Cultura

ROMANCE "A PSICÓLOGA", TF, CAP 5: O ALBUM DA FAMILIA E A MOLDURA OVAL

Alicinha ainda não encontrou explicações para o crime das crianças na escola dom Miguel
Tasso Franco ,  Salvador | 29/04/2025 às 09:24
O álbum da família
Foto: Seramov
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   O ALBUM DA FAMILIA
  
   1982 foi o ano que nasci. Meu pai era homem do campo e com o passar dos anos migrou para a sede do povoado e se tornou ferreiro, profissão que meu irmão Ohreste aprendeu e vive dela. Em vim ao mundo no povoado onde meus pais já viviam desde os anos 1960 expulsos da roça pela seca.

   Minha mãe era dona de casa com quatro filhos para cuidar e exercia, também, o oficio de costureira e crocheteira produzindo almofadas e toalhas de mesa em tricô admiráveis com florais incríveis. Aprendeu essa arte no povoado com uma senhora chamada Otília e se tornou uma discípula melhor que a mestra. Vendia bem seus produtos dinheiro que ajudava no magro orçamento da família. 

  Todos nós nascemos sendo pegos por parteiras, em casa. E graças a Deus somos todos sãos, fortes, altos, porque meu pai era um homem alto, sarará, e o povo apelidou-o de “cabelo de fogo”. Creio que ficou ainda mais chamuscado com as faíscas que saiam da forja. 

  Não me lembro de quase nada dos meus primeiros anos de vida. Felizmente, mãe bateu pé-no-chão com pai e promoveu uma festinha para comemorar meu primeiro aniversário. Foi a salvação. 

   Mãe contratou um fotógrafo chamado Wilson que fazia fotos de casamentos, batizados, 3x4 para carteiras e aniversários para clicar umas chapas e produzir um álbum. 

  Por isso é que digo que foi uma salvação. Hoje, tenho esse álbum guardado com todo carinho, já se vão 36 anos, mãe ainda é viva, mas, pai já faleceu, e tem o registro ainda que em preto e branco da família, de meus dois outros irmãos, de pai usando uma camisa social branca, calça com cinto, sapato de couro; mãe toda faceira com uma presilha no cabelo, minha irmã Ohilma de trancinha já grandinha e meus irmãos Ohrácio e Ohreste usando gravatinhas borboletas que não sei onde conseguiram, deve ter sido arte de minha tia Cheiro.

   Essa foto com as devidas adaptações mandei emoldurar no formato oval e pintar nossos retratos de tinta gauche e está em nossa parede onde aparecem mãe (Josefa), pai (Bernardo) eu (Ohana) e meus irmãos em escadinha pela idade Ohreste, Ohilma e Ohrácio. Noutras fotos do álbum aparecem também os pais de Roque, Otávio e Celina; vó Clea de sapatos com salto alto e meu avô Antero com imenso bigodão, avós maternos.

   Salvo engano Wilson fotógrafo nos disse que Lampião e Maria Bonita já tinham sido fotógrafos em família por um estrangeiro e o famoso coronel Horácio, da Chapada Diamantina, possuía uma moldura oval dessas em sua fazenda de Lençóis, o coronel Albuquerque, de Sento Sé, também tinha, e o povo adora esse modelo.
    E como tem muitas chapas no álbum, mais de vinte, pode-se ver a decoração da festa, a mesa forrada com papel celofane, o bolo, a velinha e eu tentando apaga-la.

  São lembranças fantásticas, que eu e Roque também conseguimos fazer quando a Alicinha nasceu, em 1994, já um álbum com fotos a cores. Nosso povoado, apesar do atraso em muitas coisas, também evoluiu e, nessa época, Wilson já produzia vídeos-cassetes e fotos coloridas.

   Mas quando Alicinha completou 15 anos organizamos uma festinha, e usou um vestido rosa e sapatos altos pela primeira vez, nem ela nem as amigas queriam álbum dizendo que agora é tudo na internet, o que eu acho um absurdo. Essas mudanças eu não entendo muito, escapam da minha compreensão. Dizem que são tempos modernos, digitais.

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   Eu conheço Roque desde quando ingressei na escola. Sai do casulo para ir estudar na escola primária aos 8 anos de idade a única que existia em nosso povoado e pertencia a Prefeitura, escola pública com 4 salas de aulas e 4 turmas da 1ª a 4ª do ensino das primeiras letras e dos números, da aritmética, e foi nesta escola que conheci o Roque. 

   Eu já sabia que ele era filho de Sêo Davi marceneiro que morava na área norte distante um pouco de nossa casa e cursava a 3ª série quando entrei na escola. Ao alcançar o segundo ano, mãe dizendo que eu estava ficando mocinha, estava com 9 anos me aproximando dos 10, era uma menina comprida, puxei a pai.

  Na época do São João a professora Edna formou uma quadrilha junina e meu par na dança, nas brincadeiras, foi Roque. Achei ótimo porque era um rapazinho mais velho do que eu, já estava com 12 para 13 anos cursando o último ano na escola e achei encantador.

   Mas, tudo era muito inocente e eu não falava em namoro, nada disso, mas o destino é o destino e fiquei triste quando chegou o ano seguinte e ele não retornou a escola porque já tinha concluído seu primário e iria para a Terra do Sol fazer o ginásio, que era um curso mais elevado.

   Eu não tive essa sorte. Logo depois de concluir meu tempo na escola primária fiquei o tempo de um ano parada vivendo a ermo no povoado. 

   Pai era pobre e o que ganhava mal dava para nos sustentar. Éramos cinco bocas comendo todos os dias, vestindo e se asseando e ele esperou as coisas melhorarem para me enviar a Terra do Sol.

    Só um ano depois fui completar meu ginásio na sede do município, onde novamente encontrei Roque já rapaz e comecei ter uma paquera com ele. Quando voltei para o povoado, definitivamente, concluído o ginásio, fui trabalhar na padaria de Sêo Badu porque não tive condições de fazer um magistério e Roque vivia na casa dos pais como marceneiro.

   Casei-me com Roque quando tinha 20 anos de idade, isso no ano de 2002. 

   O destino – creio piamente nisso – havia traçado essas duas linhas e eu nasci para o Roque e o Roque para mim embora mãe dissesse que era assim mesmo. Que as meninas da Serra se casavam com os meninos da Serra, os filhos seguiam as profissões dos pais quando grandes e as filhas as das mães.

   E tudo caminhava em harmonia no nosso povoado onde a união das famílias era a marca principal, todo mundo era amigo, havia muitas dificuldades para sobrevier, mas, salvo aqueles que tinham doenças incuráveis, quem era saudável sobrevivia numa boa.

  A gente vive sem médico, sem hospital, sem boas escolas, praticamente sem nada que possa ajudar-nos. Nosso povoado já tem mais de 100 anos e nunca teve uma fábrica, uma indústria grande, um aviário e muitos rapazes e algumas moças quando crescem vão embora para São Paulo que é uma terra eldorado. Ganham dinheiro por lá e mandam para as famílias.

   Nós vamos crescendo aos poucos graças aos nossos esforços e eu tiro por mim e pelo Roque que evoluímos na marcenaria, já temos máquinas mais modernas, já sabemos fazer algumas peças inovadoras e assim também acontece com a padaria onde eu trabalhava cujo forno era alimentado a lenha, Sêo Badu comprava um caminhão de lenha todo mês para produzir os pães e broas e hoje é forno elétrico e também produz bolos, biscoitos e tortas.

  Houve uma evolução isso graças ao denodo dos donos dos negócios. Não teve ajuda ou orientação de órgãos técnicos do governo e nós vamos aprendendo ao observar os outros, de astuciar, de juntar o dinheiro em mealheiros para comprar as máquinas porque não temos bancos, nem agências de fomento, cooperativas, nada.

  A cooperativa mais perto é a de Laticínios em Pombaleiro e os juros que os bancos de Cicero cobram de um empréstimo são muito altos. A gente prefere ir economizando por conta própria, guardando o dinheiro e quando tem o suficiente para adquirir uma máquina a gente compra.

   Assim é nossa vida, sem aumentar nem diminuir e eu ouço muito falar na televisão de felicidade, de amor, de superação, de separação, de angústias, de troca de casais e de tanta coisa que embaralha nossas cabeças porque aqui as coisas são mais simples. Eu mesma me acho uma pessoa feliz e não troco minha vida modesta pela daquelas pessoas que acho complicadas.

    Mas, cada um sabe de si. Também aprecio as novelas da TV mas faço algumas ressalvas a algumas que já vi, creio, querendo empurrar nas nossas cabeças as relações de mulher com mulher, homem com homem, umas modernices em roupas, cabelos e comportamento que são estranhas para nós.

   É claro que tudo tem seu tempo, hoje, o tempo é diferente do de minha mãe quando mocinha; e também do meu. A Alicinha não foge à regra e vive fazendo imitações de artistas da TV em vestes e uma parte do tempo passa empencada no celular. A gente já falou que isso não é saudável, porém, desconversa e diz que não faz mal algum,

  E quando a gente fala que os crimes da escola tiveram a ver com isso, os meninos andam ligados em jogos de violência, batalhas, mortes e sangues imitando as coisas ruins que acontecem nos Estados Unidos - é por lá que existem esses atentados em escolas - e esse menino que matou os outros em nosso povoado teria se inspirado num caso que aconteceu por lá, ela desconversa.

  Questionamos essa questão a psicóloga do governo. Disse-nos que poderia ter sido a influência dos jogos da internet, mas que cada caso é um caso, e o nosso deve ser analisado em profundidade para saber a origem. Nos deu uma resposta que a gente achou evasiva, também não sei se foi pra nos tapear, nos acalmar.   

   Eu e o Roque temos muito medo dessas coisas que são divulgadas nas redes sociais, um monte de gente sem preparo sendo “influencer”, influenciando outras pessoas sem a menor condição, sem o menor conhecimento. 

  Veja que jovens entram nesses “reality shows” da TV como pessoas sem educação superior, a maioria estudantes e/ou iniciantes em suas profissões, e saem como sábios com não sei quanto milhões de seguidores e passam a influenciar outras pessoas.

   E, sinceramente, não sei em que. O que pode um jovem desses assegurar que o leite tal é bom para o consumo porque não tem lactose e outras maluquices, ele ou ela que nunca viu sequer uma vaca; que o armário bom é três peças em uma, se nunca aplainou uma tábua e rodou um parafuso!

   Nós não entramos nessa onda e muito menos na lábia política e ideológica de que o bom é o partido tal que defende os pobres; bom é político e partido Y que trabalha à causa municipalista, quando a gente sabe por experiência dos anos que todos políticos são embromadores, que só aparecem de 4 em 4 anos nas épocas das campanhas eleitorais com as mesmas conversas de sempre e tanto podem ser do partido A ou do partido B.

  São iguais em promessas e sumiços após os pleitos. Nós, como família, temos o dever de alertar nossa filha que ainda está na flor da idade e não tem experiência, não tem traquejo, e ficou abalada com a morte dos seus colegas, inclusive da sua melhor amiga. E, até agora, não encontrou uma resposta convincente para o que aconteceu. Tememos os “sábios” da internet.