Cultura

VIDA DE GORDO: SEMANA SANTA, FOGARÉU E OUTRAS HISTÓRIAS p OTTO FREITAS

VIDE
| 26/03/2012 às 10:00
Serrinha: mesa pronta para a "dieta" da Semana Santana
Foto: BJÁ
  Aquele lendário Opala azul 71 que Dom Franquito dirigia garbosamente pelas estradas do Brasil, nos anos 70, por muitas vezes desbravou caminhos além das portas do sertão da Bahia, especialmente em direção à velha e boa Serrinha.


   Dom Franquito sempre foi um anfitrião generoso, costumava levar os amigos mais chegados da capital - além de Jeffinho, os irmãos italianos Reno e Rino, Nego Victor e Pedro Bó. Sem contar Dom Fernando, galã inteligente, criativo e divertido, famoso pé-de-valsa disputadíssimo pelas moças da cidade, durante as festas no clube; e o Dr. Peixe, um grandalhão tímido e discreto cujo ronco sinfônico ecoava pelo buraco do vento, lá pras bandas do Tucano.


   Os amigos daqui eram recebidos pelos amigos e parentes de lá com suas casas e corações abertos, como fazia o encantado e sempre sorridente Lió. Daí, tudo virava uma festa, regada a muita dança, cachaça, comida farta e bem querer. Foi assim que Serrinha contribuiu, ao longo do tempo, para que Jeffinho seguisse engordando o corpo com as calorias e enriquecendo a alma com momentos inesquecíveis.


   Quando não havia propósito, inventava-se algum para passar o fim de semana ao pé daquelas pequenas serras que guardam a cidade. Mas algumas datas eram sagradas, como a Semana Santa, com a procissão do Fogaréu, em abril; o São João, em junho, e a vaquejada, em setembro - além dos eventos de família, quando se abriam os salões do aconchegante chalé da praça da Matriz, ao lado da Catedral.


   A barca azul partia de Salvador geralmente no começo da noite. Depois de um rápido pit stop  para uma cerveja com tira-gosto de requeijão com pimenta, em Santa Bárbara, acontecia a primeira parada oficial, logo na entrada da cidade: hora sagrada da costelinha de carneiro na brasa, em grelha improvisada sobre a fogueira, no descampado do posto de Nonô.


   A madrugada fria fazia descer o nevoeiro, espécie de fog sertanejo, sobre o grupo de amigos em volta da fogueira, enquanto Dom Franquito comandava os pedidos das bebidas, alternando geladas e doses de Jangada, cachaça cearense cujas garrafas empalhadas traziam, além da pinga, muita alegria e calor.


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   Em Serrinha, a programação diária, entrando pela noite, incluia petiscos, biritas e almoços durante visitas a amigos e parentes em seus sítios, roças e residências na cidade. Eram quase devoção as paradas em locais como a barraca de Djalma, no mercado municipal, para morder um jacaré (beber uma pinga) e comer tira-gosto de moela ensopada, e o Vagão, de dona Dina, onde a galera se reunia e atualizava as novidades, na companhia de uma cascavel (uísque com gelo) ou de uma loura gelada.

   Foi em uma dessas jornadas, por exemplo, que Jeffinho comeu o melhor meninico de carneiro da sua vida, em casa de Ferreirinha, preparado pessoalmente pela patroa, dona Cira.


   Vez por outra, a programação incluía ainda uma visita ao Jorro do Tucano, cerca de 70 quilõmetros sertão adentro, por estrada de chão. Era uma aventura divertida, em busca das deliciosas noites frias e dos banhos nas águas quentes e medicinais que jorravam sem parar de velhas tubulações solitárias no meio da enorme praça de terra batida. Em volta da praça havia apenas algumas casas, o hotel de Biliu e dois ou três botecos.


   Jeffinho e Dom Franquito não dispensavam o bode fresco, frito, com farofa d´água, guarnecidos por doses de Jangada e cerveja gelada. No caminho de volta a Serrinha, faziam paradas estratégicas em bodegas de beira de estrada, para saideiras de geladas e codornas fritas. Já meio embriagados, se divertiam tentando acertar as bolas com tacadas na mesa de bilhar, considerando que colocá-las na caçapa, àquela altura, era tarefa impossível.


   Quando a farra se esticava até de manhã, era de lei passar em casa de dona Maria do Mingau, no Beco da Lama, antes de dormir. Sorviam-se com prazer canecas da iguaria, de tapioca, milho ou carimã, ainda nos últimos momentos de fervura, em panelões sobre o fogo de lenha. Dona Maria, que morreu com quase 100 anos, a vida toda vendeu mingau na porta do mercado municipal.


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  Por muitas vezes, naqueles anos 70, Jeffinho acompanhou, com fé e respeito, a procissão do Fogaréu, na quinta-feira Santa. Já era gordinho, mas ainda aguentava percorrer os cinco quilômetros pelas ruas da cidade até o pico do monte de Nossa Senhora Santana, ponto mais alto de Serrinha. Naquele tempo, só os homens podiam participar, levando tochas acesas improvisadas com vela comum e papel grosso ou papelão.


  Hoje, século XXI, o mundo mudou, as mulheres agora também acompanham a procissão do Fogaréu, que em breve pode se tornar patrimônio imaterial da Bahia, com todo direito.


   Serrinha cresceu, Jeffinho engordou e não consegue mais subir o morro até a imagem da santa. Mas até hoje se sente como um filho adotivo da velha e boa Serrinha de dona Zilda e de seu Braulio Franco.







* Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br), 58 anos, é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há quase 40 anos, em revistas, jornais e TV; comunicação corporativa e jornalismo digital.