Cultura

ENCONTRO DE SÊO FRANCO E DO LUBI DE SERRINHA NUM RESTAURANTE EM LISBOA

Sonho de Sêo Franco é ver, em vida, a recuperação do prédio da antiga Prefeitura da Serra, o Lubi sendo nomeado gestor da casa de cultura
Tasso Franco , Salvador | 02/02/2022 às 11:06
O Campo das Cebolas, a casa dos Bicos e o restaurante do encontro
Foto: BJÁ
  
  O viajante anônimo estava a andar, noite à dentro caminhando para a madrugada, nos arredores da Alfama e Campo das Cebolas, em Lisboa, quando o abordei. Pareceu-me, de longe e de perto, o Lobisomem de Serrinha. E era, de facto, como escrevem os portugueses castiços, e de direito, como aludem os de Coimbra.

  - Nunca me enganei com esse andar e esse odor das águas do açude da Bomba, iniciei o diálogo com o lanzudo da Serra.

  - Não estou aqui em segredo nem foragido da lei, até porque segredos não tenho visto que a minha vida é um livro aberto, como são tantos esses do José Saramago em seu museu que, hoje, estive a visitar; e muito menos sou um exilado político ou um imigrante que se arrisca a atravessar o Mediterrênao de barco. Portanto, é um prazer também vê-lo por acá.

  - Se assim somos, eu também sou um livro aberto, diria, como as páginas da Tenda dos Milagres, do Amado, e o convido para sentarmos no Cais da Preguiça para um bacalhau e um vinho do Alentejo, às minhas custas uma vez que de mim partiu o desejo da prosa.

  - Sem dúvida, aceito, desde que dividamos as despesas visto que sei não sermos afortunados, e a Ester Loura, quando para acá viajei por lazer e saber, regulou-me em finanças e deu-me somente o de passar bem, mas, sem excessos; e sei que a vossa Bião também regula o seu capilé.

   Andamos, então, a passos sincronizados pela Avenida Infante Dom Henrique e a parte baixa do bairro da Alfama até o Campo das Cebolas, uma das zonas históricas e queridas da cidade, espaço de convívio à boa mesa com árvores, bancos e quiosques, onde tudo era água e ao longo do tempo a cidade se expandiu para o lado do rio e foi tomando a forma atual, de praça, que é.

   - Este é um lugar muito agradável - disse-me o Lubi - nós dois já sentados no Restaurante Cais da Preguiça a pedir a um garçom que me pareceu de origem indiana um tinto encorpado, dado que a noite estava fria. 

   - Sem dúvida - rebati. Acá já estive noutras eras, mas, mal passei do Rossio e do Castelo de São Jorge e nas ladeiras e ruas apertadas da Mouraria.

   - Perdeste o melhor: a Casa dos Bicos e o Museu do José Saramago - este largo tem o nome deste sábio das palavras - e ví com esses olhos nascidos na Serra, no Campo de Oséas, uma vez que assim se denomina as terras que vim ao mundo - trechos da antiga muralha romana no avanço de Lisboa para o sul. E mais, também, visitei o paredão construído depois do terremoto de 1755, uma escadaria de acesso ao rio e restos de um forte do século XVII.

   - Percebo que voltarás repleto de cultura quando do seu retorno à Serra - argui com tom de fina ironia para temperar o orgulho do Lubi.

   - Quisera que minha querida Serra tivesse a metada da história desta Lisboa milenar, sei lá quantos milênios carrega nas costas desde a época do romanos, dos visigodos e dos árabes, quando o mundo era outro mundo, passava-se as questões à limpo no fio da espada e bebia-se em copos de barro águas de fontes cristalinas.

   - Sei! Pelo que me consta a história de sua localidade é curta, ainda a complemtar 300 anos desde os primórdios, mas, tem muuito de saber e também bebia-se ou ainda se bebe água de crisálida dos poços de Biritinga que tesões dão aos homens e mulheres.

   - Graças a Deus. E na moringa de minha toca não a falta, nunca, daí a alegria da Ester, pois, apesar do avançado da minha idade nunca falho, a espada sempre a honrar o gaudio. Mas, falta-nos história como acá. Observe, daqui de onde estamos os restos do Forte da Ribeira, um edifício que existiu ao lado do que é, hoje, o Ministério das Finanças; as estacas de edifícios pombalinos em frente à Casa dos Bicos, provavelmente do século XVII, que aparece no painel de azulejos “Grande panorama de Lisboa”, fabricado em 1700.

   - Vamos brindar a sabedoria. Euquanto levantávamos as taças o garcom com cara de indiano de Mumbai, gorda e rosada, pequeno turbante a cobrir parte dos seus negros cabelos, trazia-nos um queijo de ovelha cortesia da casa. 

   - Ao brinde, pois, camarada - o Lubi degustou o tinto a gole largo. Estou admirado com o seu saber, com o seu conhecimento da história e se algum prestígio tivesse iria falar com o dr Lima para nomeá-lo diretor da Casa de Cultura da Serra quando for instalada no antigo prédio da Prefeitura, Casa e Cadeia, que está a cair.

   - Quando consertarem, se algum dia o fizerem, já estarei no Cemitério do Bispo ao lado do Pé na Cova. Aqui também existia um antigo palácio dos condes de Coculim agora transformado em hotel. O alcaide da Serra deveria fazer como o governador da Bahia que cedeu o Palácio Rio Branco para ser um hotel, tornando o caído prédio da Prefeitura num Solar cinco estrelas.

  - Quiçá...quiçá... meu nobre Lubi um três estrelas como fora um dia o saudoso Hotel da Leste, hoje, hospital da familia Ferreira.

  - Que assim seja. O importante é não deixar tombar de vez. Os portugueses foram capazes de reconstruir toda uma cidade abatida por um terremeto e maremoto, em 1755, e nós, na nossa querida Serra, sem mar, sem rio, sem os tremores da vizinha Jacobina, não conseguimos recuperar um único edifício do início do século XX, cuja águia, no topo, resiste e segue a voar.

  A essa altura refizemos nossas angústias e exaltamos nossa alegria com bacalhaus na brasa e lagareiro e o tinto descia suave, acolhedor. Diria que foi um encontro fantástico e nos despedimos depois de goles do Porto, um Taylor's 20 anos.

  - Saúde, dissemos em sintonia fina e seguimos cada qual para seu destino. Eu, em direção a Praça do Comércio e ele, o enigmático Lubi, a subir uma escada íngreme em direção da Alfama.