Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, CAP 15: A SERPENTE QUE IA ENGOLIR SERRINHA

Quando doutor Samuel Nogueira instalou a imagem de Senhora Sant'Anna na colina de sua fazenda a serpente se acalmou
Tasso Franco , da reda��o em Salvador | 30/11/2023 às 08:17
Ilustração de Seramovo
Foto: Seramov
 
Prólogo:

Após a minha fala senti que a senhora Jana Pinharada, madame Zabelinha, dona Aurora do Samba e Ivan Três Noites estavam em choque e queriam ampliar o debate sobre a morte do amor e precisei tocar a sineta várias vezes para tentar acalmá-los.

 A senhora Pinharada pediu a palavra e assim falou em alto e bom som: - É isso mesmo que a mãe Té disse. Homem que maltrata o coração de uma mulher não sabe o estrago que causa na vida de uma pessoa, e não vou dizer que todo homem é ‘miseravão’, mas aqui em nossa aldeia muitos são, uns machistas de sete tijelas que andam em grupo, se reúnem no Bar do Romão pra jogar gamão e contar casos nojentos sobre nós mulheres que somos pessoas nobres, finas, educadas e que merecemos o maior respeito e outro dia um nojento desses deu uma surra de cansanção numa comadre minha que quase ela morre e se não fosse pomadas que comprou na farmácia de Sêo Ramalho tinha perecido. 

Em seguida, rubra nas faces, arrematou a madame Zabelinha: - Eu fui vítima desse infortúnio por meu amado marido que me trocou pelos encantos de outra e foi consumido pela bebida alcoólica, Deus o levando para sua morada, e se não sofro mais até hoje é porque sou forte, sou brava, resistente como o mandacaru, e digo para quem quiser ouvir e não tapar os ouvidos que para me conquistar, hoje, em dia. tem que me respeitar e jurar fidelidade e garantir isso com amor e não com falsidade, porque hoje o que mais vemos é a sonsice, a jacobice, a simulação e isso não aceitamos mais, e o que vimos neste conto a morte do amor numa senhora do Matadouro é chocante e como ela tem várias outras que assim morrem.

 Ivan Três Noites pediu um aparte e fez valer a sua opinião dizendo que concordava com as senhoras em tela, porém, destacou que esse negócio de fidelidade tem mão-dupla, deu exemplo que é como uma estrada usada por carros, onde um vai e o outro vem, e a mulher também tem que ser fiel porque o que também se fala em nossa aldeia, e já apareceram uns folhetos por debaixo das portas das casas denunciando madames que pulam o cercado, que gostam de ciscar noutros terreiros, e não vão em busca de uma ajuda financeira, de um socorro médico, e sim em busca do sabor da fruta que lhes falta em casa...

Nem terminou a frase e foi interrompido por dona Aurora do Samba, a qual gritou: - Protesto...o senhor insinuou ai que somos animais de pena porque quem cisca em terreiro é galinha e não somos nada disso e se alguma de nós procura o sabor da manga espada fora de casa é porque o original é falho, é mouco, e muitas vezes elas fazem isso com consentimento dos esposos tanto que no último folheto que chegou à nossa casa, antes de rasgá-lo, porque leio e rasgo de nojo, se falava de uns cornos mansos que não vou citar os nomes aqui com respeito à todos.

Toquei a sineta e disse que iria encerrar esse debate sobre a morte do amor, uma vez que era muito polêmico e abri a palavra para quem quisesse narrar um novo conto.

Em instantes, se levantou uma senhora de estatura mediana, tipo sarará, uma mestiça de branco e negra, mais pra branca, cabelos ruivos como labaredas de fogo em trempe de fogão de lenha, olhos miúdos negros porém vivazes, dura, dessas que o povo chama cevada, carne muciça, e disse que se chama América Feliciano Cajueiro, modista, residente na 2 de Julho, bairro centro, e representava as costureiras, camiseiras e bordadeiras, e iria falar sobre um caso que lhe contara uma amiga sobre uma serpente que ia engolir a Serrinha.

- Vixe! essa história deve ser boa, falou Faetonte, do conto da Bruxa do Regalo.

- Por favor, não interrompam, toquei a sineta, pedindo que deixassem a senhora Cajueiro – permita chama-la assim – completar seu conto.

  Ela retomou a palavra com sua voz de barítono: - Não me incomodo que me chamem de Cajueiro porque faz parte do meu nome, traz lembrança do meu avô, o bravo sertanejo Américo Cajueiro Feliciano, que desbravou terras nas proximidades do Matão, e cultivou o cajueiro que é um planta sagrada e valorosa tanto o seu fruto como a castanha, mas, sou conhecida nesta cidade e alhures – desculpem usar esse tempo pomposo – como América Modista porque não sou uma simples costureira, também peço desculpa pela imodéstia, porque vou além da costura, moldo, desenho, escolho as fazendas das minhas clientes n’a Pérola de Sêo José Faustino ou na loja de Sêo Miguelzinho, os botões e linhas da melhor qualidade no Ciclamen de Sêo Zéfredo, portanto, sou um modista de renome que costura para fora, no sentido de que atendo clientes que vivem em Salvador embora sejam da Serrinha, e aqui chegam de trem para encomendar peças de gala, para casamentos, para bodas, e digo que temos aqui excelentes costureiras e modistas, portanto não sou a única, há dona Dadá Paes, doa Rosa de Pi, e permita-me, agora, falar da serpente que ia engolir a Serrinha.

A SERPENTE GEMIA ALTO 

 - Corria o ano de 1940 quando Antônio Pinheiro da Mota assumiu a Prefeitura, nomeado que fora, que minha amiga Lurdinha, que nesse alvorecer dos anos 1960 está mocinha ela que nasceu no 37 no bairro da Bomba e me narrou esse conto porque era menina de brincar de boneca na Getúlio Vargas mas tinha um medo enorme de ir à rua, até no Tamarineiro ou na praça da Matriz, porque ouvira falar que na Chácara de doutor Miguel Nogueira tinha uma sepultura cheia de correntes passadas nela, correntes de elos fortes confeccionadas na oficina de Sêo Zé, no Largo da Usina, pois lá dentro havia uma serpente que se saísse ia devorar a Serrinha. 

Dona América solicitou um copo d’água a Xeroso e depois de tomar uns goles, prosseguiu: - E, em sendo assim, ela e as amigas pequeninas que eram certamente seriam engolidas. Ora se a cobra, que se supunha gigante e feroz, seria capaz de engolir a Serrinha, devorar o prédio do ginásio, o Café Gonzaga, a santa, a matriz, o paço municipal, o cruzeiro em frente ao coreto, elas que eram pequeninas iriam no bolo e habitar a barriga da serpente, e tinham um medo enorme disso. 

  Então, preferiam ficar em casa, quando uma outra menina parente dos Brizolara, que era amiga delas; e uma outra dos Pimental, disse que não tinha medo, e embora ouvisse toda noite os gemidos da cobra porque moravam nas redondezas do alto da Bela Vista, os donos do sitio jogam sacos de sal em cima da sepultura e acalmavam a serpente daí que ela ia dormir e não incomodava mais ninguém, até que, nos anos 1950, doutor Samuel Nogueira instalou uma imagem de Senhora Sant’Anna numa colina de sua fazenda, que todos os senhores e senhoras conhecem como a Santa, por sinal, o local está se transformando num bairro, e a serpente nunca mais gemeu e ninguém sabe se ela morreu ou não. O certo é que doutor Miguel tinha também dois lobos imensos que hoje estão no pórtico de sua chácara imortalizados em esculturas de cerâmica, e quem quiser ver é só passar por lá, que eram também os guardiães da serpente. Quando ela gemia os lobos latiam para que ela soubesse que tinha uma vigilância permanente no local.

  Esão, o Manoel Radiola, pediu um aparte e quis saber se diante de tão rumoroso caso, a comunidade não se mobilizou, se as forças vivas da aldeia não se armaram para enfrentar essa gigante como fizeram para conter Lampião, e ninguém foi verificar se isso era verdadeiro ou não, porque na história tem cobras fantásticas como as do Marrocos.

  Sim, pelo que sei - respondeu dona América - e também vou falar pelo que ouvi de terceiros, de uma cliente nossa que costurei o vestido para os  15 anos de sua filha, que seria parente da vereadora Didia Brasil Alves da Silva, e se vocês não sabem, fiquem sabendo que essa senhora foi a primeira vereadora de nossa aldeia, uma mulher belíssima, elegante, também minha cliente, que houve uma reunião da turma da UDN, partido que havia um Rodrigues Nogueira, e também tinha Sêo Dionisio Rico, Zé Mota, um representante da vila do Raso, de nome Erasmo, um representante da Biritinga, Pedreira Lobo, que fizeram um encontro e propuseram criar um esquadrão de atiradores de elite que seria comandado por Euvaldão Tampos, armados de mosquetões até os dentes, para que, entrincheirados na Luís Nogueira ficassem de sobreaviso às noites, porque a serpente gemia às noites , para que se ela fugisse e tentasse engolir a Serrinha, e o caminho dela certamente seria subir a rua Direita e abocanhar o coreto e a matriz, recebesse uma saraivada de balas, e logo depois, a bicha morta, magarefes organizadores por Jujuba, a retalhasse. Mas nada disso foi necessário porque doutor Samuel Nogueira, que comandava a UDN-1, instalou a santa, e a serpente nunca mais gemeu.

  - É uma história cabeluda voltou a citar Manoel Radiola

  - Não tem nada de cabeluda e Lurdinha está viva pra narrar aos senhores e senhoras sua história e ela se chama Maria de Lurdes Gonçalves Lopes e a imagem de senhora Sant’Anna e sua filha estão lá na colina de doutor Samuel, portanto, tenho provas no que falo.