Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA UM RETRATO FIEL DA BAHIA, DE SILVIO HUMBERTO

Sílvio Humberto dos Passos Cunha é economista e vereador de Salvador no exercício do 4º mandato pelo PSB e um dos fundadores e presidente de honra do Instituto Cultural Steve Biko
Rosa de Lima ,  Salvador | 04/10/2025 às 07:33
Um Retrato Fiel da Bahia, de Silvio Humberto dos Passos Cunha
Foto: BJÁ

  São raras as publicações sobre o entendimento do pós escravidão no Brasil, especialmente na Bahia, analisando-se a sociedade de uma forma geral, o racismo e a economia com uma visão mais apurada dos acontecimentos desde o movimento abolicionista e às leis que determinaram o fim formal da escravidão – Eusébio de Queiroz (1850) – proibiu o tráfico, mas não extinguiu; Ventre Livre (1871) - declarou livre os filhos dos escravos; e Sexagenários (1885) - liberto os escravos acima de 60 anos; e Áurea (13 de maio de 1888, que extinguiu a escravidão)  – e o que aconteceu a partir do 14 de maio de 1888 quando esse processo encerra um ciclo e vai começar outro, tão dramático quando o primeiro, porém, noutra dimensão, noutro enfoque. 

  O que, afinal, aconteceram com os negros e seus descendentes na Bahia?

  O que vamos comentar é exatamente o livro escrito pelo vereador de Salvador, economista e ativista do Movimento Negro, Silvio Humberto dos Santos Passos, intitulado “Um Retrato Fiel da Bahia – sociedade, racismo e economia (NANDYALA LIVROS E SERVIÇOS, 2024, Belo Horizonte, MG, capa foto pessoal do autor com design de Adna Rodrigues, 301 páginas, R$70,00 na Livraria Katuka, Sé, Salvador, tb no portal Nandyala Livros.store) creio, o mais completo trabalho que já li sobre o pós abolição formal, bem documentado, com um olhar diferenciado da literatura tradicional brasileira sobre o tema. 

 Ou como bem estabeleceu o autor numa frase conceito que traduz a base do seu estudo: “O ser escravo é uma condição que desaparece com o fim da escravidão; o ser negro não”.

  Eis, portanto, o fulcro, o âmago da questão que Silvio aborda oferecendo aos leitores uma quantidade imensa de informações todas documentadas, nada, portanto, aleatório, para consubstanciar sua tese e afirmativa final dando conta de que “é justamente o ser negro, identificado pela cor da pele, aquilo que determina o lugar e a velocidade da ascensão social dos indivíduos. Quanto mais claro o indivíduo, ou seja, quando mais próximo do fenótipo branco, maiores serão suas chances de ascensão social em uma sociedade herdeira da escravidão dominada por uma minoria branca”.

  Daí retirou o título do livro “Um retrato fiel da Bahia” ... uma síntese do conjunto de discussões desencadeadas no interior de cada um dos cinco capítulos que responde a pergunta inicial (o que aconteceu com os pretos), de acordo com o autor, “esforço intelectual e acadêmico-científico, nos quais aprendi evidências de como o racismo estruturou a reorganização do trabalho no pós-abolição”.

  Lembrando aos nossos leitores que a Bahia desde os primórdios de sua colonização pelos europeus – a maioria portugueses – existiram dois polos dinâmicos mais importantes de sua economia e que também eram centros da política, do poder Judiciário e da cultura e religião: Salvador e o Recôncavo açucareiro com virtudes para Cachoeira, Santo Amaro e São Francisco do Conde. 

E o que fez Silvio Humberto para dar credibilidade ao seu trabalho? 

Pesquisou, analisou, debateu, entrevistou estudiosos dessa matéria, foi ao mais profundo que conseguiu para produzir uma obra valiosa e que certamente servirá de base para novos estudos sobre a escravidão na Bahia na sua fase de reorganização do trabalho e da vida das pessoas negras após o 14 de maio. 

Tarefa das mais árduas, pois, como se é público e notórios muitas publicações e teses elaboradas sobretudo a partir do clássico “Casa Grande e Senzala” (década de 1930), de Gilberto Freire, se estabeleceu como quase uma situação consensual de que o Brasil, sim, era uma democracia racial. Bem, diferente, por posto, dos Estados Unidos, que era uma democracia racista. 

O livro de Silvio – evidente sem se concentrar em Freire – mas numa análise mais ampla dos fatos e a realidade baiana do pós-abolição foi diferente de Pernambuco, assim como de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais que eram os centros da economia e do poder mais importantes do país, sobretudo a partir de 1763 quando Salvador perde a condição de capital política e administrativa da colônia, foca seu estudo na cultura do açúcar e na exportação desse produto para a Europa e como a elite que comandava os engenhos, também donos do poder político, os negócios entraram em decadência a partir de uma série de razões desde a concorrência externa, a má qualidade do açúcar baiano exportado, a incipiente tecnologia,  prevalecendo (na época) e esdrúxula tese dos barões do açúcar de que, uma das razões da debacle foi o fim da escravidão o que gerou a “falta de braços” para dar dinamismo à lavoura.

Tese, aliás, que foi mantida pela elite para espremer e retirar dos cofres do Império e depois da República nascente capitais de socorro alegando, como sempre, ou quase como trunfo, a falta de braços. Sim, claro, a falta de braços começou de fato, a rarear, sobretudo depois do 14 de maio, porém, não houve nenhum esforço nem dos governos nem dos barões assinalados no sentido de proteger os negros, de qualificar a sua mão de obra, de educar seus filhos, enfim, ter dado um suporte aos pretos.

   E, se alguém tinha culpa no cartório da decadência da economia exportadora do açúcar, principal suporte da economia baiana, embora os senhores dos engenhos e donos da política situassem-se os negros como principal responsável (a tal falta de braços) o furo era mais embaixo e, nesse contexto, além das questões técnicss da plantação, moagem e refino, preço baixo da terra, dívidas com o capital financeiro, tentativas de importação de mão de obra asiática, etc, havia o racismo nunca reconhecido e sequer debatido pela elite dominante e é isso que o livro de Silvio Humberto aponta.

“É importante reafirmar que, para garantir a preservação das hierarquias raciais e sociais ao longo desses anos, construiu-se um arcabouço institucional edificado na exclusão racial e social da ‘populaça’ () Essa exclusão dos negros e negras fez-se sob um conjunto – de regras; de controles raciais explícitos e implícitos dos passos e espaços de viver, do trabalho e da religiosidade, da racialização manifesta no tom desracializante dos discursos (por exemplo. Brasil último país a abolir a escravidão e o primeiro a se autoproclamar uma democracia racial) e de práticas costumeiras – herdadas da escravidão e, frequentemente, aperfeiçoadas, ajustadas e inovadas no pós Abolição, a exemplo da interdição do voto do analfabeto”, comenta o autor.

  Trata-se, pois, de uma obra reveladora de uma realidade que se procura escamotear há anos, mais de um século, e que representa uma reparação, um grito de alerta que, felizmente, não é isolado no Brasil, mas que, na Bahia, é rarefeito.
 
  O autor destaca a guisa de conclusão que não foi sua pretensão “explorar a gama de controle raciais e sociais utilizados pelas elites baianas, bem como as estratégias de sobrevivência individuais e coletivas empregadas pelos negros e negras, mas, sim, perceber quais eram os contornos desse ‘jogo’, as ‘regras’, os participantes, as jogadas, as expulsões, as substituições, as estratégias para a vitória, os aprendizados com as derrotas bem como as comemorações”.

 E como o título do livro enfatizada (Um Retrato Fiel da Bahia) a luta segue adiante. 

Excelente livro, reflexivo, contundente, obra que põe os leitores a pensar, a rever conceitos e situações, enfim, anotações de uma realidade que foi escamoteada há anos e que Silvio ajuda a descortinar.