Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO E O ÚLTIMO APITO DO TREM NA ESTAÇÃO DA SAUDADE

Na semana do São João (2016) estive na antiga Estação da Leste. Que tristeza! Quanta desolação e abandono!
Tasso Franco , da redação em Salvador | 29/08/2020 às 07:41
A estação do meu tempo de menino, hoje, sem vida
Foto: Museu Pró Memória
    O jornalista Tasso Franco publicou neste sábado, 29, a 11ª crônica do seu livro "No Meu Tempo de Menino, o último apito do trem" (1945/1957), justamente sobre a crônica que dá sub-titulo ao livro, escrita em 2016. Leia abaixo e as demais no aplicativo wattpad.

   O ÚLTIMO APITO DO TREM

   As pessoas de minha geração dos anos 1940/1960 e de gerações anteriores, no final do século XIX e que viveram em Serrinha entre 1880/1940 têm (ou tiveram) uma ligação muito forte com o trem da Leste.

   Hoje, (crônica escrita em 10 de julho de 2016) aos novos, parece irrelevante falar nessas recordações da história, mas a chegada da São Francisco Railway Company, em 18 de novembro de 1880, foi o fato mais relevante da história de Serrinha.

   Imaginem vocês o que representou a instalação de um sistema ferroviário numa vila (o Arraial da Freguesia de Serrinha passou a ser Vila de Serrinha em 13 de junho de 1876, quando é criado o município desmembrando-se de Irará) e apenas 50 anos depois de instalada a primeira ferrovia na Europa, a Stockton & Darlington Railway, na Inglaterra, e os reflexos dessa inovação.

   Até então eram poucos (pouquíssimos) os cidadãos serrinhenses que se deslocavam até Salvador, a capital da Província da Bahia, e os que faziam essa aventura se utilizavam de uma tropa de burros indo até Cachoeira e daí de vapor via Iguape até a capital. Outra alternativa era seguir pela rota inicial dos primeiros desbravadores nas trilhas de Água Fria até Alagoinhas (o trem chegou em Alagoinhas em 1863) ou seguindo de burro via Catu até a capital.

   O Arraial e depois a Vila de Serrinha, nos seus primórdios, eram abastecidos pelos tropeiros - com medicamentos, querosene, tecidos, objetos de toucador, calçados, etc. Serrinha vivia isolada do mundo. A idade média de vida das pessoas era 50 anos. Muita mulher morria de parto e doenças mais comuns. Até uma penicilina, antibiótico mais popular da época, era raridade.

   Quem mudou todo esse cenário foi o trem - a 'Chemin de Fer' (alguns gostavam de falar francês nessa época) a popular Leste. A Vila de Serrinha se equiparava a Londres, a Chicago e a outras localidades mundiais nesse aspecto.

   O trem trouxe a engenharia, a medicina, a advocacia, a organização sindical, o PCB, a hotelaria, encurtou a distância para Salvador em apenas 6 horas, instalou uma comunicação instantânea via telégrafo (nova tecnologia), mudou o comportamento das pessoas, do comércio, da indústria nascente do algodão e do tabaco. Ou seja, mudou tudo.

   Foi, de fato, uma revolução sem precedentes na história da localidade. Ser ferroviário significava um novo tipo de trabalhador, qualificado, e o trem trouxe o direito e o jornalismo da capital, a tecnologia, a literatura, e os viajantes modernos 'sepultaram' os tropeiros e seus burros.

   O trem era fascinante. O apito, o movimento de pessoas nas gares, o restaurante, o bar, o sino, a sala de embarque, os passageiros engravatados, os ferroviários com quepes, os trolleres, a caixa d'água, a oficina, uma maravilha. Estávamos em Nova York, vivíamos como em Londres. Ouvia-se piano e dançava-se valsas e polcas.

   Centenas, milhares de vezes fomos ver o trem. Era também uma atração para a garotada e para os adultos. A fofoca chegou em Serrinha com o trem. Quando chegava um homem bonito, engravatado, todo mundo falava. Quando tinha um baile no Hotel da Leste a vila e depois a cidade se engalanavam toda. Havia o 'sereno' das pessoas que não podiam entrar no baile, mas ficavam de fora assistindo.

   Ruy Barbosa chegou para fazer a campanha civilista no início do século XX de trem. Foi um acontecimento memorável. O "Águia de Haia" em Serrinha. Os outros municípios próximos ficavam com uma inveja enorme.

   Serrinha deu um salto civilizatório. Muitas famílias passaram a mandar seus filhos para estudar em Salvador. Daí surgiram os primeiros farmacêuticos e médicos, engenheiros e assim por diante.

   Eu fiz minha primeira viagem a Salvador depois que passei no admissão e entrei no Ginásio Estadual de Serrinha. Meu pai (Bráulio Franco) tinha uma tipografia e livraria e comprava produtos numa importadora alemã que ficava no Comércio, a Westfallen. Os gringos vendiam papel em resma, tipos em chumbo, máquinas impressoras e calandras.

   E lá fomos nós no 'Pirulito' que passava em Serrinha vindo de Juazeiro por volta da meia noite. A estação era um burburinho de gente. Senhoras vendiam galinha assada e outros petiscos na balaustrada.

   Lembro que 'meu velho' disse quando o trem partiu: - Segure-se!

   Colei nas pernas dele igual a carrapato no pelo de cachorro peludo. Quando o trem deu o apito de partida após o toque do sino meu coração partiu junto. Batia mais que a locomotiva movida a lenha e vapor.

   Não se enxergava nada e lá ia o trem se movendo e a gente escutando as batidas das rodas de ferros nos dormentes e trilhos pá-pá-pá-pá. Sensação indescritível.

   Creio que meu coração só diminuiu o batuque quando chegamos a Estação São Francisco, em Alagoinhas. Sentamos a partir dessa estação e dormitei no ombro de meu pai. Quando me dei conta o trem havia chegado em Salvador, na Estação da Calçada. O dia estava amanhecendo.

   Daí pegamos um táxi Chevrolet preto e fomos até a Pensão de Sêo Lisboa que ficava na Rua Barão de Cotegipe, uma segunda casa dos serrinhenses na capital.

   Foi na sala da Pensão de Sêo Lisboa - quem comandava a pensão, de fato, era dona Neném, sua esposa, pois, Lisboa gostava de tomar umas e outras - que vi pela primeira vez o mar. Meu coração voltou a batucar tão forte que quase desmaio. O que era aquilo à minha frente! Aquele mundo de água e os navios à vista dos meus olhos. O queixo caiu.

   Fiquei minutos na frente daquela janela vendo o mar. Em 1965, já morando em Salvador, vivi uma temporada na pensão de Sêo Lisboa, como hóspede anual cursando o científico no Colégio João Florêncio, na Ribeira.

   No mesmo dia, fomos ao Comércio fazer as compras para a tipografia e depois meu pai me levou para conhecer o Elevador Lacerda. Nossa! Nunca tinha passado tanta emoção num mesmo dia.

   De volta a Serrinha, no mesmo trem, tinha muita história para contar em casa e aos amigos.

   Nessa época, Serrinha já era cortada pela Transnordestina uma estrada que saía de Feira de Santana e seguia pelo Matão passando pelo campo de aviação e por dentro da cidade. Mas, pouca gente ia a Salvador de carro. Somente a partir dos anos 1960, com o modelo rodoviário 'andreazista' e a implantação da BR-116 Norte foi que a cidade ganhou sua primeira linha regular de ônibus. Mas, essa é outra história.

   Na semana do São João (2016) estive na antiga Estação da Leste. Que tristeza! Quanta desolação e abandono!

   Com o novo modelo implantado pelo governo federal o chamado PIL (Programa de Investimentos em Logística) 'matou-se' a linha Aratu-Juazeiro até mesmo para cargas. Na década de 1960 já havia 'morrido' o transporte de passageiros. Agora, o novo PIL sequer fala do trem da Serrinha.

   A minha visita à Estação foi como se tivesse entrado num cemitério. Tudo 'morto'. Velhas locomotivas enferrujando-se ao tempo, a oficina lacrada com tijolos, a gare vazia, os salões de passageiros tamponados com tijolos, letreiros caídos, lustres enferrujando-se, uma tristeza.

   Só faltei levar um ramalhete de flores para colocar na sepultura da Leste. Percorri duas vezes de ponta-a-ponta com as lágrimas nos olhos lembrando-me daquele apito da primeira viagem.