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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA PEÇA "AS TRÊS IRMÃS" DE ANTON TCHECOV

Tchecov era médico e dramaturgo e seu livro tem muito de psicologia
21/04/2023 às 10:30
  É sempre um prazer imenso comentar uma obra de Anton Tchecov (1860-1904) esse russo que também foi médico e dramaturgo, considerado um dos melhores e mais criativos contistas do século XIX no Ocidente, diante de sua linguagem refinada, criações literárias de uma Rússia em movimento intenso nesse campo com o niilismo nascente e muitas transformações na sociedade, tanto no campo social; quanto no científico. É dessa época que vão surgir a psicologia científica com Wilhelm Wund (1832-1920) e a psicanálise com Sigmund Freud (1852-1939).

   Em "As Três Irmãs" (Editora Nova Cultura, tradução de Maria Jacintha, 1995, 281 páginas; incluindo "O Beijo e Outras Histórias", tradução de Boris Schnaiderman) me detenho na narrativa das três irmãs - Olga, Maria e Irina - o autor se concentra num debate entre a verdade e a justiça; a esperança de uma nova vida melhor e intelectualizada e a decepção de viver na província - no cenário bucólico da Rússia interiorana - e vai navegando com sua pena e imaginação nas questões de ordem social e da necessidade do avanço do ser (tem muito de psicologia), uma delas (Olga) entendendo que o futuro encontrava-se em Moscou e só atingiria a felicidade se voltasse a morar na capital do império, onde outrora já vivera.

   Um drama que mão contava com o apoio do esposo de sua irmã Irina (Férdor Ilitch Kulyguin, professor do liceu local), igualmente ansiosa para morar em Moscou, a desconfiança do seu irmão (Andrei) músico e poeta, todos da família Prosorov, uma casa da burguesia bem estruturada. Os ares de Moscou, que, nessa época, rivalizava com a sofisticada São Petesburgo em saber e desenvolvimento lhes pareciam adequados a mudarem de vida, pelo menos assim pensavam as irmãs e lutavam por isso, ao menos em desejos expressos nos seus argumentos.

   Então, o diálogo entre as irmãs e amigos militares, a exceção do marido de Maria (Macha) - já dito acima professor - de Feraponte, guarda da administração rural; e Anfissa, velha ama com 80 anos de idade, se passa nesse cenário teatral (o conto é em forma de drama, peça de teatro) e o autor usa de todos os artifícios para emoldurar as cenas teatrais descrevendo os ambientes em que vivem como se os leitores estivessem acompanhando tudo sentados numa poltrona de uma casa de espetáculos. Isso faz com que o leitor prenda sua atenção na narrativa contendo monólogos interiores de fáceis entendimentos, à primeira vista, mas de complexas interpretações.

    Primeiro, os leitores devem se ater ao momento histórico em que o livro foi escrito e como era a sociedade russa na segunda metade do século XIX. Depois, acostumar-se com os sobrenomes russos dos personagens, muito usados nos textos - Tusenbach, Verchinin, Tchebutyhkin, etc - de difíceis percepções dos leitores brasileiros. O autor, no entanto, facilita a leitura de todos aqueles que se interessam por essa obra dividindo-a em 4 anos (como no teatro), o que ajuda bastante na compressão do texto geral e do ambiente onde se passam os atos, com detalhes bem interessantes e sutis. 

   No momento em Tchecov abre o texto enumerando: "Casa dos Prosorov. Um salão com colunas, além dos quais vê-se uma grande sala, Meio-dia. Claridade alegre de sol. No salão estão preparando a mesa para o almoço. Olga, com o uniforme azul dos professores de liceu para moças, corrige, sem se deter, cadernos escolares, de pé e passeando. Macha sentada, vestida de preto, com chapéu sobre os joelhos, lê um livro. Irina, de branco, está de pé sonhadora".

  Então, isso contribui e muito para a interpretação dos leitores, uma vez que, com essas poucas linhas traça o cenário onde se passarão os diálogos e um perfil (ralo que seja) das irmãs, uma com ar despretencioso e imaginando coisas (Olga), pois, abre o primeiro ato lembrando da morte do seu pai na fria Moscou e vai se fixar, adiante, no retorno à cidade como uma tábua de salvação para sua erudição e conhecimento; Maria lendo um livro, o que também demonstra que se se trata de uma família de pessoas preocupadas com o saber; e Irina, uma sonhadora, a qual também via Moscou como o lugar ideal para viverem.

  Andrei, então, nesse mais adiante, interpreta: "Leio. Nosso pai, que Deus tenha sua alma, nos esmagava de cultura. É cômico e tolo dizer mas devo confessar que, depois de sua morte, comecei a engordar e em um ano fiquei gordo assim, como se meu corpo se tivesse libertado de uma carga. Graças ao pai, minhas irmãs e eu conhecemos o francês, o alemão, o inglês e Irina ainda o italiano. Mas, a que preço!"
 
  Olga, já com o pensamento fixo em retornar para viver em Moscou rebate: "Nesta cidade, conhecer três línguas é um luxo inútil. Mais do que luxo, é um apêndice inútil, qualquer coisa assim como um sexto dedo. Nós conhecemos muitas coisas supérfluas".

  Isto é: para Olga, de nada valeriam para ela e as irmãs serem detentoras de conhecimentos mais abrangentes se o meio em que viviam não ofereciam condições para sua aplicabilidade (a saída, na subjetividade dos pensamentos) seria Moscou.

  O coronel Verchini aduz: "Conhecem muitas coisas supérfluas! Pois a mim me parece que não existe nem pode existir cidade bastante triste e parada que nos dispense do dever de seremos cultos e inteligentes...Dentro de 200 a 300 anos a vida na Terra será extraordinariamente bela...o homem tem necessidade dessa vida, e se ela ainda não existe, deve pressenti-la, esperá-la, sonhá-la, preparar-se para recebê-la e para isso procurar ver e conhecer mais do que viram e conheceram seu avô e seu pai. (Ri) E vocês lamentam conhecer algumas coisas supérfluas!"

  Veja, pois, leitor, que o autor russo, no século XIX, já falava (entre aspas) no homem supérfluo, hoje, tão em debate na filosofia por Luiz Felipe Pondé e outros, conceito que admite várias interpretações na medida em que esse ser supérfluo que, de alguma forma, detém conhecimento, possui uma valoração. Nada, pois, seria supérfluo, na sua essência (salvo o supérfluo inútil) desde que a pessoas tenha conhecimentos (caso das irmãs poliglotas, as quais não tinham, na Província, como exercitar seus saberes), mas poderiam aplicá-lo em Moscou.

  O médico militar (Tusebnach) presente na sala complementa: "O senhor diz que daqui a muitos anos a vida na terra será bela...é verdade, mas para que participemos dessa vida desde agora, mesmo de longe, é preciso que nos preparemos para ela, é preciso trabalhar...".

  A peça, portanto, se desenrola nesse diapasão. Andrey se envolve em jogatina e quase arruína a família além do que, reclama que sua esposa Natasha não tem o tratamento adequado das suas irmãs. A mulher provinciana e resoluta (Natascha) tem um caso com  o chefe do Conselho Distrital, no qual Andrey (seu marido) servia. 

  Irina com o passar do tempo abandona o sonho de um amor verdadeiro em Moscou, aceitando Tuzenbach e seu pedido de casamento, por desespero e não por amor. Assim como suas irmãs, está exausta com os debates que não levavam a coisa alguma.  
Ao final do ato 3, com a aceitação de Irina da proposta de Tuzenbach e o reconhecimento do problema de jogo de Andrey (seu irmão), fica claro que as irmãs nunca mais voltarão a Moscou. 

   O ato 4 simboliza o fim da esperança e as irmãs sentem que nunca voltarão à Moscou, a desilusão toma conta das Prosorov com sinais de depressão. Questão, aparentemente resolvida, pelo menos no plano da existência terrena do tipo segue a siga adiante, mesmo com os psicológicos de cada uma delas abalado, Olga se dedicando ao trabalho no liceu; Maria de volta ao ex-marido; Irina, solteira diante da morte do noiva; e Natasha, a provinciana rude, esta, sem seu psicológico abalado, opta por amigar-se com o conselheiro distrital; Andrey, desprezado, abandonado.

   Tchecov mostra na peça que desejos imaginados e possíveis novas esperanças a serem alcançadas nem sempre podem ter sucesso e que essa permanente luta do 'sapiens' por conquistas nem sempre são atingias. E, ao mesmo tempo, revela-nos que, o fim da vida não acaba por viver na província. É como se dissesse é melhor aqui do que no túmulo. Por isso mesmo, nenhuma delas opta por este sombrio caminho.