Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA O LIVRO "O QUARTO DE GIOVANNI", DE JAMES BALDWIN

O cenário á a cidade de Paris nos anos 1950 e a homossexualidade em vários níveis e sentimentos
Rosa de Lima ,  Salvador | 14/12/2024 às 09:22
Editado no Brasil pela Companhia das Letras
Foto: BJÁ
  
  James Baldwin (1924/1987) é um polemista. Escritor negro nascido no Harlem autor de ”Go Tell It on the Moutain” (Vá diga a ela sobre a montanha) um dos livros mais relevantes da temática negra nos Estados Unidos, em sua época, 1953, quando teve a coragem a lucidez de não e engajar nos movimentos radicais antirracistas o que lhe permitiu o livre pensar, enamorar-se e viver um tempo com um homem branco suíço, em Paris, e capacidade literária e pessoal de enfrentar Malcom X a Eldridge Cleaver (Panteras Negras).

   Já comentamos neste BJÁ sobre a sua obra de estreia publicada pela Companhia das Letras, “Notas de um filho adotivo” (versão em português do “Go Tell) seu livro emblema e que contém a visão do negro sobre o negro nos EUA, o qual teve um tumultuado relacionamento com seu pai e descreve os negros de sua família e do Harlém – por extensão dos Estados Unidos – de não entenderem seu papel na sociedade, ou ao menos como ele imaginava que deveria ser. 

   Agora, falaremos do seu segundo livro intitulado “O quarto de Giovanni” (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henrique Britto, 7ª impressão, capa Daniel Trench, 229 páginas, R$46,10 Amazon) introdução de Colm Tóibín, posfácio de Hélio Menezes (James Baldwin e os desafios da (des)classificação; e Márcio Macedo – Um perfil de James Baldwin.

   São livros distintos (o primeiro e segundo) porém enraizados nos pareceu com o mesmo DNA de um autor que, por não ter um engajamento político com a causa antirracista, sobretudo como se esperava dele (lembra um pouco o que se falava de Pelé, no Brasil, embora o rei do futebol não tivesse o dom das letras e sim da bola), se sentia livre para abordar temas mais abertos, sem necessariamente focar diretamente a causa dos negros.

   E no “O quarto de Giovanni” escreve um romance onde a trama se passa entre o amor de um norte-americano exilado voluntário em Paris (David, personagem que, obviamente se assemelha a ele, negro e homossexual) e um bartender italiano, belo, sensual, encantador, branco (Giovanni), o quarto, o cubículo onde moravam, e uma terceira personagem (Hella, namorada de David) que partira para a Espanha com o objetivo pouco claro, do tipo ‘dar um tempo no namoro’, ambos, também apaixonados e que esperavam um pelo outro.

   É nesse clima de solidão, vivendo com poucos recursos em Paris (pós década perdida de Ernest Hermingay e Gertudes Stein, anos 1920), obra ambientada nos anos pós II Guerra, década décadas de 1950/1960 que David com as fraldas de fora porque seria expulso do hotel onde morava, por falta de pagamento, vai a um bar, toma todas ou quase todas, e se apaixona por Giovanni. 

   O autor, no entanto, não vai revelar essa paixão de imediato, do tipo amor à primeira vista e declarações primárias e burlescas e o faz milimetricamente, aos poucos, conduzindo os leitores com sua pena sutil, psicanalista, indo morar no quarto onde Giovanni residia, nos arredores de Paris, o que é típico na capital francesa, algo pequeno, insalubre, feio, escuro com uma pequena janela, porém onde se aproximam no amor (Giovanni mais explícito e aberto do que David, este mais fechado, reflexivo e angustiante) e na desconfiança um do outro sem saber se o romance seria duradouro ou não.

   E é neste quarto que o autor põe os dois juntos, não logo diretamente agarrados e trocando juras de amor beijos e penetrações, levando-os a se conhecerem e é aí que Baldwin mostra toda sua maestria e aborda temas como a incerteza, a dúvida, a gratidão, o sentimento de traição por Hella e também encaixa todo o cenário mundano de Paris com os boys de programas, as bichas velhas (termo usado na época) ricas paqueradoras e gastadoras, as drogas (o álcool em especial), a sociedade tradicionalista mas nem tanto (nessa época praticar o homossexualismo era um crime nos Estados Unidos, ainda mais a fazendo um negro e em Paris era livre, porém, a sociedade mais aberta recriminava), os imigrantes e suas dificuldades de sobrevivência na cidade do glamour – e o livro se torna sublime, doce, apaziguador e ao mesmo tempo um suspense, uma tragédia shakespeariana.

   Situa o autor: “Lembro que a vida, naquele quarto, parecia transcorrer no fundo do mar. O tempo fluía acima de nós, indiferente; horas e dias nada significavam. No início, nossa vida em comum continha um êxtase, é claro, havia angústia, e por trás do deslumbramento, medo, mas esses sentimentos só começaram a se impor quando nossa empolgação inicial já amargava em nossa boca. Então a angústia e o medo passaram a ser a superfície na qual escorregávamos e deslizávamos, perdendo o equilíbrio a dignidade e o respeito. O rosto de Giovanni que eu havia memorizado em tantas manhãs, tardes e noites, foi endurecendo diante de meus olhos, começou a ceder em lugar secretos, a rachar”.

   Eis, pois, o âmago do romance. Na medida em que sua namorada Hella estava voltando à Paris para se encontrar com ele, David ainda sentido uma forte atração por ela, porém, sem a mesma força de então porque no caminho, na trajetória de sua viagem havia aparecido Geiovanni (com quem morava) e, mais ainda, existia na sua cabeça a dúvida de que, no tempo pedido por ela para viajar a Espanha não encontrara por lá um novo amor, e isso também o incomodava, é quando a recebe de volta e a acolhe com todas essas dúvidas.

   No momento em que se separa de Giovanni (deixa o quarto para se apaziguar com a namorada) o italiano entra em parafuso, abre-se um mar, não para passar um Moisés bíblico sobre as águas, mas um mar turbulento, um naufrágio. – Não sei o que faria se você me abandonasse – diz Giovanni. – Pela primeira vez senti um toque de ameaça em sua voz, pensa David.

   Há, portanto, uma mudança de tons no romance de doce para mais amargos, mais ásperos, repletos de incertezas e o autor o conduz para um fim trágico com a morte de Giovanni, o qual perde o emprego e mata o dono do bar em que trabalhava (Guillaume, bicha sedutora aristocrata da alta família francesa), há tempo para manter um fugaz encontro com Jaques (outra bicha endinheirada que o acariciou com dinheiro nalgum momento), a separação de Hella de David, a melancolia e uma estrada aberta diante dos sobreviventes que o autor deixa que os leitores completem com seus pensamentos. 

   Cada qual, portanto, tendo um rumo, dois à morte, Hella livre para novos pensares (e amores) e David com o quarto e o amor de Giovanni presos à sua cabeça e Jaques a conquistar novos boys com seu dinheiro. 
   - Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei homem, fiz desaparecer o que era próprio da criança. Anseio por fazer com que essa profecia se cumpra. Anseio por quebrar esse espelho e libertar-me. Olho para meu sexo, este sexo incômodo, e me pergunto como redimi-lo, como salvá-lo da lâmina”, traduz Baldwin seus anseios através do personagem David.

   “O Quarto de Giovanni” é um livro profundo, reflexivo, sem ditar ensinamentos, uma viagem num mar que se abre e se fecha onde o autor deixa espaços para que os leitores reflitam, pensem e entendam um traço da sociedade parisiense e mundial onde se relacionam imigrantes, nativos endinheirados, um sistema policial e político discriminatórios, a homossexualidade e o amor numa cidade (Paris) que seduz e muitas vezes leva pessoas à lâmina.