É sempre um prazer adicional comentar livros que tratam da história da cidade do Salvador da Bahia. A história no sentido mais amplo contemplando a antropologia, a sociologia, a filosofia e outros campos da natureza humana, e não apenas dados e anotações dos fatos históricos em si. E existem muitos trabalhos da academia, de professores e pesquisadores sobre a capital baiana de grande valor e de interesse público ampliado para compreender a cidade e sua gente. 

Cidade não existe sem a população - os "fogos" antigos (casas) e "almas" - como antes se mediam e se citavam quantos habitantes e onde moravam. Salvador sempre foi um sítio imenso desde as épocas do Império e da Repúbliva Velha, embora só tenha inchado de vez a partir da década de 1970, quando vai ultrapassar a casa de 1 milhão e habitantes e hoje beira os 3 milhões, sem contar aqueles (as) que veem da RMS.

  O livro que vamos analisar é "Avenida Sete - antropologia e urbanismo no centro de Salvador - organizado pela professora peruana Urpi Montoya Uriarte, da UFBA, editora EDUFBA, 274 páginas, R$65,00, venda pela internet) que aborda em 12 artigos de professores de diferentes matizes e formações acadêmicas, como o próprio título enuncia - os andares e o comportamento das pessoas no centro histórico - em especial na Avenida Sete de Setembro, e as transformações urbanísticas que foram amplas e agressivas no início do século XX quando o governador JJ Seabra autorizou Arlindo Fragoso a comandar um projeto de transformação dessa via do centro, a mais antiga da cidade e que teve seu traçado inicial sido delineado pelas botas de Thomé de Souza (1549) e do mestre-de-obras Luís Dias, coordenadores da fundação da cidade fortaleza, o caminho para a Vila Velha.

  Creio que não existe tema mais engrandecedor do que esses estudos sobre essa via mais importante da cidade e que atravessa vários bairros - residenciais, comerciais e de lazer - com arquiteturas diferenciadas e uma população heterogênea, de gente que mora no Corredor da Vitória, área do metro quadrado mais caro da cidade, e nunca vai a Avenida Sete comercial - entre o São Bento e a Mercês; e gente que não mora na avenida, mas tem seus negócios em comércio de lojas, tendas, barracas, mesinhas, etc, e vive e sustenta suas famílias com essa renda. 

A Avenida Sete é múltipla, tem andares diferenciados, tem cores, formas e cheiros os mais diversos e tanto se pode ver uma pessoa de biquini andando por sua calçada no Porto da Barra; quanto um monge beneditino, na Ladeira de São Bento; e/ou um aposentado sentado e em prosa com amigos na Piedade.

  Esse trabalho organizado pela professora Urpi Uriarte, doutora em antropologia pela Universidade de São Paulo, tem muitos méritos e ela própria é autora de um dos textos "Espaço Tempo e Memória na Praça da Piedade" quando cita que "a memória é, pois, um agente para entender o espaço, mas é um agente cuja importância maior radica em sua capacidade transformadora. As memórias que encontramos na Piedade induzem a práticas espaciais diferentes, práticas que introduzem as diferenças, criando, portanto, espaços diferenciais que se opõem aos espaços abstratos - espaços do e para o capitalismo - que almejam a homogeneidade, a desdiferenciação. A meu ver a memória é uma das "formas variadas" da atual luta de classes, atesta a antropólopa.

  Vale observar que os artigos publicados no livro da EDUFBA foram gestados em observações e pesquisas de campo no início e meados da década de 2010 e a edição do livro de 2017 e podemos observar que, passados mais de uma década, a Sete e seus usuários e moradores continuam em movimento embora a memória de eventos culturais (poetas na praça e outros) tenham desaparecido de vez e novos não surgiram e o capitalismo - citado pela professora - não conseguiu a homogeneidade e a desdiferenciação não aconteceu. A praça da Piedade, na atualidade, abriga muitos moradores de ruas; tem seu comércio informal inclusive de livros e os aposentados seguem por lá. 

  O livro está dividido em 5 partes: experiência e narrativa da Avenida Sete; espaços adjacentes a Avenida Sete - Rua Chile e Praça do Relógio de Sãop Pedro; alguns trabalhadores da Avenida Sete; os planos de ontem e de hoje para o centro e Avenida Sete; opacidade e resistências na Avenida Sete a arredores. 

  A abordagem é ampla uma vez que a Sete como um largo rio que recebe afluentes em todas as direções, desde a citada Rua Chile (antiga dos Mercadores e/ou Direita do Palácio), a Carlos Gomes, o Largo 2 de Julho, Mocambinho, Areais de Cima e de Baixo, a Junqueira Aires e a Joana Angélica; a direita do Forte e Campo Grande; Garcia, Canela, Rua da Graça, Cezar Zama, Garganta do Paraiso e outras .

  Coube a advogada e pós graduada em arquitetura e urbanismo, Vanessa Souza Pugliese, comentar em "Colcha de Retalhos: uma narrativa tecida da Avenida Sete" dizer que "nessa travessia na Avenida Sete, o corpo dos transeuntes parece ser personagem central no palco das práticas cotidianas". E que é precisa olhar todo o conjunto percorrendo os labirintos e os "praticantes ordinários" os que transitam e os trabalham - dos relojoeiros às costureiras, dos vendedores de comidas aos de flores.   

  Na parte 2 os artigos são de Neivalda Freitas de Oliveira (doutora em História Social pela PUC/SP) e Fernando Firmo Luciano (doutor em Antropologia pela UnB). Neivalda no artigo "Uma viagem de muitas estações em festa” apresenta um descritivo de como a antiga Rua dos Mercadores (Direita do Palácio) da era de Thomé de Souza recebeu o nome de Rua Chile e as festas que aconteceram para saudar a Marinha chilena, no início do século XX, e como essa via se configurou. Diz Neivalda: "Fazendo um apanhado dos acontecimentos relatados neste período, pode-se afirmar que, ao incorporar "Chile" ao nome, a rua não assume outra ou nova importância para a cidade. Ao contrário, sendo um centro comercial admirável, uma via de ligação fundamental, seu nome é mudado justamente por sua importância como artéria, como espaço sociocultural".

  Já Fernando Firmo escreve sobre "A Praça do Relógio de São Pedro: uma imagem do ideal modernista baiano no início do século XX" e acerta na mosca quando comenta que "dos símbolos de modernidade é o Relógio de São Pedro, inaugurado em 1916". É a Salvador da "Belle Epoque" - expressão de euforia e triunfo da sociedade burguesa europeia no momento em que se notabilizavam determinadas conquistas materiais e tecnológicas", cujo exemplo a ser copiado (e como foi) era Paris e sua Torre Eiffel. O relógio de São Pedro, por posto, foi importado da França.

  A igreja de São Pedro Velho caiu em 2013, a Sete foi inaugurada em 1915 e o relógio em 1916 graças a uma ação de representantes do Comércio. O artigo de Firmo é inteligente e ele usa a imagem da foto do relógio para fazer todos os comentários. Comenta: "Espera-se ter ficado claro neste breve texto, como a imagem entra em comunicação, e de modo proeminente, dialoga com o texto escrito e este a complementa. Aqui, apesar do seu aparente silêncio, a fotografia contou histórias, abriu interpretações sobre a cidade, seus habitantes, seus valores e ideologias".

  A parte 3 sobre alguns trabalhadores na Sete, Ana Claudia de Sá Teles Minnaert (mestra em saúde coletiva e antropologia pela UFBA) escreve "Tem China na Avenida" e Rose Laila de Jesus Bouças (urbanista UNEB) e Bruna Tupiniquim Marques (bacharel em Ciências Sociais, UFBA) abordaram o tema "Espaço de Vida e de Labuta" relatos sobre empreendedores desde os chineses que se instalaram na Sete num segundo momento da diáspora chinesa (bem, diferente do pioneiros vendedores de pasteis e lavadores de roupas a seco da década de 1960) e Ana Claudia de Sá observa que não há uma Chinatown em Salvador como em Paris ou NY e os chineses estão integrados no contexto da cidade e da cultura baiana, e até a comida chinesa tem esse diferencial. É admirável suas informações sobre o Ian Ping que está em Salvador desde a década de 1960. Vale um livro à parte.

  Já o trabalho de Rose e Bruna detalha o trabalho informal e os tipos diferentes de ambulantes que são diferenciados e vão desde pequenos empresários organizados e avulsos. Elas comentam: "O centro da cidade se apresenta como um lugar repleto de complexidade no que se refere ao uso do espaço público em sua apropriação pelo trabalho, sendo afetado pelas relações de convívio estabelecidas, onde se evidenciam as dificuldades inerentes ao desgaste do trabalho".

  Na parte 4, artigos mais técnicos sobre os planos urbanísticos, o primeiro artigo de Manoel Nascimento (advogado) o segundo de Maria Isabel Costa Meneses da Rocha (Urbanista da UTRN). Nascimento fala do "Plano de Reabilitação Participativo do Centro Antigo de Salvador - o caso da Chácara Santo Antônio" e Isabel de "um percurso na Sete para entender a pacificação dos espaços públicos urbanos". 

Na parte 6 do livro, sobre a capacidade e resistência na Sete, três artigos, o primeiro de Osnildo Adão Wan-Dall Júnior (arquiteto e urbanista UFSC) sobre "as noites da Bahia de Todos os Santos urbanismo em processo e a literatura de Jorge Amado - Pastores da Noite e outros; o segundo de Urpi Montoya (antropóloga e organizadora do livro), João P.N. Ritter (antropólogo, UFBA)  Rodrigo Anjos de Andrade e Silva (bacharel em ciências sociais, UFBA) sobre fraturas na Avenida; práticas espcaiis e três personagens - e o artigo final de Urpi sobre a Praça da Piedade.

  O livro é muito interessante, uma viagem por Salvador por tempos do passado e atuais com abordagens bem fundamentadas e citações de vários autores. Ou seja, não se trata de um romance ou crônicas, mas, de um trabalho técnico bem embasado e quem lê-lo vai incorporar aos seus conhecimentos dados valiosos sobre a cidade do Salvador.