistido com muito sucesso, naquele domingo, chamou atenção da cidade. Cartazes foram colocados nas esquinas,  anunciando o  filme, com fotos e nomes dos protagonistas. Na segunda-feira o filme seria reprisado. Os telespectadores foram surpreendidos com o aumento do valor do bilhete. O povo, principalmente jovens estudantes, não concordou com o aumento do ingresso, ficaram indignados e na segunda-feira,  tomaram o local do cinema e fizeram passeata. Os "macacos" (como eram chamados os policiais, os volantes) foram acionados para conter o protesto, e o "soldado Jesus" chegou e disparou um tiro de alerta para dispersão da multidão. O tiro  bateu nas pedras da calçada e os estilhaços de pedras portuguesas atingiram e feriram, várias pessoas da multidão. O "mudo Piroca", que trabalhava na portaria, de tão assustado,"falou", chamando atenção sobre a agonia.  

Seu Robson conta que seu pai,  Rubens, o irmão Rômulo, e outros funcionários do cinema, saíram pelos fundos, pularam o quintal do cinema, para o quintal da casa de Cândido Augusto, defronte à Praça Nova. Foi muita confusão. O cinema só voltou a funcionar dias depois.

 Histórias remotas 

Seu Rubens fala que o funcionamento do Cine São José  foi iniciado por Afonso Cavalcante, que segundo diziam, tinha cinemas espalhados por todo Brasil. E era considerado o " homem de Hollywood" aqui no Brasil. 
Sobre as administrações do Cine São José, diz que passou por diversas pessoas, como seu Dantas, que comprou do Antônio Teixeira, lá nos anos 60/70.

Crise 

No início dos anos 80 o Cine São José, e outros, Brasil afora, foram atingidos por uma forte crise, diante do surgimento das locadoras de vídeos. Em 1983 um primo de seu Rubens, Rafael, veio de Salvador e  arrendou o cinema para tentar revitalizar o espaço cultural. Mas, no mesmo ano, o Cine São José foi fechado. E daí em diante a "febre" de locadoras de vídeos levou ao fechamento dos cinemas. 

"Várias locadoras de vídeo cassete surgiram em Senhor do Bonfim.  A primeira foi a de Bobô, depois a Mega Vídeos, e a Vídeo Cine Buck Jones", relata um dos filhos de seu Rubens, Robson, que foi funcionário da  Buck Jones, locadora de propriedade do primo, Rubens.

Como jornalista apaixonada por Cinema, filha de pai com a mesma paixão e mãe de filho cineasta é alegria e prazer poder resgatar os relatos dessa família, que começou na projeção de filmes no Cinema e continuou se dedicando, em compromisso e amor à arte cinematográfica, a fazer registros de imagens de eventos, aniversários, casamentos, pautas do cotidiano coletivo social. 

Entre presentes de fotos antigas, fotos antigas,  boas lembranças e conversa boa, com Rubens e seu filho Robson- que gravou a entrevista- ficou o incentivo para se voltar a assistir filmes nas salas de cinema Brasil afora e voltar ao costume de na saída do cinema fazer comentários sobre o enredo, a atuação dos artistas num movimento de cultura potente sobre o valor dessa arte grandiosa.