Jolivaldo Freitas é escritor e jornalista
Jolivaldo Freitas , Salvador |
03/01/2025 às 09:46
Jolivaldo Freitas
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Era uma manhã de Natal fria e cinzenta. Maria, uma menina de oito anos, caminhava descalça pelas ruas de uma cidade que parecia não a enxergar. Carregava uma pequena cesta com doces que ninguém comprava, apesar de seus olhos grandes e esperançosos que imploravam por atenção. Ela não sabia dizer como havia chegado ali, sozinha e sem rumo, mas aquela era a única vida que conhecia.
A rotina do abandono
As ruas eram cheias de luzes que brilhavam nas vias principais, embora o Comério estivesse com a totalidade de lojas, escritórios e prédios públicos fechados e fechavam antes do anoitecer por causa da violência e isso também impedia a circulação das pessoas que procuravam se distanciar do local pela péssima fama. Ninguém queria correr riscos e muitos evitavam ter de passar entre moradores de rua e usuários de crack dormitando, vários viviam como zumbis nas calçadas, protegidos precariamente pelas velhas marquises.
As músicas natalinas tinham sumido dos estabelecimentos, mas as luzes colocadas a título de decoração estavam acesas o que levava iluminação para as avenidas, mas em nada tirava o teor escuro das vielas e das velhas ruas criadas pelos portugueses ao rés das encostas e ladeiras. Para Maria tudo era silêncio. Estava exausta de mais um dia em que sentara na calçada da avenida movimentada, com a cesta no colo e a barriga dorida de fome. Tentava chamar os transeuntes, oferecendo seus doces com um sorriso tímido, mas eles passavam sem notar sua existência.
O peso da solidão
Conforme o dia avançava, Maria sentia-se cada vez mais invisível. Crianças bem vestidas brincavam nas praças, famílias tiravam fotos em frente às vitrines decoradas sem esmero, estudantes das faculdades e trabalhadores de telemarketing pipocavam e sumiam. A menina só queria um pouco do que parecia tão abundante para os outros: calor humano. “Será que alguém me verá hoje?”, pensava, sempre que o dia se renovava, até o sol se pôr, invadindo a noite.
O frio da noite
Agora que hora da noite caiu, o vento ficou mais gelado. Maria, sem roupas que prestassem encolhia-se num canto da praça que recebera nome em homenagem aos ingleses. O movimento nas ruas diminuía cada vez mais, mas sua fome só aumentava. Ela segurava um dos doces que vendia e olhava para ele, tentando resistir à vontade de comê-lo. Aquele doce era sua única esperança de atrair a atenção de alguém.
A esperança quase perdida
Às nove da noite, Maria chorava baixinho, escondendo o rosto com as mãos. Os fogos de artifício lá longe, no céu da ilha anunciavam a chegada da noite de Natal, mas tudo o que ela sentia era um vazio esmagador. A fome passara com o frio. Nem mesmo os doces em sua cesta pareciam valer algo. Ela pensava se deveria desistir, abandonar tudo e deitar na calçada para esperar que o sono a levasse. Já não havia nenhum movimento na rua do Comercio de Salvador, uma cidade que levava justamente o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, ela sabia das vezes que ouvira, sem entrar na igreja, missas da matriz de Nossa Senhora da Conceição da Praia ou de Santa Luzia.
O último esforço
Maria decidiu dar uma última volta pela praça, agora praticamente deserta. Aproximou-se de uma família que saía de um trailer que vendia cachorro-quente, mas foi ignorada. Tentou falar com um homem que entrava num carro, mas ele apenas balançou a cabeça. Ela estava prestes a desistir quando viu uma mulher e um homem com duas crianças pequenas caminhando na direção oposta.
O encontro inesperado
A mulher, chamada Ana, parou ao vê-la. “Você está bem, querida?”, perguntou com a voz cheia de ternura. Maria hesitou, assustada com a atenção inesperada, mas balançou a cabeça negativamente. Ia correr. O casal olhou para ela, para a cesta de doces e para seus pés descalços. A expressão de Ana se transformou em tristeza, e ela se abaixou para ficar na altura da menina. A garotinha tiritava de frio, nunca que Salvador fora tão fria, pensava Maria.
A conexão
“Está sozinha?”, perguntou Ana, e Maria apenas murmurou um “sim”, muito murcho. As duas crianças do casal se aproximaram, segurando as mãos da mãe, e uma delas ofereceu a Maria um pedaço do algodão doce. A menina aceitou, emocionada, e seus olhos se encheram de lágrimas. Sem olhar para os filhos ou para o marido que se mantinha próximo olhando mudo, Ana perguntou. “Você está sozinha?
- Você não tem família?
Maria disse que não e foi o menino com a cara suja de algodão quem perguntou: “Você quer passar a noite com a gente?”. Ana repetiu a pergunta, enquanto o marido assentia silenciosamente.
O milagre de Natal
Maria hesitou por um momento, mas o sorriso acolhedor de Ana e o gesto gentil das crianças a convenceram. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se vista, como se alguém realmente se importasse com ela. A família levou Maria para sua casa, onde a alimentaram, nunca comera carne de peru e muito menos rabanadas e salada de maionese com maçã verde, identificou o gosto da maçã. Deram-lhe roupas limpas da filha. Ganhou uma sandália colorida que ficou um pouco grande no pé, mas era muito bonita e Maria ficou olhando, admirando e gostando. Foi quando ela viu os pacotes com papéis coloridos embaixo de uma árvore e Natal toda prateada e com algodão no rodapé fazendo as vezes de neve, já vira neve na tela de uma televisão de loja. Árvore que só tinha visto brilhando nas lojas. Comeu, participou da ceia timidamente embora incentivada a se animar pela família que estava feliz com aquela nova e inesperada presença. A fome que sentia parecia receber o alimento numas fisgadas. Coisas gostosas de se comer que nem sabia da existência, como frutas secas. Gostou da fatia de parida e do pão de Natal, mas enjoou do panetone com aqueles pedacinhos de doces misturados à massa de pão. Com a barriguinha cheia e quente foi dormir com as outras crianças. No outro dia Ana e o marido queriam sair para procurar família de Maria ou uma autoridade.
Um novo começo
Na manhã de Natal, Maria acordou em um quarto simples, mas acolhedor, uma cama fofa como não tinha experimentado, bem diferente do colchão fino e rasgado em que costumava dormir junto com as mulheres da zona do Comércio. Tinha até travesseiro e o que mais gostou foi o cheirinho gostoso dos lençóis e da fronha estampada com pássaros. Pássaros bonitos, diferentes dos pombos e dos bem-te-vis dos oitizeiros do Comércio. Ao levantar-se seus pés tocaram em algo liso e frio. Se assustou, olhou para baixo e viu com um pequeno embrulho de presente ao lado da cama. Era seu presente de Natal que Papai Noel pela primeira vez trouxera lembrando-se dela. Uma boneca que sorria, piscava e cantava, a primeira que ela já tivera. Ao descer para o café da manhã, Ana e o marido a abraçaram e perguntaram se foi boa a noite e ela disse que sim, tomando coragem e abraçando o casal, dizendo muito obrigado.
Disseram que queriam que ela fizesse parte de sua família, mas que iriam procurar seus parentes. Maria teve medo, se encaminhou para a porta quando um dos meninos disse, pegando sua mão. “Não tenha medo que você agora é nossa irmã”. Maria, enquanto Ana e o marido saiam perguntando pelas ruas do Comércio quem era parente da menina, onde estava sua família, pensava naqueles que estavam em pleno dia de Natal nas ruas do Comércio sem serem vistos pela cidade. Pensou, pensou, pegou sua cesta de doces e sem falar nada, abaixou os olhos e tirou a sandália que tinha recebido quando chegara. Ao deixar num canto e sair na rua foi a hora que Ana e o marido chegaram com uma autoridade, e foi logo cercada por toda a família. Estava rodeada de amor. O agente de menores conhecia a menina fazia tempo e tentara levar para algum abrigo, mas as mulheres que habitam as noites da rua do Comércio sempre a escondiam. Sabia que ninguém nunca vira pai, nem mãe e todos a ajudavam dentro do possível. Ficaram felizes quando souberam que uma família estava com a menina e que havia a possibilidade de um dia ser adotada.
Maria sentia imensa felicidade. Pegou sua cestinha de doces. Distribuiu com todos. Sentia pertencer a um lar. Tinha a atenção que tanto queria e até muito mais. Enxugou uma lágrima que queria sair dos olhos graciosos. Calçou de novo as sandálias largas e bonitas e entrou em sua nova casa. Era o Natal mais doce de sua vida.