Dom Franquito sempre foi um anfitrião generoso, costumava levar os amigos mais chegados da capital - além de Jeffinho, os irmãos italianos Reno e Rino, Nego Victor e Pedro Bó. Sem contar Dom Fernando, galã inteligente, criativo e divertido, famoso pé-de-valsa disputadíssimo pelas moças da cidade, durante as festas no clube; e o Dr. Peixe, um grandalhão tímido e discreto cujo ronco sinfônico ecoava pelo buraco do vento, lá pras bandas do Tucano.
Os amigos daqui eram recebidos pelos amigos e parentes de lá com suas casas e corações abertos, como fazia o encantado e sempre sorridente Lió. Daí, tudo virava uma festa, regada a muita dança, cachaça, comida farta e bem querer. Foi assim que Serrinha contribuiu, ao longo do tempo, para que Jeffinho seguisse engordando o corpo com as calorias e enriquecendo a alma com momentos inesquecíveis.
Quando não havia propósito, inventava-se algum para passar o fim de semana ao pé daquelas pequenas serras que guardam a cidade. Mas algumas datas eram sagradas, como a Semana Santa, com a procissão do Fogaréu, em abril; o São João, em junho, e a vaquejada, em setembro - além dos eventos de família, quando se abriam os salões do aconchegante chalé da praça da Matriz, ao lado da Catedral.
A barca azul partia de Salvador geralmente no começo da noite. Depois de um rápido pit stop para uma cerveja com tira-gosto de requeijão com pimenta, em Santa Bárbara, acontecia a primeira parada oficial, logo na entrada da cidade: hora sagrada da costelinha de carneiro na brasa, em grelha improvisada sobre a fogueira, no descampado do posto de Nonô.
A madrugada fria fazia descer o nevoeiro, espécie de fog sertanejo, sobre o grupo de amigos em volta da fogueira, enquanto Dom Franquito comandava os pedidos das bebidas, alternando geladas e doses de Jangada, cachaça cearense cujas garrafas empalhadas traziam, além da pinga, muita alegria e calor.
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Em Serrinha, a programação diária, entrando pela noite, incluia petiscos, biritas e almoços durante visitas a amigos e parentes em seus sítios, roças e residências na cidade. Eram quase devoção as paradas em locais como a barraca de Djalma, no mercado municipal, para morder um jacaré (beber uma pinga) e comer tira-gosto de moela ensopada, e o Vagão, de dona Dina, onde a galera se reunia e atualizava as novidades, na companhia de uma cascavel (uísque com gelo) ou de uma loura gelada.
Foi em uma dessas jornadas, por exemplo, que Jeffinho comeu o melhor meninico de carneiro da sua vida, em casa de Ferreirinha, preparado pessoalmente pela patroa, dona Cira.
Vez por outra, a programação incluía ainda uma visita ao Jorro do Tucano, cerca de 70 quilõmetros sertão adentro, por estrada de chão. Era uma aventura divertida, em busca das deliciosas noites frias e dos banhos nas águas quentes e medicinais que jorravam sem parar de velhas tubulações solitárias no meio da enorme praça de terra batida. Em volta da praça havia apenas algumas casas, o hotel de Biliu e dois ou três botecos.
Jeffinho e Dom Franquito não dispensavam o bode fresco, frito, com farofa d´água, guarnecidos por doses de Jangada e cerveja gelada. No caminho de volta a Serrinha, faziam paradas estratégicas em bodegas de beira de estrada, para saideiras de geladas e codornas fritas. Já meio embriagados, se divertiam tentando acertar as bolas com tacadas na mesa de bilhar, considerando que colocá-las na caçapa, àquela altura, era tarefa impossível.
Quando a farra se esticava até de manhã, era de lei passar em casa de dona Maria do Mingau, no Beco da Lama, antes de dormir. Sorviam-se com prazer canecas da iguaria, de tapioca, milho ou carimã, ainda nos últimos momentos de fervura, em panelões sobre o fogo de lenha. Dona Maria, que morreu com quase 100 anos, a vida toda vendeu mingau na porta do mercado municipal.
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Por muitas vezes, naqueles anos 70, Jeffinho acompanhou, com fé e respeito, a procissão do Fogaréu, na quinta-feira Santa. Já era gordinho, mas ainda aguentava percorrer os cinco quilômetros pelas ruas da cidade até o pico do monte de Nossa Senhora Santana, ponto mais alto de Serrinha. Naquele tempo, só os homens podiam participar, levando tochas acesas improvisadas com vela comum e papel grosso ou papelão.
Hoje, século XXI, o mundo mudou, as mulheres agora também acompanham a procissão do Fogaréu, que em breve pode se tornar patrimônio imaterial da Bahia, com todo direito.
Serrinha cresceu, Jeffinho engordou e não consegue mais subir o morro até a imagem da santa. Mas até hoje se sente como um filho adotivo da velha e boa Serrinha de dona Zilda e de seu Braulio Franco.
* Otto Freitas ([email protected]), 58 anos, é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há quase 40 anos, em revistas, jornais e TV; comunicação corporativa e jornalismo digital.