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Rosa de Lima

LITERATURA: SODOMA E GOMORRA, DE MARCEL PROUST - COMENTA ROSA DE LIMA

Autor francês aborda o tema da homossexualidade no inicio do Sec XX (1922) quando o tema era um tabu e ainda se chamava de inversão
03/03/2023 às 10:38
    O poeta e crítico literário Fernando Py tradutor da obra de Marcel Proust intitulada "Em Busca do Tempo Perdido", que engloba 7 volumes embora única e sequencial do comportamento humano na França em momento da aristocracia da "Belle Époque" (em parte decadente, porém, assanhada) do final do século XIX e do florescer do século XX (o autor nasceu em 1871 e morreu em 1922, Paris, tendo sua obra sido publicada entre 1913 e 1927; a "Belle Époque" vai de 1871 a 1914) revela que Proust vai amadurecendo em sua escrita a medida do tempo, o próprio incluído nesse contexto também como personagem. Isto é: há uma fase de transição entre a adolescência e a fase adulta - "entre a sensibilidade juvenil e a inteligência madura, entre a vida e a morte" - e isso é perceptível em sua obra.

 Proust - como suponho sabem os nossos leitores - morreu jovem e escreveu os últimos volumes de "Em Busca do Tempo Perdido" já bastante adoentado. Chegamos, nós, ao 4º volume que se intitula "Sodoma e Gomorra", NRF 1922/1923 (Editora Nova Fronteira, tradução Fernando Py, 2016, 408 páginas) em que aborda a inversão sexual de forma mais direta, uma vez que já havia dado pinceladas no tema em o "Caminho de Swann" (primeiro volume). 

 Em S&G, a análise do homossexualismo avulta de forma mais aberta. Aos olhos dos dias atuais - o que narra Proust - em especial nos 'amores' do Sr Charlus, um conde de múltiplos acenos em sexo, parece-nos até ingênuo. Mas, é bom observar a época em que esse título foi publicado (1922/1923) quando o tema homossexualismo ainda era um tabu na Europa, menos um pouco na França onde ser homossexual não representava um crime (em alguns outros países, sim) mas ainda não era aceito e praticado consensualmente pela sociedade e debatido pela mídia.

  Teria sido este livro juntamente com Corydon, de André Gide (1869/1951), que abriu as portas ao debate e enxergou-se a inversão (esse era o termo público usado na época) como mais usual do que se imaginava, tanto entre os homens; quanto entre as mulheres. Daí (suponho) teria surgido na cabeça do autor o título do livro S&G uma vez Sodoma se apresentaria como reduto dos homossexuais masculinos; e Gomorra o local das homossexuais femininas. 

  Na Bíblia, registra-se que essas duas cidades teriam sido destruídas por Deus diante de tantos pecados que ocorriam nelas inaceitáveis à luz das leis judaicas, local (imaginário) nas proximidades do Mar Morto, nunca encontrada pelos arqueólogos e que estaria submerso. A narrativa é ficcional como boa parte do que há na bíblia, mas, ainda hoje, quando se deseja falar ou expressar locais de devassidão ampla e irrestrita fala-se que há "uma Sodoma e Gomorra".

  Proust, certamente, quis apimentar seu trabalho com esse título embora não haja na sua obra algo assim que se possa ser comparado a um bacanal, em si. Ele é extremamente cauteloso ao abordar o tema e os encontros do conde Chralus, o mais efervescente dos invertidos citados na obra, são comedidos. E, ele próprio, um representante da aristocracia considerado invertido se posiciona discretamente. Proust era um intelectual e recheia o livro com muitas citações de Balzac e outros artistas da música, do teatro e da pintura e não trata o tema de forma direta como se poderia supor, em orgias nos salões, salvo em raros momentos, em que solta mais a língua.

  Comenta em o Sr. de Charlus em sociedade: "Como não tinha pressa em chegar àquele sarau dos Guermantes a que não estava certo de que fora convidado, fiquei à toa na rua, porém, o dia de verão não parecia ter mais pressa em se mover do que eu. Embora já fossem mais de nove horas, era ainda esse dia que, sobre a praça da Concórdia, dava ao obelisco de Luxor um aspecto nougat cor-de-rosa...diante do palácio da princesa de Guermantes encontrei o conde de Châtellerault, já não lembrava que meia hora antes já me perseguia...tendo de corresponder a todos os sorrisos, a todos os apertos de mão que lhe vinham do salão, ele não reparava no porteiro. Mas desde o primeiro instante o porteiro o conhecera. Aquela identidade que tanto desejava saber, num momento iria conhecê-la".

  O que o autor deixa nas entrelinhas é que o conde, um invertido, era cliente do porteiro noutro local e, por dessas coincidências da vida, o porteiro ao estar trabalhando num sarau da aristocracia depara-se com ele, cuja identidade não conhecia (certamente nos encontros o duque dava um outro nome), mas, naquela solenidade onde os convivas de plumas eram anunciados a plenos pulmões, em sua chegada, o aristocrata sentiu-se perturbado, mas teve que se identificar e o porteiro, "gritou com a energia profissional que se aveludava com uma ternura íntima: - Sua Alteza monsenhor o conde de Châtellerault". 

  Adiante confessa Proust: "Agarrado a mim, o professor E*** só desejava não me deixar. Mas eu acabara de avistar fazendo grandes reverências à princesa de Guermantes para a esquerda e para a direita, depois de ter recuado um passo o marquês de Vaugoubert. Recentemente o Sr. de Norpois nos apresentou, e eu esperava encontrar nele alguém que fosse capaz de me apresentar ao dono da casa. As proporções desta obra não me permitem explicar aqui por causa de quais incidentes da juventude o Sr. de Vougoubert era um dos únicos homens do mundo (talvez o único) que estava como diz em Sodoma, em "confidências" com o Sr. de Charlus". 

  O autor vai sendo mais direto na exposições do homossexualismo nos salões emplumados da França, onde os invertidos compareciam como autoridades e identidades reais, porém, algumas pessoas (como ele e o porteiro, dois exemplos) já os tinha visto em colóquios amorosos, obviamente com outras identidades e sem as plumas e casacas, mas de alma e corpos inteiros.

  Ora, pois, Proust abre mais o verbo e na descrição desse sarau e complementa: "Dizia-se no ministério sem qualquer sombra de malícia, que em casa era o marido que vestia saias e a mulher usava calças. Ora, havia mais verdade nisso do que se imaginava. A Sra. Vaugoubert era um homem. Se fora sempre assim, ou se tornara tal como a via, pouco importa, pois, num caso ou noutro, estamos diante de um dos mais emocionantes milagres da natureza, e que, principalmente o segundo, fazem o reino humano assemelhar-se ao reino das flores. Na primeira hipótese - se a futura Sra de Vaugoubert sempre fora tão pesadamente macha - a natureza como um ardil benfazejo e diabólico, dá à moça o aspecto enganador de um homem".

  Vês que, aos poucos, ao contrário das descrições no livro 3 (Os Caminhos de Guermantes) onde as observações dos saraus eram mais vislumbrando os saberes intelectuais de cada qual, de quem conhecia mais literatura e música, os estilos dos pintores da época, etc, a gastronomia, as joias, os perfumes e a moda, isto é, a ostentação. Em S&G o autor vai desnudando esses personagens na medida em que os vai conhecendo, ele que participava dos saraus e jantares e era homossexual, percebe que a inversão era muito maior do que poderia supor, não só os personagens tendo aventuras amorosas e encontros sexuais fora desse salões, noutras casas já chamadas de prostituição, mas também rolava muita coisa entre eles, na troca de favores em cama e cortinas, e até entre os casais em sí, com este conde que se vestia de mulher (não era o único) e a esposa fazia o papel de homem.  

  "O que eu infelizmente ignorava - revela o autor já na parte final do livro - naquela ocasião, e só vim a saber dois anos mais tarde, é que um dos fregueses do chofer era o Sr de Charlus, e que Morel, encarregado de pegá-lo e guardando para sí uma parte do dinheiro (fazendo o chofer triplicar e quintuplicar o número dos quilômetros) estava muito ligado a este (enquanto fingia não conhecê-lo diante dos outros) e utilizava o seu carro para corridas distantes"

 
   S&D se passa em boa parte do tempo com revelações que vão se avolumando. O autor escanara: "Nesse meio tempo chegara o dia em que Morel devia estar ausente. A missão de Jupien obtivera êxito. Ele o o barão deveriam chegar por volta das 11 da noite e ficariam escondidos. Três ruas antes de chegar à essa esplendida casa de prostituição (aonde vinha gente de todos os arredores elegantes), o Sr Charles andava na ponta dos pés, dissimulava a voz, suplica a Jupien que falasse mais baixo, de medo que Morel os ouvisse lá de dentro. Ora, logo que entrou a passo de gato no vestíbulo, o Sr. de Charlus, pouco habituado a esse tipo de lugares, encontrou-se, para seu terror e estupefação, num local mais barulhento do que a Bolsa de Valores ou a Sala dos Leilões".
 
  "Ponha o cavalheiro no 28, no quarto espanhol". "Já não se pode passar". "Abram a porta, estes cavalheiros perguntam pela srta. Noèmi. Ela os espera no salão persa". O sr. de Charlus estava assustado como um provinciano que tem de atravessar os bulevares... e a patusca segue com Morel noutro quarto com o principe de Guermantes e Charlus a esperá-lo no salão persa. Enquanto isso, na ausência do amante, iria visitá-lo por instantes uma "mulherzinha inteligente" que vestia um peignoir persa...e o sr. Charlus pediu que ela não fizesse nada com ele e ela mandou subir champagne que custava 40 francos. Mais adiante Charlus vê Morel em cena com o príncipe e desmorona em ciúmes.

  Proust é um autor que sabe relatar essa vida mundana parisiene com detalhes, com frenesi, sutilezas e o vai-e-vem dos personagens em amores, casas de prostituição e salões, e tece longos diálogos e comentários que o torna, em determinados momentos enfadonho, cansativo. Exige-se dos leitores muita paciência na leitura. Seu estilo literário é rebuscado, modernista, e em "Em Busca do Tempo Perdido" é considerado um romance com análises psicologias e sociais profundas. Sua obra é sequencial. Em S&D não há um final feliz ou infeliz e ele suspeita que sua amante Albertine seja lésbica daí que a leva para morar consigo e vai narrar isso em "A Prisioneira" (5º volume), a sequência do romance que deveremos apresentar aos nossos leitores em maio próximo.