As feministas de Serrinha não faziam passeatas nem eram de alardes, mas exercitaram mudanças de padrões da sociedade local
Tasso Franco , da redação em Salvador |
31/12/2012 às 11:41
Um ciclo que se encerra com a morte de Florinda Castro
Foto: DIV
Neste dezembro faleceu em Serrinha, a senhora Florinda Almeida Castro, 86 anos de idade, professora de várias gerações. Eu, quando pequeno, iniciei meus estudos primários na Escola Agripino Barbosa com a professora Edna Santos, irmã de Lourinho (ex-prefeito Horiosvaldo Bispo dos Santos) e filha de Manoel Chileno.
A escola ficava a uma quadra da casa de Chileno, onde hoje se situa a clínica médica de Zévaldo.
Serrinha, naquela época, anos 1950, tinha somente uns dez veículos e poucas ruas calçadas. Eu ia para escola a pé. Descia o Largo da Usina, atravessava uma parte do pasto de Manoel Devoto, pegava a Conselheiro Dantas, trecho da Praça Luiz Nogueira, passava em frente a casa do coronel Hortélio, dobrava pelo fundo do mangueiral do padre Demócrito e chegava à escola.
Achava a caligrafia de meu pai um primor. Lá um dia, antes de entrar para o ginásio, exame de admissão batendo à porta, meu pai disse: - Você vai melhorar sua letra, esse garrancho, aprendendo caligrafia com a professora Florinda.
E lá fui eu, às tardes, duas vezes por semana, com o caderno de caligrafia debaixo do braço, aprender a desenhar letras com dona Florinda.
Primeira ela dava aula de postura. - É assim que se senta pra escrever, me colocava na mesa de sua sala. Agora, faça o a-b-c-d-e-f todo o alfabeto nesta página, nos quadrinhos do caderno.
Depois, da-de-di-do-du; em seguida, dado-dama-dedo-dardo; mais nova aula com palavras de três e quatro sílabas: re-lo-gi-o; ca-der-no; sa-pa-to. Depois, frases: eu estou aprendendo a escrever; eu escrevo bonito. Finalmente, escrever frases no papel pautado do caderno sem o auxílio dos quadrinhos da caligrafia.
Meses depois ela mandou eu dizer a meu pai: - Diga a Bráulio que você está formado.
Entrei no ginásio escrevendo bonito. Ao longo dos anos visitava sempre dona Floriando, ainda agora, no século XXI, ela já velhinha morando na mesma casa da Conselheiro Dantas, rua onde viveram Arnaldo Cohim, meu dentias; Juca Cândido, onde comprava sapatos; Nelson Batista, Nozinho de Gode (Claudionor Ferreira); Simas Sobrinho; Sêo Barbosa; Sêo Antonio Viana, de uma sociedade bem patriarcal.
E sabe por que me lembrei dessas pessoas, de Bráulio Franco, Demá, Sinfroinho, Vilala, Zé Mota e tantos outros? Porque, nessa época dos anos 50/60 existia um trio de feministas em Serrinha (Florinda-Bela e Araci), de solteiras, respeitadíssimas, nada de garotas de programas, que namorava senhores casados da sociedade local.
Veja que o movimento feminista internacional, o Women'sLiberation, só prosperou nos EUA e no Reino Unido a partir de 1966, mesmo assim nos grandes centros, NY e London, numa segunda onda após o "sufragettes" dos anos 1930, quando a mulher teve direito ao voto, e essas senhoritas serrinhenses, silenciosas praticavam a libertação dos padrões da sociedade patriarcal local.
Serrinha, até inicio dos anos 1970, não tinha TV nem rádio e as informações chevam via A Tarde e a revista O Cruzeiro. Na Bahia, mais em Salvador, o Women's (liberação sexual das mulheres) só chegou a partir de 1972. Até então, os rapazes frequentavam os chamados cabarés e/ou night clubes.
Em Serrinha, esses night clubes ficaram na rua da Coreia, uma transversal da Cesata do Povo, nos dias atuais.
A gente pra ver as coxas de uma garota só nas festas de Carnaval do Clube (ACS) ou nos Miss Sisal e outros. Não havia piscina na ACS, nem mar, nem rio. Era uma secura. Daí a ousadia dessas solteiras.
E as nossas feministas eram censuradas? De forma alguma. Cada qual tinha seu parceiro, único, até a morte, amantes que eram conhecidas das esposas dos camaradas e até se davam, se cumprimentavam, ainda que nem todas.
E houve alguma briga, algum escândalo entre elas? Nada. Tudo na santa paz.
Estamos falando de Serrinha e não de Rio, Paris ou Londres: a sociedade aceitava numa boa, ninguém criticava (salvo a boca pequena) e as nossas feministas trabalhavam no comércio e como professoras, eram queridissimas e viveram assim, até a morte.
Não frequetavam o clube (aí era lugar das esposas), a 30 de Junho, as festas da igreja, nada. Anônimas, singelas, dedicadas.
A última que se foi chamava-se Florinda, de Flor, professora estimadíssima, também doceira de mão cheia, responsável pela confecção do bolo de casamento de minha irmã mais velha quando se casou com Tetéu, nos anos 1960.
E, com ela, foi-se também esse ciclo libertador da cidade. Hoje, os tempos são outros. (TF)