Cultura

GORDO que tem fé vai ao Bonfim, mas só de carroça, por OTTO FREITAS

Uma passadinha rápida no Uruguai é de lei, para petiscar a moqueca de colhão de boi na casa de dona Judith, uma negra gorducha e risonha que é devota de Oxalá, orixá sincretizado com o Senhor do Bonfim
Otto Freitas , Salvador | 07/01/2013 às 10:04
Aí de carroça andei, compadre...e o burro empacou...
Foto: A TARDE

Quem tem fé só vai ao Bonfim a pé e descalço, como fazia o povo, antigamente, sempre vestido de branco. Jeffinho tem fé inabalável, mas só vai à Lavagem do Bonfim de carroça. Afinal, gordo não aguenta caminhar tanto, e muito menos subir a ladeira até a Colina Sagrada, por mais fervorosa que seja a sua crença.  Ainda mais que essa distância é assunto controvertido: uns estimam em 8km, outros em 13km. Jeffinho prefere acreditar no seu amigo José Raimundo, repórter de primeira que tem credibilidade e já fez o percurso várias vezes. Zé garante que são aproximadamente 8km.

Muita gente chega cedo à igreja da Conceição, perto do elevador Lacerda e bem em frente ao Mercado Modelo. Católicos, gente de candomblé e o povo em geral chegam para as orações e para ouvir a missa campal, no pátio da igreja. Depois, é a hora da partida: “Aí de carroça andei, cumade/Aí de carroça andei, cumpade...”, diz o famoso samba Ilha de Maré, de Walmir Lima e Lupa.

Todos seguem o cortejo, puxado pelas baianas, geralmente ligadas ao candomblé (antigamente, na frente iam os cavaleiros, carroças e bicicletas enfeitadas que já não integram mais a festa oficialmente). Quem vai a pé tem pontos estratégicos de paradas, ao longo do percurso, até a igreja do Bonfim. Há quem prefira, antes de iniciar a caminhada de fé, tomar uma, duas ou três e comer feijão no Mercado Modelo, para dar mais sustança nas pernas.

A romaria segue pelas ruas do Comércio, passando pelo Mercado do Ouro, primeira parada profana, para uma gelada e beliscativos. Depois vem a Feira de São Joaquim, o largo da Calçada e a estação central do trem. Por fim, o largo de Roma e a Baixa do Bonfim. Agora é só subir a ladeira. A multidão se espalha pelas barracas de comida e bebida, na Baixa do Bonfim e no alto da Colina, do entorno da igreja até o Belvedere.

Valendo-se de outros versos do samba de Walmir Lima, Jeffinho descreve esse momento: “Ah! Quando eu cheguei lá no Bonfim/Minha senhora/E da carroça enfeitada eu saltei/Com água, flores e perfumes/A escada da Colina eu lavei/Aí foi que eu sambei, cumade/Aí foi que eu sambei, cumpade”.

 

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Porque já é tradição na família, Miguelzinho de Maria, que é meio parente de Jeffinho, não perde a Lavagem do Bonfim por nada nessa vida. Como ele tem fé, só vai a pé, repetindo todo ano o mesmo ritual: sai puxando sua gordinha pela mão e comandando a turma formada por irmãs, primos, primas, tias, tios, cunhados, amigos e agregados - todo mundo de branco, cheio de fé, mas apegado demais a uma esbórnia.

Bibi Salgadinho não larga o pé de Bola, um ex-gordo metido a garanhão. Agoniado, se bulindo todo, ele não tira o olho das bundas incautas que vicejam nessa caminhada. De vez em quando, Bola não se contém e passa a mão - mas Bibi, elegantemente, finge que não vê.

A Francesa, toda bela e chique, com seu chapelão para proteger a alva tez de pêssego, não abandona a fé, nem o cálice sagrado de vinho branco bem gelado. Nanath, que é praticamente uma deusa morena de olhos verdes - ainda mais agora que ficou magrinha, depois da bariátrica - jurava que esse ano voltaria da Colina Sagrada levando para casa um Adonis particular para chamar de seu.

De tão eufórico e feliz, Miguelzinho de Maria, certa vez, fez um relato diretamente da Colina Sagrada, via SMS, pois embora seja um guardião das tradições baianas, não abre mão de toda a tecnologia embarcada:

“Tudo começou com um caldinho de feijão e um naco de choriça. Claro que a fé veio junto! Passo vai, passo vem, chegamos em Água de Meninos. E tome quibe, regado a cerveja, para os chegados, e água para os chegados também.

Uma passadinha rápida no Uruguai é de lei, para petiscar a moqueca de colhão de boi na casa de dona Judith, uma negra gorducha e risonha que é devota de Oxalá, orixá sincretizado com o Senhor do Bonfim. Todo ano, no dia da Lavagem, ela abre a casa em concorridas comilanças com samba de roda.

De vez em quando, acompanhamos um grupo de sopro e percussão, popularmente conhecido como chupa-catarro. É para sacudir o corpo e botar ainda mais fé, música, samba e alegria nessa jornada tão religiosa quanto profana.

Entramos na avenida Dendezeiros e eis que vejo a igreja do Bonfim, no alto da Colina. Lá em cima, benção, flor, cheiro, proteção. Daí é Pedra Furada. Siri-bóia, porque mole não tinha; e muita, muita agulhinha do lombo branco frita - e cerveja vai, cerveja vem, tudo certo, tudo lindo, lindo mesmo!

No fim da tarde, o por do sol doura o sabor de uma big feijoada no Porto da Lenha. Daqui a pouco vamos para casa. Voltamos cansados mas felizes porque cumprimos nossa obrigação com o Pai Velho”.