Waldeck Ornélas é especialista em planejamento urbano-regional. Foi Constituinte de 1988, Deputado Federal e Senador, Secretário do Planejamento, Ciência e Tecnologia da Bahia e Ministro da Previdência e Assistência Social (Governo FHC).
Waldeck Ornelas , Salvador |
11/09/2024 às 09:40
Waldeck Ornelas
Foto:
A observação do cenário político-administrativo nacional revela, a cada dia, novas iniciativas e atitudes heterodoxas,capazes de ruborizar monges de pedra. Sucedem-semedidas inusitadas, todas praticadas em nome da Constituição.
A Constituinte de 1988, de que participei, estabeleceu que os Poderes são independentes e harmônicos entre si. Não autorizou que eles sejam autônomos. Mas é assim que está funcionando no Brasil: cada um por si e Deus contra.
Atribuo a responsabilidade inicial desse processo aos próprios parlamentares e aos partidos políticos que, adotando posições intransigentes, sempre e quando não têm votos no Plenário do Legislativo, recorrem ao que ficou conhecido como “judicialização da política”, dando origem a um inusitado sistema tricameral de aprovação das Leis: Câmara, Senado e Supremo.
O Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez – que no passado rejeitava as questões consideradas “interna corporis” do Poder Legislativo – parece ter gostado do jogo, e deixou de declinar liminarmente de matérias que, a seu próprio juízo, e com base em larga jurisprudência, não deveriam ser submetidas ao seu escrutínio. Mais, o próprio mandato legislativo passou a ser objeto de constante e frequente interferência judicial.
Agora os tempos são outros. Ninguém é de ninguém. Esvaíram-se os limites e as cautelas entre os Poderes. Este é um processo que avança avassaladoramente, ante o olhar complacente de uns e a indignação silenciosa de outros.
Como se não bastassem os três Poderes, além do Ministério Público em suas ramificações, foi atribuída autonomia administrativa e financeira à Defensoria Pública. Aberta a porteira, há uma fila de órgãos do Executivo que também querem autonomia para, ao fim e ao cabo, serem apropriados pelo corporativismo.
Do ponto de vista fiscal, continua-se tendo apenas um Tesouro, mas são cinco os geradores autônomos de despesas. Contudo, os ajustes necessários para o equilíbrio das contas públicas recaem apenas sobre o Executivo, justamente a quem cabe prover os serviços à população...
O Legislativo avança sobre o orçamento. A proposta orçamentária da União para 2025 destina R$39,6 bilhões para distribuição impositiva pelos parlamentares – aquelas emendas de pagamento obrigatório, divididas entreindividuais e de bancadas, inclusive as moderníssimas “emendas pix”. Como se não bastasse a expressão do valor absoluto, já representam nada menos que um terço do total de recursos destinados aos investimentos. Um absurdo!
Seguem-se as inovações. O Supremo Tribunal Federal inaugurou a possibilidade de abrir inquéritos que duramindefinidamente. Os primeiros já têm anos – prática que o Direito Positivo veda a qualquer delegacia de polícia. Depois de iniciados, nenhum foi encerrado até agora, e, pior, têm dado origem a filhotes, que também são prolíficos.
O Tribunal de Contas da União criou uma câmara de mediação, para construir acordos entre partes interessadas,conduzindo decisões administrativas. O assunto é, claramente, de responsabilidade do Executivo. Se remanesce conflito de interesse em contratos, salvo melhor juízo, a instância competente é o Judiciário.
Mais recentemente, um ministro do STF deu quinze dias de prazo para que várias áreas do Poder Executivo se mobilizem para apagar os incêndios que assolam o país, no Norte, Centro-Oeste e particularmente em São Paulo. Mas isto não é assunto do Executivo? E não é urgente e emergencial? Na prática, autorizou o país a arder por mais quinze dias, e isentou preventivamente de responsabilidade as autoridades que não tenham tomado providências imediatas...
O resultado é que, hoje em dia, o Executivo é o Poder que tem menos poder, espremido, de um lado pelo Legislativo e, do outro, pelo Judiciário.
Enquanto isto, a Administração Pública está de cabeça para baixo, com os “marajás” dos órgãos de controle ganhando, no mínimo, cinco vezes mais que os “barnabés” das áreas finalísticas, estes sim, responsáveis pelas entregas à população. Esta, paga a conta e fica a ver navios, com um Estado cada vez mais pesado, oneroso e ineficiente.
Finalmente, do dia para a noite, o povo acaba de ficar sem o X, uma das mais utilizadas redes sociais. Haja previsibilidade!
A esta altura, os restos mortais de Montesquieu – o consagrado criador do sistema de pesos e contrapesos entre os Poderes do Estado – devem estar rolando no túmulo, ante o que estão fazendo com a sua construção, essencial à vida democrática.
Persistindo o status quo, qualquer dia desses o povo vai colocar nas urnas o Milei capaz de dar um freio de arrumação nessa barafunda toda.