Cultura

RANGO NOTURNO, INSTITUIÇÃO SAGRADA E SEM PRECONCEITO, p OTTO FREITAS

VIDE
| 23/04/2012 às 08:00
Vida de Gordo: o rango noturno é coisa sagrada para ele
Foto: DIV
    Nutricionistas, endocrinologistas, pais-de-santo, cartomantes, numerólogos e toda a torcida do Bahêa ensinam desde os primórdios da humanidade: quem dorme em torno da meia-noite, já a partir das 18 horas deve evitar carboidratos e refeições pesadas, tipo mocotó, feijoada, dobradinha, sarapatel, carne vermelha, xinxin de bofe e afins.  


     Jeffinho sabe disso de cor e salteado, mas ignora a orientação solenemente.  Não está nem aí para essas regras e há muito incluiu em seu cardápio, por conta própria, o rango noturno.


    Como uma jam session de jazz ou de blues, o rango noturno deve ser servido à mesa, sempre por volta da meia-noite, em prato coletivo, tipo capitão, estreitando ainda mais a intimidade entre os comensais. Só deve ser compartilhado por familiares, amigos e amores cujos sentimentos com relação à comida, a amizade e o afeto sejam comuns. Nada tem a ver, portanto, com os assaltos à geladeira, no meio da madrugada, pois estes passam bem longe dos prazeres da mesa.


     À primeira vista, sobretudo para quem não é um iniciado, o rango noturno parece uma gororoba, uma aberração culinária, uma afronta ao bem comer, pois não há regras, vale tudo - de feijão com macarrão a maionese com farinha. Mas, para quem é gordo de tradição, trata-se de uma instituição sagrada, democrática, sem preconceitos. Quase todo gordo nutre esse hábito, é um adorador praticante, seguidor fiel.


    Feito como amor, paciência e criatividade, como exige uma cozinha decente, o prato assume formas e sabores de manjares dos deuses. Além de satisfazer o paladar, libera todas as endorfinas, mesmo as mais preguiçosas; o gordo fica todo feliz e dorme, feito menino, uma noite inteira de sono tranqüilo e reparador.  


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     Preparar um rango noturno requer curiosidade para experimentar, coragem para promover misturas inesperadas e, evidentemente, ausência total de preconceito. Jeffinho é um craque na arte de criar combinações inesquecíveis, valendo-se apenas de sobras dormidas da geladeira, tipo feijão de currute, macarrão grudado, carnes moídas ou de ensopado, miúdos de frango e salada de maionese.


      Joga-se tudo junto na panela, acrescentando-se uns poucos ingredientes da dispensa, mesmo os aparentemente incompatíveis, pois afina o sabor. Para arrematar, doses generosas de azeite de oliva e de manteiga, além de farinha, molho de pimenta e uns três ou quatro ovos fritos por cima, a depender da quantidade de pessoas à volta. Depois esquenta, mexe e serve, tudo junto e misturado. Para acompanhar, fatias de pão francês e Coca Cola.


      Levou tempo para Jeffinho dominar inteiramente esse conhecimento, adquirido ainda na adolescência e aprimorado, sobretudo, nas noites em claro, preparatórias para o vestibular. Desde a adolescência, acostumou-se a experiências inusitadas como comer abará frito e pimenta com pão; só tomava chope de dois em dois e traçava, de uma só vez, uns 20 abarazinhos de dona Zefa, que só armava seu tabuleiro por volta da meia-noite.


      Até hoje, antes de dormir, Jeffinho trava a dura batalha entre o bom senso e a vontade. Fala sozinho, em voz alta, tentando se convencer de todos os males que o rango noturno lhe causa. Mas a vontade sempre vence; Jeffinho perde todas, junto com seu bom senso.  


     Nada de chazinho, leitinho quente, ou frutinha antes de dormir. O rango noturno reina impávido, colossal, entre a mesa e os sonhos do gordo, convicto quanto à dimensão da própria felicidade.



* Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br), 58 anos, é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há quase 40 anos, em revistas, jornais e TV; comunicação corporativa e jornalismo digital.