Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, CAP 14: CANTO PARA LEVANTAR A MORTE DO AMOR

As sambadeiras davam voltas no salão e ajudavam manter o ritmo da música com palmas. Lindo de se ver.
Tasso Franco , Salvador | 23/11/2023 às 08:37
A morte do amor
Foto: Ilustraçãoi Borega Melo

 Prólogo:

Testemunho que o almoço foi excelente. Os representantes das comunidades e os convidados comeram à vontade a escolher entre o cozido e as costelas assadas do porco, beberam o mais suave dos tintos da Bodega Andrade, saborearam os sorvetes de mangaba e coco do Itaúna, os digestivos de Lôro e os curtos do café Gonzaga. Alguns deles após a refeição andaram até a praça da Matriz para facilitar a digestão, outros desceram a Barão até a Getúlio Vargas, na linha do trem, para apreciar a passagem da máquina de ferro, e eu fiz as devidas anotações para recomeçarmos os trabalhos a fim da conclusão da jornada. 

 Todos já sentados em seus lugares, senti que havia auspiciosa paquera no ambiente da madame Zabelinha com um senhor, mas nada tinha a ver com isso nem falaria, deixando que o colunista social de “O Serrinhense”, César Jaboticaba, cuidasse disso, toquei a sineta e disse que falaria o conto seguinte, até para dar tempo que as pessoas se ajustassem em seus lugares.

   E assim falei que era um conto longo e narrativa que faria do que presenciei no bairro do Matadouro, o qual, no início, dei o nome de “A morte do amor” e depois mudei o título para “Um Canto para levantar a morte do amor”. Aconteceram alguns suspiros de admiração. E, em seguida, iniciei:

   - A senhora mais antiga da comunidade do Matadouro, nome que assim nasceu porque a maioria das famílias vive da matança de bois para alimentar a população de nossa aldeia, chama-se mãe Té - tenho a impressão que seu nome de batismo é Tereza, palpitei - também conhecida como Té do Adelino, sendo este senhor seu esposo - já falecido - a benzedeira se aproximando dos 80 anos de idade, durinha, baixinha, mestiça, cabelos brancos rente ao couro cabeludo, a andar sempre de saia comprida quase não permitindo ver os seus pés acomodados numa sandália de couro de boi, curtido, a comunidade tem no boi a sua alma, o seu ganho, o seu sustento, e dona Té é a pessoa que decora o salão do Nachô Nachô, uma espécie de centro comunitário social e de lazer, neste evento, preparado para uma solenidade fúnebre, decoração que estava sendo providenciada com fitas presas nos tetos, quatro portais com jarros de flores, cravos da Índia e antulhos, dois portais onde se podia ver caveiras estilizadas trazidas do México, um pórtico central onde havia uma imensa vela de 7 dias, o ataúde colocado na parte acima deixando o salão livre para as sambadeiras, um banco de madeira onde ficariam os músicos, um pequeno pedestal para os cantores - os irmãos Nefitali - tapete de sisal na entrada para limpar os calçados, num canto vários incensos de gerânios e 7 ervas sagradas que seriam acesas. 

  Nessa missão, Mãe Té tinha a ajuda de duas sobrinhas, as irmãs Conceição - Cunça e Cinça - circunspectas, mabaças, que ajudavam a prender as fitas nos tetos e umas bandeirolas coloridas para embelezar o salão, uma com os pés em cima do degrau médio da escala e a outra segurando-a, Cunça prendendo as fitas numa passadeira de fio, tarefa que durou quase toda a manhã, e elas não tinham pressa porque a cerimônia, o canto só aconteceria a noite - os músicos tinham obrigações em trabalho durante o dia - e elas almoçaram no salão seus farnéis, o ataúde posto no lugar, o caixão fechado, marrom envernizado, alças douradas, arabescos nas laterais e uma cruz ortodoxa em cima da tampa.

  A noite chegou. Tudo estava nos devidos lugares para a cerimônia. Começaram a chegar os músicos: primeiro apareceu Alfredinho do sax alto, nariz de ganso; depois Pregídio do pandeiro, mulato, ferreiro de profissão; Silvino do acordeon, dedos de ouro; Pedro Chibarra batedor de surdo, pintor de paredes; Zelito tocador de caixa, barbeiro; Anacleto da viola, músico profissional; Almiro do Cavaco, alfaiate de dedal; as irmãs Cunça e Cinça iriam ajudar no sustentar o ritmo no reco-reco e no ganzá e mãe Té ajudaria no prato tocado com garfo. As sambadeiras foram chegando uma a uma todas usando saias rodadas, chapéus de palha com fitas, sandálias de couro saltos baixos, batons nos lábios e rouges nas faces; os cantores no ponto, pequena plateia posta numa arquibancada improvisada de madeira, silêncio total em respeito ao defunto, velas acesas - além da 7 dias nas caveiras também haviam velas menores - luz reduzida no salão, incensos perfumando o ambiente, um homem que suponho seja o mestre de cerimônia abriu a tampa do caixão, todos se perfilaram numa espécie de 1 minuto de silêncio, Alfredinho - também entendo que seja o maestro - falou alto para todos ouvirem 3,4, Zelito rufou a caixa e a viola cantou no centro começando a música, belíssima, algo em torno de cinco minutos, pareceu-me uma xula, as sambadeiras ainda paradas, até que deram uma sinal para elas e os cantores Nefitali começaram a versar no ritmo da música:

Se eu quiser matar boi/o faço com destreza/primeiro uso o porrete/depois sangro seu pescoço/do boi eu tiro o couro/para fazer o samba valer.

O outro cantor replicava: se eu quiser matar um boi/do boi eu tiro o ôio/do chifre eu faço pente/da orelha eu faço tempero/do rabo eu faço chibata/para fazer o samba valer.

As sambadeiras davam voltas no salão e ajudavam manter o ritmo da música com palmas. Lindo de se ver.

Se eu quiser matar o boi/do bicho eu tiro o cupim/como com farinha e aipim/pimenta de cheiro e uma pinga/ pra fazer samba valer.

A réplica: Se eu quiser matar o boi/tiro proveito de tudo/do fato do rim, da costela/minha esposa faz até moela/pra fazer samba valer.

A música seguiu nesse ritmo e nesse canto até dissecar todo o boi, uma tradição do lugar, a homenagem ao boi, animal que precisavam para viver, que garantia os seus sustentos, daí essa grande homenagem em música e canto, e depois de uns vinte minutos nessa pisada, mudou-se o ritmo, as mulheres sambadeiras ficaram num canto, dona Té puxou o lamento no prato e os cantadores assobiaram homenageando a deusa Hel:

Dona morte por favor/ouça o que estamos a cantar/levante-se desse caixão/e venha com nós sambar, isso dito quatro ou cinco vezes, em refrão, já também em ritmo de samba, mais compassado, duas das meninas sambadeiras no salão fazendo volteios, o mestre de cerimônia indo espiar se a morte deitada no caixão se movia e ela não deu a mínima ao canto, morta estava e morta continuava.

Eu estava em pé numa área próxima da arquibancada, tinha livre autorização para me mover, filmava tudo, anotada detalhes num caderno, fotografava, me sentia lisonjeado de poder participar de cerimônia tão representativa para aquela comunidade, mas, me movia com vagareza para não inibir ninguém, muito menos o morto que poderia ver a presença de um alienígena no local e não dar as caras, não se levantar do ataúde, e fiquei até o fim quando o maestro deu por encerrada a música, mãe Té agradeceu a todos presentes e fomos embora com a promessa de que, no dia seguinte, nova sessão seria feita. Pela experiência de mãe Té era assim mesmo, nem sempre a morte levantava logo do caixão, tinha que astuciar bem, olhar se tudo estava em ordem, se havia respeito no salão, todo engrandecimento. 

Fiquei, evidente, de retornar e soube através de um olheiro de nome Sandoval que fatos novos aconteceram no decorrer da manhã seguinte, dito por ele que, as mabaças foram trocar as flores dos jarros e varrer o salão e houve uma batida na tampa do caixão e ouviram a zoada mais de uma vez, mas, como não tinham autorização para abri-lo, só a superiora, foram chamar a mãe Té que, estava preparando seu almoço, seguiu cortando os tomates e fazendo a salada, temperado o feijão e deixou a panela no fogo lento e compareceu ao local, e com poderes que tinha de uma Baba Ayaga, sua sabedoria, sua experiência, sua astúcia, também escutou os batidos no ataúde e abriu a tampa, a morte deitada como se encontrava permaneceu sem se levantar e disse que havia gostado da cerimônia, perguntou quem eu era, o intruso segundo Ela, e a mãe Té disse que era um documentarista que iria fazer um trabalho para divulgar no mundo, que seria um fato inédito se Ela se levantasse na hora da cerimônia, Ela aquiesceu, consentiu, porém, exigiu que, além da xula e do samba que a mãe Té convidasse a banda de pífanos de Tuzé de Bilia para fazer um introito bem bonito e também convidar o finado Martiniano para cantar algumas músicas de Nelson Gonçalves, acompanhado de Deu Wilson, e que se isso fosse feito, porque ela tinha o poder como Baba de trazer esse pessoal de volta ao menos uma noite, prometia se sentar no caixão e cumprimentar a todos. Pediu ainda que fosse substituído o perfume gerânio do incenso por outro porque ela não gostava daquele cheiro.

E tudo isso foi providenciado como manda o figurino pela mãe Té e quando cheguei novamente na cerimônia para documentar as mabaças entraram com as caveiras acesas espetadas em varas de eucalipto e as colocaram nos pedestais, incensos novos de ervas naturebas foram acesos, bandas a postos, público acomodado, Deu Wilson portando seu violão que usava no Bar do Souza, o mestre de cerimônia abriu a tampa do ataúde, mãe Té soprou do nada, das mãos vazias. um pó branco donde voaram duas pombas, o ouviu-se 4.3 e o homem que executava o primeiro pífano soprá-la com entusiasmo e a banda o seguiu executando a Prosopopeia com os tambores segurando o ritmo, daí deu-se lugar a que o violeiro e seresteiro Deu Wilson dedilhasse um dó maior para iniciar o samba canção e a voz melodiosa de Martiniano encantou os presentes, eu confesso que também fiquei emocionado e filmava tudo, documentava os menores detalhes, a morte ainda ser dar sinal de vida, a mãe Té orgulhosa, alegre, entendendo que o ritual da morte-vida-morte estava seguindo a contento e depois que Martiniano executou o que tinha que cantar, a morte se sentou no ataúde e fez um singelo agradecimento e retornou ao seu ninho,  a viola de Anacleto entrou com tom alto, um sustenido, o que foi seguido por toda a banda, Cunça pegando firme no reco-reco, o ganzá de Cinça sendo jogado ao alto à moda de músicos do Carnaval, a mãe ordenou que as sambadeiras fizessem um círculo no salão e começassem a evoluir, estava lindo demais, samba duro com xula, um encanto, e fui filmando tudo a morte se sentou novamente no ataúde, tomou impulso, ficou em pé, desceu do esquife e também começou a sambar, e mãe Té era de um contentamento enorme, e o povo, o sábio povo batia palmas seguindo o ritmo da música para a morte evoluir, nunca havia se registrado nada igual no Nachô Nachô, um contentamento admirável das pessoas, e quando a morte cansou - suponho que cansou - o samba estava muito puxado, retornou ao esquife e deitou. 

Fez-se um silêncio obsequioso somente a mãe Té se aproximou do ataúde e ouviu da morte, isso consegui gravar porque meu aparelho era de última geração em som, que acabasse a cerimônia, que ela estava satisfeita, mas, queria voltar ao mundo dos mortos e não ficar entre os vivos, que o mundo estava muito violento, que a ousadia estava demais, que onde estava vivia melhor, e assim foi feito, fechando-se a tampa do ataúde e realizado o velório, naquela mesma noite, sem música, e as mabaças por ordem de mãe Té providenciaram bules de café com pães-de-ló para o povo, uma ou mais garrafas de caninha para aqueles que apreciam a branca, mas, que bebessem de forma moderada e amanhecesse o dia nesse passo do compasso e eu não arredei pé do salão e teve uma hora que desmaiei de sono, dormi numa ponta da arquibancada de madeira, me reorganizei ao acordar, lavei os olhos numa água que as mabaças trouxeram e colocaram uma bacia de plástico, e quem tinha ido dormir em casa estava retornando, mãe Té também dormiu, boa parte dos músicos foi para casa e retornou, só um deles não foi porque gostava da branquinha e se embebedou dormindo num canto do salão e a hora bendita das 9 horas, depois que a mãe Té ordenou, as mabaças a postos levando as caveiras espetadas nas varas, a banda executando um lamento, o cortejo saiu em direção ao cemitério da aldeia, organização impecável, o ataúde sendo conduzido com todo respeito por homens e mulheres da comunidade desceu-se a rua do Matadouro até a linha do Trem, depois alongou-se o cortejo até o Largo da Estação, dobrou a direita subiu uma pequena ladeira e pegou um retão até o cemitério, dezenas de pessoas a seguir, contritas, chorosas,. até quando o caixão foi posto numa gaveta.

   Em seguida, o povo voltou à sua comunidade e eu preparei o mais cuidadoso documentário sobre o sepultamento da morte. Fiquei mais de três dias trancado no meu estúdio selecionando as imagens e preparando o vídeo que, na minha opinião, ficou excelente com tomadas de todos os ângulos, das bandas, dos músicos em si, dos presentes na arquibancada, de mãe Té, das mabaças, das sambadeiras, das caveiras, velas, morte, do cortejo fúnebre, uma peça completa e contratei o locutor Paulo Teiú, o melhor de nossa aldeia para fazer as passagens e a narrativa principal. 

Diante de todo esse material, vídeo editado, visto, revisto, ajustado, decidi leva-lo para mãe Té dar o parecer final para iniciar a divulgação mundial e ela me recebeu com todas as honras, chamou as gêmeas Cunça e Cinça para me servir um café com bolachas, sentamos numa pequena sala de sua residência, liguei a filmadora e rodei o filme. A atenção de mãe Té era total. As gêmeas também olhavam com todo esmero. Um silêncio sereno. Só ouvíamos as imagens, o locutor, as músicas, todo o relato. Foram 26 minutos de uma concentração plena. Em seguida coloquei os créditos finais, o meu nome, claro, como editor e do da mãe Té como orientadora, líder espiritual da comunidade em apreço.

Fiquei na expectativa do que ela falaria e não adiantei qualquer pergunta para não direcionar seu pensamento. As mabaças permaneciam ao seu lado de cabeças baixas também esperando a fala da sábia rezadeira.

Ela começou: - Achei de muito bom gosto, um documentário valioso e bem feito. Quero lhe parabenizar por esse feito, não sei se alguém daqui da comunidade seria capaz de fazer melhor, havendo apenas um senão, uma correção, que é pequena e não mudará nada nas imagens, apenas na locução e nos letreiros, também no título, pois, pois o senhor colocou como sendo “Um canto para levantar a morte” ou acordar a morte, como bem entenda, mas, o defunto não era Ela.

Abismei. Cocei o cavanhaque de minha barba, observei que as gêmeas tinham levantado as cabeças e me miravam, e disse: - Mãe Té...eu vi a morte levantando do caixão, ví a morte dançando no salão com as sambadeiras, gravei Ela dizendo que não queria ficar no mundo dos vivos..., como não era a morte.

- Meu filho, quem estava alí, no papel da morte era o amor, ou melhor dizendo, uma mulher daqui do Matadouro, nossa conhecida, que morreu por amor.

- Mãe, eu vi a morte dançar, rodopiar os pés no chão do salão e retornar a tumba.

- Você viu a capa da morte, a roupa exterior da morte, o capuz, o cajado, mas, quem estava ali dentro era a mulher esqueleto que morreu por amor. Então, era ao amor que cantamos, que louvamos e que sepultamos.

- Seria o fim... balbuciei...sepultar o amor, pois, parece-nos eterno, permanente, perene como as águas de um lago que nunca secam e assim é cantado por todos os poetas.

- Cantado enquanto dura. A mulher é a guardiã dos ciclos da vida e da morte. Quando há desilusão, quando se é abandonada como foi minha comadre, jogada no despenhadeiro, chora-se, definha-se e sem ter forças para uma reposição seca-se e morre. Vira esqueleto.

- É o fim definitivo...comentei baixinho.

- Não. Encerra-se um ciclo e vai começar outro com seus ancestrais. Ciclo vida-morte-vida. Sempre foi assim no mundo e continuará sendo. Quantos poetas também louvaram esse desprezo e a renovação? Milhares. Então, sugiro que se mude o título do vídeo, providencie outra locução trocando-se a palavra morte por amor ou um complemento.

As gêmeas balançaram as cabeças de cima para baixo e vice versa como se dissessem que eu deveria fazer o que a mãe recomenda.

Não tiver alternativa. As gêmeas são a energia da alma. Teria que obedecer. Recontratei o locutor, refiz a fala e finalmente o vídeo ficou pronto com o novo título: “Um canto para levantar a morte do amor”.