Salvador

PREFEITURA URBANIZA AV. CENTENÁRIO E SEPULTA RIO DOS SEIXOS E HISTÓRIA

Triste Bahia
| 12/07/2008 às 16:43
Selva de concreto sobre a sesmaria de Diogo Álvares e Catarina Paraguaçu. Adeus história (F/BJá)
Foto:
  A Avenida Centenário está passando por uma ampla reurbanização 59 anos depois de servir de modelo urbanístico nas comemorações dos 400 anos de fundação da cidade do Salvador, obra do então prefeito Wanderley de Araújo Pinho e do governo Otávio Mangabeira (1947/1951), o primeiro pós redemocratização, substituindo o então interventor Guilherme Marback.

  Naquela época, corria em direção ao mar o Rio dos Seixos, de águas excedentes do Dique do Tororó e das cumeadas da antiga Sesmaria de Diogo Álvares, o Caramuru, e Catarina Álvares, a Paraguaçu, doada logo após suas mortes aos beneditinos. Diogo está sepultado na Catedral da Sé e Catarina na Igreja de Nossa Senhora das Graças, ao lado do monastério beneditino.
  
   A Avenida Centenário cortou o vale em direção a Barra criando uma nova ligação quase paralela a Avenida Princesa Leolpodina, no alto do morro, esta chegando até o Porto da Barra. A Centenário, retratada no pincel de Mendonça Filho, quadro com paisagem ainda original, se constituiu numa nova ligação com os Barris, Barra e entroncamento a Vasco da Gama.

  Agora, a Prefeitura resolveu sepultar de vez o que restou do Rio dos Seixos (vide parte histórica em matéria abaixo do Correio da Bahia/Repórter) e da história da cidade, derrubando várias árvores e colocando blocos enormes de concreto sobre o leito do rio. 

   A obra visa acabar um alagamento que se processava na altura da Roça da Sabina, início da Centenário, mas, poderiam ter feito algo ecologicamente mais humano. Da forma que está sendo feita - concreto, ferro, brita, cimento, etc - tem-se a impressão que vão sepultar, também, a memória da cidade para sempre. (TF) 


 DO ARQUIVO DO
 CORREIO DA BAHIA

Por não haver Moisés, cajado ou mar, não era menor  o sacrifício daquela gente. Cegas pela noite de desespero, fugiam mulheres e crianças dos holandeses que atacaram a cidade de Salvador em suas 24 naus praguejadas. Assustados e ainda lamentando pelo caminho a desgraça, eis que surge mais um obstáculo à terrível fuga: um rio, chamado Vermelho, em adptação à nomenclatura tupi Camarajipe ou "rio dos camarás" - espécie de arbusto cujas flores vermelhas margeavam o regato. Alargado no período chuvoso de abril, tornou-se uma provação aos fugitivos.  Alguns teriam se  afogado e morrido ao tentar transpor o rio para seguir na direção de Abrantes, onde foi consolidada a resistência holandesa, em 1624.


O episódio, narrado pelo padre Antonio Vieira, em sua Annua, é apenas um sobre a participação dos leitos de águas doces na história da cidade de Salvador. Um manancial de episódios estão guardados nessas águas ainda não navegadas sobre a formação da cidade.


"Mas, quem poderá explicar os trabalhos e lástimas desta noite. Não se ouviam por entre os matos senão ais sentidos e gemidos lastimosos das mulheres que iam fugindo; as crianças choravam pelas mães, elas pelos maridos, e todos e todos, segundo a fortuna de cada um, lamentavam sua sorte miserável. Acrescentava-se a este outro trabalho não menor, que, como forçadamente, para passarem avante, ia demandar um rio a que chamam Rio Vermelho", escreveu padre Vieira no relatório enviado à Cidade de Roma, ao geral da Companhia de Jesus.


Coube a Frederico Edelweiss afinal apontar o nome de origem do rio que acompanhou o desenvolvimento de Salvador ao longo de quatro séculos. A forma Camarajipe se manteve até meados do século XVIII, quando o desconhecimento ao tupi, língua que denomina a maioria dos acidentes geográficos desta capital, transformou o rio em Camurugipe - erroneamente legitimado como rio dos robalos.


"Daí por diante o vocábulo sofre pequenas modificações, isto é, pequena nos fonemas, mas grave no sentido", explica Edelweiss na revista do caderno nº 57 do Centro de Estudos Bahianos, onde ainda esclarece o nome original da Lagoa Abaeté. O camará vermelho que nomeia o rio e o ornamentava é uma planta tóxica, que margeava a extensão do ribeiro. Segundo Inácio de Menezes, autor de Flora da Bahia, o camará vermelho é a Lantana camará ou Lantana aculeata. Seu nascedouro principal estava localizado na antiga Freguesia de Pirajá, norte do antigo sítio soteropolitano. Eram mais de 13km até a antiga foz no Largo da Mariquita, bairro do Rio Vermelho.


Se os índios usaram da relação que existia entre o rio e o seu entorno para caracterizá-lo, os portugueses travam uma relação de apropriação linguística diferente. O Rio das Tripas, afluente deste Camarajipe, sempre foi utilizado como escoadouro natural dos dejetos da cidade que crescia, além de defesa natural da parte leste do sítio primeiro da cidade. E antes de receber alguma alcunha peculiar à sua topografia teria recebido o primeiro balde de fezes e lixo. Em seguida, vieram os descartes dos bois abatidos no matadouro no fundo da colina de São Bento, próximo à nascente. Das vísceras lançadas no curso d'água, o topônimo Rio das Tripas. Como forma de entulhar o alagadiço, a orla do pântano tornou-se depósito de lixo da cidade - motivando outra denominação urbana curiosa "Monturinho de São Bento", que a picardia popular transformou em Rua do Paraíso.


O etnólogo e escritor baiano, autoridade em cultura popular, Édison Carneiro, em A Cidade do Salvador - 1549, explica que a existência do Rio das Tripas e do extenso brejo que formava foi uma das razões que levaram Tomé de Souza a plantar a Cidade na colina. "Valia por um fosso natural, uma barreira intransponível para os recursos militares da época. (Se) os portugueses não tiveram oportunidade de explorar a vantagem que a natureza lhes oferecia, os holandeses, quando capturaram a Cidade (1624), não se descuidaram de colocar bocas de fogo dominando o cinturão de água", esclareceu Édison, sobre como após a tomada da cidade, o ribeiro foi utilizado para defesa do invasor de 9 de maio de 1624 a 1º de maio de 1625.


O rio das Tripas se espalhava "ora mais rasa, ora mais profunda, por vezes alargando-se em poças, inundava todo o vale, transformando-o num vasto e perigoso tremedal", pontua Édison. Represado e transformado em linha de defesa, o rio das Tripas formou o Dique dos Holandeses - equivocadamente comparado ao Dique do Tororó, este sim natural, denominado pelo  príncipe Ferdinando Maximiliano José, da Áustria, em 1860, como Jóia da Bahia. O Dique dos Holandeses era um fosso profundo construído a partir do represamento do rio na altura das colinas do Carmo e de São Bento. Os pontos de passagem eram vigiados pelos holandeses que haviam sitiado a cidade.


Em razão da dificuldade em expulsá-los por um ano, os soteropolitanos acabaram por se estabelecer na Palma, Santana, Poeira e Saúde, iniciando a ocupação da segunda linha de cumeada em direção ao lado oposto  e a expansão da cidade. Claro que El Rei de Portugal, Dom João III,  no regimento que deu a Tomé de Souza, não havia pensado no infortúnio de o rio ser usado como resistência holandesa. Em sua recomendação ao primeiro governador geral, orienta que a escolha para o local da cidade deveria ser em "sítio sadio e de bons ares, e que tenha abastança de águas, e porto em que bem possam amarrar navios". A recomendação do rei era  a mesma que norteava a fixação de tribos indígenas e das futuras fundações na nova terra.


Rio do vale


O Rio dos Seixos que corre atualmente pelo Vale do Canela e no canteiro central da Avenida Centenário antes de desembocar no BarraVento, foi importante defesa natural para as primeiras instalações que se fizeram em Salvador. Embora poucos saibam, o sítio da aldeia em que viveu Diogo Álvares Caramuru, na região do Porto da Barra, tinha a depressão embrejada dos Seixos como uma defesa natural.

O mesmo rio serviu de proteção para o donatário Francisco Pereira Coutinho e seu fortim, que se estabeleceu nas imediações de onde vivia Diogo Álvares. "Construiu casas para cem moradores e tranqueiros em redor e uma torre já no primeiro sobrado para a defesa contra qualquer ataque pelo lado do mar, enquanto que dos índios protegia-se com a estacada e os charcos alimentados pelo Rio dos Seixos", explica o pesquisador Thales de Azevedo, em Povoamento da Cidade do Salvador.  Há ainda o exemplo da antiga aldeia dos franceses, a Mairaquiquiig na linguagem indígena, situada justamente na embocadura do Rio Vermelho, chamada Largo da Mariquita.


Também às margens de riachos e rios surgiram os primeiros engenhos de açúcar, as primeiras lavouras, os primeiros currais, aldeiamentos e povoações, como Pirajá, Itapuã e Ipitanga. Os veios da capital baiana, no entanto, pela largura e vazão, não eram navegáveis. Em 1757, o vigário Pedro Barbosa Gondim explica na "Notícia sobre a Freguezia de Nossa Senhora de Brotas da Cidade da Bahia", os atributos dos rios que o cercavam. Os rios das Pedras, Caramajipe ou Lucaia, reclamava, não se prestava à navegação, "posto que nos tempos de inverno costumão encher, e estagnar de Sorte, que negão passagem, ficando esta fácil ao depoes com a diminuição das águas por benefício do verão".


Se como vias de transporte os rios não puderam ser utilizados, por muitos anos, foram represados para o abastecimento municipal. Daí, o antagonismo em relação à sua utilização pretérita como formador e manancial da cidade. Até 1850, Salvador não possuía serviço regular de fornecimento de água.  Com 60 mil habitantes, o abastecimento era feito através de fontes públicas.

A partir da constituição da companhia do Queimado em 1852, são feitos os primeiros barramentos. Mas a busca por água leva à procura cada vez mais longe dos centros urbanos - como forma de proteger a saúde humana e continuar condenando aos leitos próximos funções outras. A contradição, que passa a permear a relação dos homens com os recursos ambientais no meio urbano, tem nos rios um exemplo emblemático: por um lado responsáveis pelo suprimento de água; por outro lado, área de descarte e deposição de dejetos. Talvez ao nomear o Rio Camarajipe, os índios ensinaram não apenas mais uma palavra em seu tupi, mas também o respeito que tinham pelas águas e também por seu entorno.