O comantério abaixo sobre a artista é de Caetano Dias.
ROSÁRIO DOS NOSSOS DIAS
Cristina Lamas, artista contemporânea portuguesa, encontrou em Salvador uma
Lisboa negra, mestiça. Uma cidade multicultural que converge para uma mútua
assimilação. O encanto da artista com a cidade parece revelador para a sua
poética, um mergulho nos bairros, ruas, becos, do centro a periferia.
Ela vem estabelecendo uma relação direta com o tempo e o espaço junto a
pessoas das mais diversas origens, credos e atividades. Para desenvolver sua
obra, Lamas se envolve e é envolvida pela cidade. Articula junto a
costureiras, serígrafos e profissionais dos mais diversos para a elaboração
e a execução dos seus trabalhos, criando uma rede de trocas que abrange
desde a Igreja até o dono do botequim.
Para entender os procedimentos da artista, tomo emprestada esta breve
apresentação da Galeria Lisboa 20: "O seu trabalho é sobre o tempo do
desenho. O relacionamento entre o tempo do fazer e do procurar, e o tempo de
poder ver, quer pelo caráter obsessivo dos seus desenhos, quer pela
permanente busca de formas, imagens, desenhos, que debaixo do nosso olhar
levam-nos para um lugar novo que não parece nem do nosso tempo nem do tempo
de onde tudo vem". A pesquisa da artista na Bahia pode ser compreendida como
uma ação atávica de um Portugal mestiço escondido no recôncavo baiano.
Sua obra, a meu ver, se vincula a obra de Louise de Bourgeois, como nas
peças o "Torso" e "Arch of Hysteria", onde Bourgeois costura poéticas de
grande impacto. A instalação apresentada por Lamas na Igreja do Rosário dos
Pretos, onde são articulados vários ex-votos feitos de retalhos usados,
alinhavados por pessoas da periferia, faz um diálogo quase direto com a obra
de Bourgeois, tanto nos procedimentos, quanto nas referências ao universo de
dor e medo. Ou ainda, liga-se a obra de Bispo do Rosário com o seu
inventário do mundo para o dia do Juízo Final, suas imagens do inconsciente,
onde tecido e linha são articulados para dar luz à poética de um anjo caído
entre nós.
Em Lamas, a busca do inconsciente coletivo está revisitada nos objetos de
promessas ofertados aos santos do dia, como se fossem próteses da fé e do
desespero. Seu trabalho se relaciona também com a obra de Leonilson, em seu
diário de vida, escrito com retalhos, costuras e bordados, recorrentes
também na produção da artista, que costura uma espécie de rosário de
ex-votos sem promessas.
Certamente a obra de Lamas nos leva ao encontro da arte contemporânea pelo
viés da cultura popular, porém, passando de forma potente por referências
fundamentais para a arte dos nossos dias. O discurso da artista, sem dúvida
alguma, dá continuidade a sua própria poética, aprofundando-se no seu
mergulho, e ao mesmo tempo estabelecendo diálogos com a arte e com a vida.
Caetano Dias