Livro retrata a vida nos latifúndios de Portugal até a Revolução dos Cravos, em, 1974
Ler José Saramago escritor português prêmio Nobel de Literatura, em 1998, pelo conjunto de sua obra e ápice no quarteto "Memorial do Convento", "Evangelho Segundo Jesus Cristo", "Ensaios sobre a Cegueira" e "A Viagem do Elefante" é sempre um exercício cuidadoso com a língua portuguesa. Ele utiliza os pontos parágrafo ou final e a vírgula, nem sempre como estamos acostumados no português que se escreve no Brasil - o que chamava de sinais de pausa - e dão um outro ritmo no entendimento das orações.
Nada que seja tão hermético e não se possa entender, porém, muitas vezes exige-se aos leitores reler os parágrafos ou frases com suas orações invertidas ou não diretas como praticamos usualmente: sujeito, verbo, complemento (objeto direto ou indireto) e adjunto adverbial. Saramago é mestre em por o predicado antes do sujeito e conferiu à prosa portuguesa reconhecimento internacional, com sua linguagem especial e própria. Não conheço outro autor que a use com tanta sapiência.
Paciência. A sua obra repleta de críticas religiosas - em especial à Igreja Católica - e de cunho social reveladora de atrocidades do regime ditatorial salazarista, é complexa. Em "Levantado do Chão" (Editora Companhia das Letras, 397 páginas, 2020, capa Silvadesigners, caligrafia da capa Mia Couto, revisão Márcia Moura, R$45,00) obra originalmente publicada em Lisboa, 1980, aborda a história de uma família de lavradores dos Mau-Tempo cuja trajetória amargamente vivida nos latifúndios se ambienta em cárceres (prisões), rebeliões, injustiças e explorações humanas, até desembocar na Revolução dos Cravos, em 1974, que pôs fim de uma vez por todas a ditadura salazarista, a essa altura Antônio Oliveira Salazar (1889/1970) já falecido, cujo governo e regime eram comandados por Marcelo Caetano, o qual se exilou no Brasil e por aqui morreu.
Saramago, militante do PC Português e ativista dos direitos humanos, redator e diretor adjunto do Diário de Notícias de Lisboa, à parte sua condição de militante, nos oferece uma obra onde vai tecendo a vida no campo em Portugal - os latifúndios - não tão extensos quantos os do Brasil, porém, com vida análoga de sofrimento onde os lavradores (aqui chamados de camponeses) trabalhavam para comer e sobreviver, durante toda a vida, de pai para filho, de avô a pai, sem direito de ascensão na sociedade salvo exceções daqueles que emigravam para as cidades grandes e deixavam as vilas e povoados onde a maioria vivia, mudando de profissão.
Segundo os estudiosos da obra de Saramago, "Levantado do Chão" foi o livro que marcou seu estilo de escrever após dois dos seus primeiros ensaios (Terra do Pecado e Manual de Pintura e Caligrafa) e textos para peças teatrais e para o DN, ele militante do PC desde 1969, ativista das letras, utiliza o estilo oral das tradições campesinas de Portugal, da população das vilas e povoados, os Mau-Tempo, por posto, habitantes do Monte Lavre, família originária do patriarca Domingos.
Veja, um breve exemplo, de como o autor português usa a sua linguagem como se um trabalhador do campo estivesse a falar: "Domingos Mau-Tempo não chegará a velho. Um dia, quando já tiver feito cinco filhos à mulher, mas não por essa razão tão comum, passará uma corda pelo ramo de uma árvore, num descampado quase à vista de Monte Lavre, e enforcar-se-á. Entretanto, andou com a casa às costas por outros lugares, fugiu por três vezes à família e da última não pode tornar às boas pazes porque tinha chegado a sua hora. Fim desgraçado lhe futurara o sogro Laurentino Caranca quando teve que ceder à teimosia de Sara, enquerençada ao ponto de jurar que não se casasse com Domingos Mau-Tempo não casaria com ninguém. Bem clamou Laurentino Caranca em suas cóleras, É um landim relaxado com fama de bêbado e mal acabara. Andava nisto a guerra familiar, eis que Sara da Conceição apareceu grávida".
Observem que, na linguagem usada por Saramago, o andar com a casa às costas significa que o lavrador já esteve morando noutros lugares e não pode fazer as pazes com a família porque havia chegado sua hora, da morte, típico do pensamento rural de Portugal, o que é também comum no Brasil ouvir essa expressão popular de que, uma pessoa morre, independente de qualquer socorro, médico ou o que seja, porque chegou a hora marcada pelo destino. Observe, também, que após a palavra "cóleras" o autor usa uma virgula e um É na maiúscula para dar sequência a seu pensamento, quando, no normal do português usa-se um ponto sequencial.
Este é só um exemplo de como Saramago usa a linguagem para narrar a trajetória de uma família de lavradores do Alentejo explorada pelo latifúndio, o que já vinha acontecendo há muitos anos no país diante da ditadura salazarista, e surgia uma luz no final do túnel com prováveis mudanças no regime com fervilhante período de revoltas que vai de 1970 (morte de Salazar) a 1974 (Revolução dos Cravos) que iria mudar à condução do poder, não tanto como esperavam os comunistas, porém, ao menos, pondo fim as prisões e mortes no Aljube (a prisão mais famosa de Lisboa).
O autor desenvolve toda a trama acompanhando várias gerações dos Mau-Tempo (denominação da famíia com forte apelo por sua criatividade e fácil de ser interpretada pelos leitores, obviamente, o oposto de Bom-Tempo) no decorrer do século XX até 1974.
É quase impossível dissociar o cunho militante de Saramago e o contexto dessa obra quando expõe as condições precárias de trabalho dos lavradores (poucas famílias dominavam os latifúndios no Alentejo e exploravam a mão de obra de milhares de trabalhadores), a luta política da natureza antifascistas (embora muitos rurais que participavam dela não sabiam o que isso significava do ponto de vista da dialética filosófica e se engajaram levados pela propaganda e na expectativa de uma vida melhor), num emaranhado de fatos com prisões, sofrimento, mortes, casamentos, etc, etc - o que significa, também, uma exposição do retrato da família portuguesa do campo.
O livro tem conteúdo forte e Saramago cria personagens que são a cara de Portugal Rural: Domingos Mau-Tempo, Padre Agamedes, Felisberto Lampas, João Mau-Tempo, Maria da Conceição, Anselmo, José Picanço, Sara da Conceição, Faustina Gonçalves, Tomás Espada, Flor Martinha, Sigismundo Canastro, Joana Canastra, Germano Vidigal, José Gato, Manoel da Revolta, Venta Rachada, José do Telhado, Manuel Espada e outros; o que dá ao livro um sentido bem regional com características de Universal, uma vez que personagens com nomes descrições ambientais parecidas estão na literatura da Rússia com os mujiques, no Brasil, com vários autores, e o fantástico "Viva o Povo Brasileiro" de João Ubaldo; e na literatura latino-americana com Vargas Lllosa e Gabriel Garcia Marques, só para citar dois autores também Nobel de Literatura.
Vamos a outro trecho de "Levantado do Chão" quando João Mau-Tempo (descendente de Domingos e preso como revoltoso comunista) é solto da prisão do Aljube: "Era já noite quando a carrinha deixou João Mau-Tempo à porta do Aljube, parece o diabo dessa viúva-alegre que não conhece outros caminhos, e quando João Mau-Tempo se apeou, pé agora livre, diz-lhe o polícia, Somete-se daqui para fora, parece até que está com pena de o ver ir-se embora, estes policiais são assim, apega-se aos presos e custa-lhes a separação. João Mau-Tempo lança-se a correr pela rua abaixo, é como se o diabo ainda estivesse atrás dele".
Creio que os leitores já perceberam como Saramago trabalha sua narrativa com uso de estilo própria à língua portuguesa. E segue assim até o final do livro quando triunfa a "Revolução dos Cravos". Diz o autor: "É porém certo que o governo foi deitado abaixo. Quando o rancho se reúne no quartel, seu quartel abrigo e morada civil, não de gente militar, já toda a gente sabe muito mais do que imaginara, pelo menos tem agora um rádio pequeno, desses de pilha que parecem canas rachadas, sai tudo aos guinchos, a dois palmos do ouvido ninguém percebe palavras, mas não tem importância, de umas se tiram outras, e a febre tornou-se geral, anda por ali nervosos falando muito, E agora o que é que fazemos, são as grandes hesitações e anseios de quem nos bastidores se prepara para entrar em cena, e se é verdade que os há ali contentes, outros, que tristes não estão, não sabem o que pensar, se isto a alguém parece esquisito, imagina-se no Latifúndio sem vozes nem certezas e depois de me dirá".
Parágrafo emblemático. Saramago, neste texto, aponta a queda do governo com a mudança do regime, a importância do novo meio de comunicação daquela época (década de 1970), o rádio de pilha, que mal se ouve, mas se entende pelo menos em parte o que se deseja dizer aos lavradores, veículo barato e que era usado para difundir as ideias dos revoltosos; e governo apeado do poder havia dúvidas entre os lideres revoltos o que se fazer adiante, que regime implantar, democraticamente; e outros que tudo sabiam, tinham na cabeça o que fazer; e situação pior (faz o comparativo) estava nos latifúndios, agora, os latifundiários sem vez.
Não pretendo mais alongar-me nos descritivos de Saramago - creio que os leitores mesmo aqueles que nunca leram uma obra do autor português já entenderam o que expomos, e quem assim se interessar recomendamos "Levantado do Chão", por seu emblema, por marcar um momento importante na história de Portugal e por dar ao autor o exercício dessa nova linguagem que vai usar para sempre, a partir dos anos 1980, em toda sua obra, até 2010, quando faleceu, auto exilado e morando numa ilha vulcânica na Espanha, ainda inconformado com os regimes de poder no seu querido Portugal.