Por não haver Moisés, cajado ou mar, não era menor o sacrifício daquela gente. Cegas pela noite de desespero, fugiam mulheres e crianças dos holandeses que atacaram a cidade de Salvador em suas 24 naus praguejadas. Assustados e ainda lamentando pelo caminho a desgraça, eis que surge mais um obstáculo à terrível fuga: um rio, chamado Vermelho, em adptação à nomenclatura tupi Camarajipe ou "rio dos camarás" - espécie de arbusto cujas flores vermelhas margeavam o regato. Alargado no período chuvoso de abril, tornou-se uma provação aos fugitivos. Alguns teriam se afogado e morrido ao tentar transpor o rio para seguir na direção de Abrantes, onde foi consolidada a resistência holandesa, em 1624. O episódio, narrado pelo padre Antonio Vieira, em sua Annua, é apenas um sobre a participação dos leitos de águas doces na história da cidade de Salvador. Um manancial de episódios estão guardados nessas águas ainda não navegadas sobre a formação da cidade.
"Mas, quem poderá explicar os trabalhos e lástimas desta noite. Não se ouviam por entre os matos senão ais sentidos e gemidos lastimosos das mulheres que iam fugindo; as crianças choravam pelas mães, elas pelos maridos, e todos e todos, segundo a fortuna de cada um, lamentavam sua sorte miserável. Acrescentava-se a este outro trabalho não menor, que, como forçadamente, para passarem avante, ia demandar um rio a que chamam Rio Vermelho", escreveu padre Vieira no relatório enviado à Cidade de Roma, ao geral da Companhia de Jesus.
Coube a Frederico Edelweiss afinal apontar o nome de origem do rio que acompanhou o desenvolvimento de Salvador ao longo de quatro séculos. A forma Camarajipe se manteve até meados do século XVIII, quando o desconhecimento ao tupi, língua que denomina a maioria dos acidentes geográficos desta capital, transformou o rio em Camurugipe - erroneamente legitimado como rio dos robalos.
"Daí por diante o vocábulo sofre pequenas modificações, isto é, pequena nos fonemas, mas grave no sentido", explica Edelweiss na revista do caderno nº 57 do Centro de Estudos Bahianos, onde ainda esclarece o nome original da Lagoa Abaeté. O camará vermelho que nomeia o rio e o ornamentava é uma planta tóxica, que margeava a extensão do ribeiro. Segundo Inácio de Menezes, autor de Flora da Bahia, o camará vermelho é a Lantana camará ou Lantana aculeata. Seu nascedouro principal estava localizado na antiga Freguesia de Pirajá, norte do antigo sítio soteropolitano. Eram mais de 13km até a antiga foz no Largo da Mariquita, bairro do Rio Vermelho.
Se os índios usaram da relação que existia entre o rio e o seu entorno para caracterizá-lo, os portugueses travam uma relação de apropriação linguística diferente. O Rio das Tripas, afluente deste Camarajipe, sempre foi utilizado como escoadouro natural dos dejetos da cidade que crescia, além de defesa natural da parte leste do sítio primeiro da cidade. E antes de receber alguma alcunha peculiar à sua topografia teria recebido o primeiro balde de fezes e lixo. Em seguida, vieram os descartes dos bois abatidos no matadouro no fundo da colina de São Bento, próximo à nascente. Das vísceras lançadas no curso d'água, o topônimo Rio das Tripas. Como forma de entulhar o alagadiço, a orla do pântano tornou-se depósito de lixo da cidade - motivando outra denominação urbana curiosa "Monturinho de São Bento", que a picardia popular transformou em Rua do Paraíso.
O etnólogo e escritor baiano, autoridade em cultura popular, Édison Carneiro, em A Cidade do Salvador - 1549, explica que a existência do Rio das Tripas e do extenso brejo que formava foi uma das razões que levaram Tomé de Souza a plantar a Cidade na colina. "Valia por um fosso natural, uma barreira intransponível para os recursos militares da época. (Se) os portugueses não tiveram oportunidade de explorar a vantagem que a natureza lhes oferecia, os holandeses, quando capturaram a Cidade (1624), não se descuidaram de colocar bocas de fogo dominando o cinturão de água", esclareceu Édison, sobre como após a tomada da cidade, o ribeiro foi utilizado para defesa do invasor de 9 de maio de 1624 a 1º de maio de 1625.
O rio das Tripas se espalhava "ora mais rasa, ora mais profunda, por vezes alargando-se em poças, inundava todo o vale, transformando-o num vasto e perigoso tremedal", pontua Édison. Represado e transformado em linha de defesa, o rio das Tripas formou o Dique dos Holandeses - equivocadamente comparado ao Dique do Tororó, este sim natural, denominado pelo príncipe Ferdinando Maximiliano José, da Áustria, em 1860, como Jóia da Bahia. O Dique dos Holandeses era um fosso profundo construído a partir do represamento do rio na altura das colinas do Carmo e de São Bento. Os pontos de passagem eram vigiados pelos holandeses que haviam sitiado a cidade.
Em razão da dificuldade em expulsá-los por um ano, os soteropolitanos acabaram por se estabelecer na Palma, Santana, Poeira e Saúde, iniciando a ocupação da segunda linha de cumeada em direção ao lado oposto e a expansão da cidade. Claro que El Rei de Portugal, Dom João III, no regimento que deu a Tomé de Souza, não havia pensado no infortúnio de o rio ser usado como resistência holandesa. Em sua recomendação ao primeiro governador geral, orienta que a escolha para o local da cidade deveria ser em "sítio sadio e de bons ares, e que tenha abastança de águas, e porto em que bem possam amarrar navios". A recomendação do rei era a mesma que norteava a fixação de tribos indígenas e das futuras fundações na nova terra.
Rio do vale
O Rio dos Seixos que corre atualmente pelo Vale do Canela e no canteiro central da Avenida Centenário antes de desembocar no BarraVento, foi importante defesa natural para as primeiras instalações que se fizeram em Salvador. Embora poucos saibam, o sítio da aldeia em que viveu Diogo Álvares Caramuru, na região do Porto da Barra, tinha a depressão embrejada dos Seixos como uma defesa natural.
O mesmo rio serviu de proteção para o donatário Francisco Pereira Coutinho e seu fortim, que se estabeleceu nas imediações de onde vivia Diogo Álvares. "Construiu casas para cem moradores e tranqueiros em redor e uma torre já no primeiro sobrado para a defesa contra qualquer ataque pelo lado do mar, enquanto que dos índios protegia-se com a estacada e os charcos alimentados pelo Rio dos Seixos", explica o pesquisador Thales de Azevedo, em Povoamento da Cidade do Salvador. Há ainda o exemplo da antiga aldeia dos franceses, a Mairaquiquiig na linguagem indígena, situada justamente na embocadura do Rio Vermelho, chamada Largo da Mariquita.
Também às margens de riachos e rios surgiram os primeiros engenhos de açúcar, as primeiras lavouras, os primeiros currais, aldeiamentos e povoações, como Pirajá, Itapuã e Ipitanga. Os veios da capital baiana, no entanto, pela largura e vazão, não eram navegáveis. Em 1757, o vigário Pedro Barbosa Gondim explica na "Notícia sobre a Freguezia de Nossa Senhora de Brotas da Cidade da Bahia", os atributos dos rios que o cercavam. Os rios das Pedras, Caramajipe ou Lucaia, reclamava, não se prestava à navegação, "posto que nos tempos de inverno costumão encher, e estagnar de Sorte, que negão passagem, ficando esta fácil ao depoes com a diminuição das águas por benefício do verão".
Se como vias de transporte os rios não puderam ser utilizados, por muitos anos, foram represados para o abastecimento municipal. Daí, o antagonismo em relação à sua utilização pretérita como formador e manancial da cidade. Até 1850, Salvador não possuía serviço regular de fornecimento de água. Com 60 mil habitantes, o abastecimento era feito através de fontes públicas.
A partir da constituição da companhia do Queimado em 1852, são feitos os primeiros barramentos. Mas a busca por água leva à procura cada vez mais longe dos centros urbanos - como forma de proteger a saúde humana e continuar condenando aos leitos próximos funções outras. A contradição, que passa a permear a relação dos homens com os recursos ambientais no meio urbano, tem nos rios um exemplo emblemático: por um lado responsáveis pelo suprimento de água; por outro lado, área de descarte e deposição de dejetos. Talvez ao nomear o Rio Camarajipe, os índios ensinaram não apenas mais uma palavra em seu tupi, mas também o respeito que tinham pelas águas e também por seu entorno.
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