Cultura

LITERATURA: ROSA DE LIMA COMENTA SEMPRE PARIS DE ROSA FREIRE D’AGUIAR

Obra foi escolhida como livro do ano pelo Prêmio Jabuti, 2024
Rosa de Lima ,  Salvador | 18/01/2025 às 09:40
Livro do ano Jabuti 2024
Foto: BJÁ
   
    São tantas as adjetivações e livros escritos sobre Paris que teríamos enorme dificuldade em selecionar quais as melhores. É provável que a mais citada seja "Cidade Luz" por sua iluminação às noites que é como se estivéssemos andando a luz do sol e esse dizer remete a muitas coisas como as relacionadas ao rei Sol, Luís XIV, ao brilho do sol sobre o Sena, ao iluminismo, a luz que abre mentes deixando-as mais arejadas, mais repletas de saber e a luz que ilumina novos caminhos. 

     Enfim, direciona a tantas luzes que se profetiza, como dizia Danuza Leão - uma das pioneiras do Brasil a se alimentar dessa luz - que a cidade é um visgo, algo incompreensível de descrever, porém, quem a visita e sorve a suavidade de seus ‘blanches’ e o sabor dos seus cafés ou fica para sempre ou retorna frequentemente, até a morte. 

    Alguns e algumas espécimes nunca retornaram e estão vivendo a eternidade nos campos floridos e tumbas de Pére-Lachaise e Montparnasse. E outros como a jornalista Rosa Freire D'Aguiar retornaram e nos presenteia aos amantes de Paris e da Literatura com o requintado "Sempre Paris - crônica de uma cidade e seus escritores e artistas" (Companhia das Letras, livro do ano Prêmio Jabuti 2024, capa e coleção de imagens Violane Cadinot, foto da capa acervo da autora, 331 páginas, R$61,58 Amazon) um livro prazeroso, encantador. 

   D'Aguiar (que não é parente de D'Estaing) escultura cenários de Paris cidade onde trabalhou nos anos 1970/1980 como jornalista correspondente da Manchete, da Isto é e ‘freelancer’, viveu intensamente a cena parisiense (foi casada com o exilado Celso Furtado) e esteve além Paris cobrindo eventos na Espanha, Líbano, China e outros.

    Na primeira parte do livro a jornalista retrata sua autobiografia (sem ser diretamente isso) mostrando a vida cotidiana em Paris e apontando locais que naquele momento eram os mais frequentados pela intelectualidade, o que não havia mudado muito em relação a anos anteriores - da Geração Perdida de Gertrudes Stein e Ernest Hemingway (anos 1920) e pós II Guerra Mundial (anos 1950/1960), de Danuza Leão e Samuel Weiner, porque a cidade mantém suas tradições com um apuro impressionante e os sítios históricos permanecem os mesmos desde o Louvre e a igreja de Saint Geneviève, os cafés idem idem o Le Deux Magots e o de Flore, em Saint-German-des-Prés, onde, até eu, estive neles, recentemente.

   Mas ela fala de outros como o de la Paix o preferido Eça de Queiroz, dos locais em que residiu no Marais pertinho da Place des Vosges, até hoje, um dos mais desejados de se residir na cidade, das transformações da sociedade europeia a partir de alguns movimentos que aconteceram em Paris, desde os anos 1960 as mudanças de presidentes à direita e à esquerda, os exilados – brasileiros e estrangeiros, sobretudo os latino americanos, a cidade libertária e pouso de revolucionários de todas as matizes.

   Enfim, traça um retrato de uma época numa Paris ainda uma espécie de capital mundial da cultura ocidental e ao mesmo tempo uma cidade acolhedora de almas revolucionários e que queriam e lutavam para mudar as vidas dos seus países, muitos deles, como o Brasil, vivendo sobre os tacões de ditaduras militares.

   Rosa é sutil, extremamente cuidadosa em suas observações, discretíssima nas suas relações pessoais e de afeto com seu parceiro Celso Furtado e os leitores e as leitoras, como eu, imagino que ficam curiosas em saber um pouco mais da sua relação pessoal, porém, ela não abre nenhuma porta e se detém no essencial.

    Ainda assim, dei-me por satisfeita e deduzo que as demais pessoas que lerem o livro também vão achar isso, a Rosa discreta, essencial, oferecendo um panorama básico de Paris, sua arte, sua cultura, o quase fanatismo pela literatura, o que é o mais importante e o básico para entender o livro e seu significado. 

   O livro, que se diga aos menos avisados, não é roteiro para se conhecer Paris nem o objetivo da autora foi esse. Portanto, o fundamental básico é servido com toda astúcia. O que também significa dizer aos aficionados e entusiastas da cidade que há dicas bem interessantes não só nesta parte do livro, mas também nas entrevistas, de citações de locais e centros de cultura e outros que merecem ser conhecidos, ao menos. 

   O local – por exemplo – em que viveu o alatoiá Khomeini antes da derrubada do Xá do Irã, Reza Pahlavi, é um deles - Neuphie-le-Châteu - nos arredores de Paris, onde Rosa lá esteve para entrevistá-lo à beira da Revolução Islâmica, de 1979.

    Confesso que gostei mais da segunda parte do livro a que contém um apanhado resumido das 21 entrevistas que publicou em Manchete e outros, em especial, as de Alain Finkielkraut – o pensamento indignado; Ernesto Sábato (entre a ciência e a literatura; François Giroud – a insustentável condição feminina; Jorge Semprún – os combates de um romancista; Julio Cortázar – umna canção do exilio; Raymond Aron – o espectador lúcido; e Romain Gary – vida múltipla de um provocador. 

   Quando afirmo que gostei mais é porque nessas entrevistas, algumas delas de personalidades que não conhecia, nem todos eram escritores, há ensinamentos e observações que nos ajudam a pensar mais e a compreender como era aquela época, não muito distante dos dias atuais, porém, ainda isenta dos meios modernos de comunicação onde “cancelar” e “maltratar” o pensamento, sobretudo o alheio, é recorrente. 

   Pensava-se, confabulava-se, agia-se muitas vezes na sombra com o direito de fazê-los pelas letras e artes sem os grilhões dos donos da verdade, os ideológicos atuais.

   A entrevista com Norma Bengell é esclarecedora com uma mulher de visão independente ainda hoje vista no Brasil como uma espécie de símbolo sex, mas, na verdade, esta sim, uma guerreira plena, que venceu com a força do seu talento e arte no teatro e no cinema.

   Impressionou-me, ademais, o argentino Ernesto Sábado: “A ciência é amoral, é alheia aos valores éticos. Isso é um fato, não é uma acusação. A ciência cinde o homem, separa o abstrato do concreto, o racional do irracional, o corpo da alma. É uma espécie de alienação. () Era tradicional na Argentina como em muitos outros países, a ideia de que a politica é suja. A politica é real e a realidade é suja. Só o mundo platônico é limpo. Temos sempre que sujar as mãos”.

   A entrevista com Sábato foi em 1981 o escritor argentino faleceu em 2011. Veja, no entanto que o que disse, é atualíssimo nos dias de hoje. Como são muitas as observações feitas pelos escritores, filósofos e artistas entrevistados por Rosa e ela abre a série com o filósofo Alain Finkielkraut, entrevistado em 1991: “Hoje, o intelectual alinha seu comportamento e sua produção às normas da mídia. () Vivemos a utopia da cretinização”.

    O mais que digo é que ler “Sempre Paris” é uma aula que transcende a materialidade das coisas, é metafísico.