Pode-se até não gostar de alguns pontos-de-vista do que fala, descreve, argumenta, porém, quem assim achar por bem desdizer o dito que o faça com a mesma atitude de Kertész o fez
São raras na Bahia autobiografias de políticos elaboradas na primeira pessoa com depoimentos abrangentes das suas vidas social, politica e empresarial. Conheço poucos trabalhos com esse viés. Já tive oportunidade de ler biografias de políticos como Luís Viana Filho, elaborada pelo Senado; de Antônio Balbino de Carvalho Filho, da Câmara dos Deputados; a de Waldir Pires organizada por Emiliano José, dois volumes; e a de Ruy Barbosa escrita por Rubem Nogueira.
Uma biografia sobre ACM, chegou a ser muito comentada, dizem que o possível autor recebeu a “gaita”, mas nunca foi publicada. Há uma obra - que também já li - escritor pelo jornalista João Carlos Teixeira Gomes (Joca) intitulado “Memória das Trevas” que o autor classificou uma “devassa na vida de ACM”.
O livro autobiográfico de Mário Kertész, “Riso – Choro – e tudo mais que vem no meio” (EDUFBA, ORGANIZAÇÃO Sheila Kaplan, 2025, capa Marcelo Kertész (foto) e Paulo Junger, dezenas de fotos internas (arquivo do autor) 353 páginas, R$70,00 nas livrarias de Salvador) fala bastante de ACM sem radicalismo, de forma moderada, civilizada, embora o autor revele com sinceridade todo o seu sentimento sobre o político baiano, quer na fase de conhecimento e aproximação; que na fase de rompimento e depois reconciliação.
O livro, no entanto, não registra somente os fatos relacionais a ambos personagens, ainda que seja o mais relevante da publicação, pois, circulam diferentes versões no meio político sobre o rompimento político dos dois, em 1983, quando MK se recusou a apoiar o pré-candidato Clériston Andrade a governador, e agora tem-se uma versão documentada, sem rodeios, afirmativa, com a digital de Kértész.
O livro de Kértész, no entanto, não se limita a esse fato mais relevante. Trata-se de uma publicação abrangente sobre o autor, sua família judia, os preconceitos que haviam naquela época (décadas de 1940/1950) sobre os judeus em Salvador, as correntes judaicas, a vida social de sua família, os estudos, como ingressou na administração pública e se tornou prefeito da capital indicado por ACM aos militares do golpe de 1964, também prefeito eleito pelo voto popular, as mudanças que promoveu na cidade não só do ponto de vista físico, mas também na mentalidade da população (um novo olhar para a cidade) e sua carreira como comunicador de rádio e multimídia em comunicação – jornal, TV e internet.
O diferencial de tudo está no fato de que se trata de um relato pessoal – única fonte – de suas vivências desde o período infanto-juvenil até os dias atuais. O protagonista é o próprio autor e nada melhor de quem viveu todos esses momentos da existência para relatar o que se passou, os sentimentos, as vitórias, as derrotas, as conquistas, as perdas, os fatos que aconteceram em suas gestões como prefeito de Salvador, a sua trajetória como comunicador, enfim, um apanhado geral bem estruturado e sincero dessa trajetória.
Pode-se até não gostar de alguns pontos-de-vista do que fala, descreve, argumenta, porém, quem assim achar por bem desdizer o dito que o faça com a mesma atitude de Kertész o fez. O importante a ser comentando como faço é que há dizeres agora postos no papel, em documento, de fatos que aconteceram em Salvador muitos dos quais existem inúmeras versões e Kertész dá a sua sem rodeios, sem subterfúgios, colocando os acentos nos seus devidos lugares, criticando alguns atores, elogiando outros, sem usar evasivas e sem ser raivoso.
Quando do rompimento politico com ACM, em 1983, cita como foi sua ia ao Palácio de Ondina e o que se passou: “Olha, eu vim aqui dizer ao senhor que não vou apoiar a candidatura de Clériston Andrade à sua sucessão. O senhor me chamou para ser prefeito de Salvador, Nunca, em nosso acerto, ficou estabelecido que eu ia apoiar quem o senhor quisesse. Tenho direito de escolher, já disse isso outras vezes. E, não vou apoiar Clériston, não. Acho ele uma péssima escolha para a Bahia”.
- Você sabe o que vai acontecer?
- Claro, o senhor vai me demitir. Eu vim para lhe comunicar o que acabei de dizer e esperar a minha demissão.
- Peça demissão.
- Eu? Pedir demissão? Não, não tenho nenhuma razão para pedir demissão. Eu estou fazendo uma boa administração e o senhor sabe disso. O senhor é quem vai me demitir. Não vou pedir demissão nenhuma. () O que eu soube foi que, naquela mesma noite, depois que eu deixei o Palácio de Ondina, ele reuniu aquele grupo que estava lá para discutir sobre quem deveria ser o meu substituto. E, ainda naquela mesmíssima noite, chamou Renan Baleeiro ao palácio para dizer que ele iria assumir a prefeitura em meu lugar”.
Sobre esse gesto de ACM, MK diz não ter gostado uma vez que o próprio ACM tinha lhe dito “não fale com ninguém que você saiu da prefeitura. Pelo menos, até amanhã de manhã, que eu quero conversar com você de novo”.
Depôs MK: “O que posso dizer é que, naquele episódio, ACM foi muito sacana comigo. E, depois que armou e aprontou tudo, passando a versão mentirosa dele para a imprensa e botando Renan para me substituir, ainda tentou falar comigo. Ligou para mim umas duas ou três vezes. Então, eu falei com Sebastião Almeida, oficial de gabinete que trabalhava com ele: ‘Diga a Antônio Carlos que ele vá a merda. Eu não tenho mais nada para conversar com ele’.
Kertész relata os acontecimentos depois desse episódio, a morte de Clériston Andrade, a eleição de João Durval governador, seu ingresso no PMDB e a vitória para prefeito, após dois anos (1983-1984) muito difíceis. “Eliana exercia seu cargo de vereadora, mas eu estava no mais completo ostracismo, sofrendo, ainda, as perseguições de Antônio Carlos. E o negócio não era só pessoa, individual. Como eu mencionei anteriormente, Antônio Carlos partiu para perseguir todo mundo que trabalhava comigo. Todo mundo que estava do meu lado. E pedia a cabeça de pessoas até na iniciativa privada”.
MK então ingressa no PMDB, foi eleito vice-presidente do partido no estado numa articulação feita por Roberto Santos, “contrariando, inclusive Waldir Pires, que, em nada, nunca foi favorável a mim” e disputou a prévia no partido para a escolha do candidato a prefeito da capital diante Marcelo Cordeiro, obtendo uma vitória com 77% dos votos. Eleito prefeito, assumiu em janeiro de 1986 e chegou a analisar a possibilidade de ser candidato a governador, ainda em 1986, porém apoiou Waldir Pires. Ademais, após, uma gestão inovadora em Salvador (1986/1989) não conseguiu fazer o sucessor a prefeito como gostaria, apoiando Fernando José.
Mário considera esses dois fatos seus maiores erros políticos, os quais, na prática, inviabilizaram sua trajetória política adiante. “Ao não me tornar governador (na disputa com Waldir) deixei meu projeto com a perna quebrada. Mas não foi só. Cometi, em seguida, um outro grande equívoco. Foi na minha própria sucessão. () Quando a gente saiu da prefeitura, fiquei na esperança ilusória de que Fernando José poderia dar segmento aos projetos que levei para a cidade, já que ele não tinha nenhum projeto para Salvador. O fato de ter embarcado em mais uma aventura, mais uma armação de Pedro Irujo”.
Ainda houve algumas tratativas para emplacar Sérgio Gaudenzi ou até Roberto Santos, este último como candidato da unidade partidária, mas, este disse a Fernando Scmidt que “se Waldir o apoiasse, ele seria meu candidato”. Waldir negou, atesta MK destacando que “Acabei entrando numa furada. Paguei um preço altíssimo por isso. E muito caro. Porque o meu projeto acabou ali”.
Não vou narrar mais fatos registrados por MK no livro porque senão nosso comentário fica extenso e também retira do leitor o apetite em comprar a obra. O importante a destacar é que os depoimentos de MK em “Riso Choro” são reveladores de muitos acontecimentos da política baiana em dois períodos distintos e complementares, da ditatura e do retorno à democracia, ditos por quem participou ativamente desses processos na capital baiana, e, por extensão no estado uma vez que são mobilizados e inseridas figuras notórias da política estadual, tais como, Antônio Balbino de Carvalho Filho, Antônio Lomanto Jr., ACM, Roberto Santos, Luiz Viana Filho, Waldir Pires, Nilo Coelho, todos ex-governadores da Bahia.
Como já dito acima, o livro de MK não fala só de polícia e na inicial relata aspectos sociais da cidade, o andar do judaísmo, revela por exemplo, que foi estudar no Colégio 2 de Julho (misto) único da capital que não tinha preconceitos com judeus, abre janelas para estudos do judaísmo na Bahia (as correntes distintas), como era a cidade no seu tempo de jovem. Enfim, são citações que emulam novos estudos e abrem espaços para aprofundar esses temas, assim como, no radialismo, que imprimiu um novo modelo de locução na cidade e no estado.