Esta série está sendo escrita pelo jornalista ZédeJesusBarrêto e publicamos os capítulos toda terça-feira
ZedeJesusBarrêto , Salvador |
27/09/2022 às 17:53
A seleção campeã de 1962
Foto: CBF
“Nunca joguei ao lado nem contra alguém melhor do que Garrincha. Jogando juntos nunca perdemos. Dentro de campo era um companheiro, fora de campo foi um grande amigo”
(Pelé, sobre Mané Garrincha)
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A trajetória do bicampeonato, no Chile, acompanhei às escondidas, ouvido atento ao som frágil do radinho de pilha (o portátil, transistor, a coqueluche da época) na transmissão dos jogos, grupo de adolescentes de batina, todos sentados no chão à sombra de uma frondosa cajazeira que ficava nas matas ao fundo do Seminário Central da Bahia, numa ribanceira do antigo Engenho Velho da Federação que dava pras baixadas por onde hoje passa a Avenida Garibaldi. Tempos ainda do bonde, trilhos rasgando o Rio Vermelho até Amaralina. O uso do radinho era proibido, levávamos escondido sob a batina e caso os superiores nos flagrassem seríamos castigados.
As imagens, em vídeo-tape (o VT), nos chegavam pela tevê uns cinco dias depois dos jogos e, às vezes, quando os padres estavam de bom humor e achavam que merecíamos, deixavam-nos ver alguns jogos, aí todos reunidos numa sala de aula, aquela tevê caixotão de válvulas sobre a mesa do professor. Imagens transmitidas pela TV Itapoan – a única, chegada em 1960 na Bahia -, em P & B, chuviscadas.
Só recentemente, recluso por conta da pandemia Covid 19, revi todos os jogos da Seleção Brasileira Bicampeã do Mundo com imagens limpas, em cores, e agora com mais discernimento para avaliar os feitos e defeitos nos gramados chilenos.
Foi a copa da contusão de Pelé, uma distensão (esgarçamento das fibras musculares) na virilha, e da consagração do extraordinário Mané Garrincha que, de coração arriado pela cantora Elza Soares, jovem e belíssima, prometeu-lhe a conquista da Taça e cumpriu. Depois, foi viver com ela uma paixão enlouquecedora que mexeu com a moral, a hipocrisia, o conservadorismo e os bons costumes da nação.
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Porque nada tenemos, lo haremos todo
O Chile (‘chile’ em idioma nativo significa ‘onde o mundo acaba’) era para nós um país distante da latino-américa, uma lombriga imensa esticada entre os Andes e o Oceano Pacífico, a ponta sul já quase na Antártida. Em maio de 1960 o país havia sofrido dois demolidores terremotos acompanhados de tsunamis que devastaram a costa pacífica, deixando um rastro de cidades e comunidades destruídas, mais de 5 mil mortos e 25% da população de quase 8 milhões de habitantes desabrigada. Um horror.
Mesmo assim, sob a bandeira do “Porque nada tenemos, lo haremos todo”, os denodados chilenos construíram o estádio de Arica, batizado com o nome de Carlos Ditborn - o heroico e persistente organizador da copa no país que morreu pouco antes da competição- e restauraram, modernizaram e ampliaram três outros – o Nacional, em Santiago, o Sausalito em Viña Del Mar e o El Teniente, em Rancágua. Um feito e tanto para as condições do país após a catástrofe.
O evento esportivo aconteceu com boa participação das seleções europeias: - Tchecoslováquia, Iugoslávia, URSS, Hungria, Alemanha, Inglaterra, Itália, Espanha, Bulgária e Suíça. Mais as latino-americanas: Brasil, Chile, Argentina, México, Uruguai e Colômbia. Foram 16 seleções, ao todo.
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Jango presidente
O Brasil, já com a capital em Brasília, estava sob o governo presidencialista de João Goulart, o trabalhista eleito vice-presidente que o povo chamava de Jango. Assumiu depois da renúncia de Jânio Quadros (eleito presidente, governou só sete meses) e uma crise política que passou por um parlamentarismo fajuto e foi desembocar, em 1964, num golpe cívico-militar que durou 20 anos. Mas isso é outra história.
À época, 62, o Brasil tinha uma população de quase 71 milhões de habitantes e a inflação passava de 51% ao ano. O salário mínimo era de 13.440 cruzeiros, tinha saído o 13º salário, como uma gratificação de Natal, o Rio de Janeiro era o Estado da Guanabara e dois produtos faziam a cabeça dos consumidores: a caneta BIC e o radinho de pilha transistorizado.
No rádio, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Anísio Silva, Luiz Vieira, Cely Campelo, Maysa ... A ‘bossa nova’ ainda não tinha sido absorvida, era coisa chique urbana. A reforma agrária era a grande bandeira de luta no campo (Chico Julião comandava as ‘ligas camponesas’ no Nordeste) e a esquerda esclarecida já gritava por reformas políticas e estruturais.
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O planeta vivia um instante delicado, de exacerbações da guerra-fria, com Kennedy (EEUU) e Kruschev (URSS) arrotando ameaças. A revolução cubana de Fidel e Guevarra (1959) ecoava na América do Sul, Guantánamo invadida pelos americanos, os soviéticos mandando armas e abastecendo a Ilha do Caribe, o Vietnã sob napalms, ogivas e satélites lá e cá e Yuri Gagárin era o primeiro humano no espaço sideral. A Igreja Católica Romana do Papa João XXIII fazia opção pelos pobres no Concílio do Vaticano e criava a Teologia da Libertação, uma ruptura com o passado. E o presidente Kennedy seria assassinado em 1963. Tempos de ciclones históricos.
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Éramos os grandes favoritos
Tínhamos Pelé, aos 22 anos, no auge, voando e encantando, já com 500 gols na carreira, Garrincha em forma aos 28 anos, uma seleção formada basicamente com jogadores dos dois melhores times do mundo naquele momento - o inigualável Santos de Pelé (Gylmar, Mauro, Zito, Coutinho, Mengálvio, Pepe) e o Botafogo de Garrincha (Didi, Nilton Santos, Amarildo, Zagallo) - e o time-base Campeão do Mundo em 58, na Suécia, só que mais envelhecido (ou mais experiente) – Nilton já com 37 anos, Didi e Djalma com 33, Mauro 32, Zagallo, Zito e Zózimo com mais de 30.
A grande novidade era o treinador Aymoré Moreira, o ‘Biscoito’, irmão de Zezé Moreira, no lugar do gordo Feola, bem adoecido. Batíamos no peito confiantes, achando que com Pelé e Garrincha em campo a Copa seria ‘uma barbada’.
A ideia dos dirigentes era manter tudo como fora e dera certo na Suécia. Com relação ao time, apenas duas mudanças, no miolo da zaga: - O baiano Zózimo no lugar de Orlando, que tinha ido jogar no Boca Junior da Argentina, e Mauro Ramos substituindo o capitão Belline, no grito. Aconteceu que, por conta de uma lesão de Belline, Mauro, que era titular e capitão do Santos, vinha jogando; daí, às vésperas da Copa, Aimoré Moreira o chamou num canto e comunicou que escalaria Belline, ao que Mauro retrucou: “Se é assim, vou pegar minhas coisas e vou pra casa”.
Mauro estava na sua terceira copa, todas como reserva e achava que era sua vez. Aimoré então voltou atrás, garantiu-lhe a posição e o posto de capitão. Belline era um zagueirão mais duro, líder; Mauro era clássico, elegante. Amigos, não houve rusgas.
No dia 20 de maio, depois de uma visita ao presidente Jango, em Brasília, a delegação brasileira embarcou em São Paulo para o Chile no mesmo avião da Panair e com o mesmo comandante do voo para a Suécia em 58, coisas do supersticioso Paulo Machado do Carvalho. Havelange também não foi. Tudo como há quatro anos, até a bola rolar...
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O roteiro do título
A estreia foi numa tarde de quarta-feira, dia 30 de maio, no Estádio Sausalito, em Viña de Mar, contra o México do lendário goleiro Carbajal. Quem imaginava uma goleada se enganou, foi difícil. Uma primeira etapa morrinhenta, os mexicanos fechadinhos, brigando, e um Brasil pouco inspirado, com Garrincha tímido, apagado.
Quem decidiu foi Pelé, no segundo tempo. Aos 11’, Ele roubou uma bola no meio campo e desbravou pela direita, atraindo toda a marcação adversária, levantou a cabeça, viu Zagallo livre penetrando pela esquerda e lançou, na medida, para o mergulho e a cabeçada do camisa 11, abrindo o placar.
Aos 28’, um golaço com a marca do Rei, arrancando da direita para o meio, bola colada nos pés, quatro mexicanos driblados em velocidade pelo caminho e o chute firme, rasteiro, da entrada da área no canto de Carbajal:- 2 x 0.
Nos vestiários, findo o jogo, Pelé já acusava um desconforto, tipo uma fisgada leve no músculo da virilha. Mas nem pensar em ficar de fora.
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O rei machucado
O segundo jogo foi contra a Tchecoslováquia do meia Masopust (um dos melhores jogadores daquela Copa), do zagueiro Popluhar e do bom goleiro Schroif, no dia 2 de junho, um sábado, no mesmo gramado da estreia. A partida seguia morna, o Brasil mais ofensivo, até que, aos 27 minutos, depois de uma daquelas suas arrancadas pelo meio, após o chute forte na trave Tcheca, Pelé caiu com a mão na virilha, o músculo abriu.
Foi atendido fora de campo por mais de três minutos e voltou sem condições, mal podia pisar; à época não havia substituições e Aymoré o deixou isolado, só fazendo número numa lateral do campo, passando Garrincha para atuar pelo meio
. O Rei estava inútil, Garrincha perdido pelo miolo, a equipe abatida, os tchecos administrando apenas o empate, que lhe garantiria a classificação para a próxima fase. Num ‘fair play’ exemplar não encostavam em Pelé, que mal tocava na bola. Um 0 x 0 e ...
A dúvida em todas as manchetes e microfones: Que seria daquela Copa sem Pelé? O Brasil teria condições de vencê-la sem o Rei, seu principal artilheiro? A lesão era grave e Pelé estava fora do mundial.
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Escapamos da ‘fúria’
Sabíamos que o jogo seguinte seria o mais difícil, contra a Espanha de Di Stéfano, Puskas, Gento, Collar... ‘La Fúria’, do treinador Helênio Herrera. Era um ótimo time, bem treinado, atletas de alto nível e experientes, malandros, provocadores. E, por cima, tinha a pinimba de Didi com Di Stéfano, que lhe teria boicotado (racismo?) na sua breve passagem pelo Real Madrid, em 59/60. Por sorte, o argentino-espanhol
Di Stéfano não jogou contra o Brasil, machucado, mas Didi estava mordido, queria mostrar seu valor, vingar a desfeita sofrida. Foi um jogo terrível, sofrido, duríssimo, em que fomos favorecidos de vera pela arbitragem do chileno Sérgio Bustamante.
No lugar de Pelé, Aymoré escalou o destemido Amarildo, 22 anos, chamado de “possesso” por conta de seu temperamento esquentado. Era canhoto, goleador, veloz, raçudo e jogava no Botafogo, ao lado de Garrincha, Zagallo, Didi, Nilton ... estava entrosado, à vontade, sabia como os companheiros se mexiam, era preciso apenas se controlar em campo. Nossa seleção não se achou na primeira etapa, com Didi prendendo demais a bola, Garrincha sumido, pouca ofensividade. Pra piorar, aos 35 minutos o avante Adelardo acertou o canto de Gylmar num chute de longe e fez 1 x 0.
Aquele resultado tiraria o Brasil da Copa, daí Aymoré sacudiu o grupo no vestiário, indo pro tudo ou nada na segunda etapa. A partida ficou aberta e perigosa.
Por volta dos 20 minutos, o veloz ponteiro Collar foi derrubado por Nilton Santos claramente dentro da grande área brasileira, pênalti que o árbitro chileno não deu, preferindo acatar a ‘malandragem’ de Nilton Santos, que deu dois passinhos pra fora da área e levantou os braços. Depois de muita reclamação dos espanhóis, claro, a falta foi cobrada por Puskas (aquele mesmo ídolo da seleção húngara de 54) e Peiró acertou as redes de Gylmar com uma plástica e bela bicicleta... Mas o gol foi anulado por Bustamante, que viu falta do atacante em Zito na disputa pela bola alçada. Ufa!
Restava-nos recuperar do susto, agradecer aos céus e ao árbitro e acordar, partir pra cima, começar a jogar. O gol de empate aconteceu aos 27 minutos, numa troca de passes de Zito com Vavá, o chute cruzado de Zagallo e Amarildo, mais rápido que o goleiro, finalizando.
Os espanhóis, nariz empinado, foram pra cima e abriram espaço para o contragolpe brasileiro. Aos 40 minutos, pela primeira vez na Copa apareceu o talento, o gênio de Garrincha, executando sua jogada preferida – pela direita, em velocidade, driblou dois marcadores, foi na linha de fundo e cruzou preciso na cabeça de Amarildo, entrando do lado oposto, como fazia no Botafogo: Brasil 2 x 1. Estávamos nas quartas de final.
E... mais importante! Elza Soares apareceu, Mané Garrincha endoideceu. Trocaram afagos e o ‘menino passarinho’ então lhe prometeu o título. Pra ele, só então a Copa tinha começado.
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Mané total
Dopado de amores, Garrincha passarinhou pra cima da Inglaterra, o próximo adversário, já pelas quartas de final, no 10 de junho, uma tarde de domingo, ainda em Viña del Mar.
Por volta dos 15 minutos de bola rolando entrou em campo um cachorrinho vira-latas preto, paralisando a partida. Mané tentou capturá-lo mas foi driblado, uma correria até que o atacante inglês Greaves ficou de quatro, fez au-au e conseguiu pegá-lo. Daí por diante só deu o ‘passarinho’ Garrincha, endiabrado.
Aos 31’, Zagallo cobrou escanteio, Mané subiu mais que a robusta zaga inglesa e acertou uma cabeçada (inusitada) no canto - 1 x 0. Os ingleses logo empataram num cochilo defensivo brasileiro. No segundo tempo, aos 8’, Garrincha antecipou-se a Didi e bateu uma falta próxima da área inimiga, a bola desviou no caminho e Vavá, oportunista, não perdoou: 2 x 1.
Aos 15’, Garrincha liquidou o baba com um golaço de fora da área, pelo meio, colocando no ângulo, encobrindo o goleiro: 3 x 1. Dai em diante, os gringos atordoados, Mané deu show com seus dribles chaplinianos. Era outro Brasil, então, com jeito de campeão.
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Chile brabo
A semifinal contra os donos da casa foi uma batalha raivosa, catimbada. Pra começar, os chilenos levaram o jogo pra Santiago, criaram um clima de guerra de nervos, de decisão, puseram mais de 72 mil pessoas no Estádio Nacional, recorde de público na Copa, e escalaram para apitar o jogo um certo Arturo Yamazaki, peruano, com jeito de armador e caseiro.
Quase complicou: anulou um gol claro de Vavá, marcou um pênalti mais que duvidoso para os chilenos, inverteu faltas e, vejam só, conseguiu expulsar de campo o brincalhão Garrincha, que apanhou o jogo inteiro, foi até cuspido em campo e muito vaiado pelas arquibancadas, em função de seus dribles ‘faz que vou e não fui’, mais que desmoralizantes.
Mané Garrincha estava em dia de graça. Aos 9 minutos, pegou um rebote de primeira, da meia lua, perna canhota (a cega) e acertou o ângulo do goleiro Escuti, que nem viu a bola, abrindo o placar. Aos 33’, Zagallo bateu escanteio da esquerda, a defesa chilena grudada no chão, Mané (1m69) subiu e testou fazendo 2 x 0. Ainda no primeiro tempo o Chile diminuiu (2 x 1 ), numa cobrança de falta bem executada por Toro.
Mas, logo no começo da segunda etapa, Vavá ampliou de cabeça, escorando escanteio cobrado por Mané, da direita. Daí, seu Yamazaki inventou um pênalti para os chilenos – bola na mão de Zózimo perto da linha de fundo -, que só ele viu, e Sanchez diminuiu.
Os chilenos, com o ouriço da torcida, se animaram, o jogo ficou pegado, encardido, Garrincha caçado e vaiado porque prendia a bola, bailava e brincava com os marcadores, o estádio parecia uma panela de pressão. Aos 32 minutos, Zito retomou uma bola na defesa, arrancou, achou Zagallo na esquerda, o cruzamento saiu na medida e novamente Vavá apareceu testando antes da chegada do goleiro, calando o estádio.
Daí em diante, o show particular de Garrincha e pancadaria dos chilenos. Abusado e de saco cheio de apanhar, Mané passou pelo seu marcador, que mal se levantara depois de levar mais um drible, e deu-lhe uma leve joelhadinha no bumbum, só de sacanagem, mas o chileno encenou e o bandeira uruguaio Esteban Marino, próximo, entregou Mané ao árbitro, que achou por bem expulsá-lo de campo. Garrincha saiu cabisbaixo, sem entender nada, e ainda levou uma pedrada que lhe causou um ferimento na cabeça.
O Brasil estava na final.
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O problema era se Mané jogaria ou não a final, seria um desfalque sem tamanho. O Comitê Disciplinar da Copa o julgaria antes. Sob pressão, Yamazaki aliviou na súmula, dizendo que não vira o lance e que foi chamado pelo bandeira, que deveria ser ouvido. Mas a CBF deu um jeito de ‘sumir’ com o uruguaio Esteban Marino, mui amigo, pagando-lhe um passeio em Paris. Garrincha foi assim absolvido.
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A glória de Mauro Ramos
A decisão seria contra a conhecida Tchecoslováquia, num domingo à tarde, 17 de junho, no Estádio Nacional, em Santiago. Garrincha amanhecera gripado, garganta inflamada, com 39 graus de febre, mas na base da aspirina foi pra campo assim mesmo. Só a presença dele faria a diferença, ocuparia dois defensores na sua marcação.
Os Tchecos eram bons de bola, mas jogavam limpo, deixavam jogar. Aos 15’, o meia Masopust abriu o placar, mas os brasileiros, experientes, não se abalaram. Dois minutos depois Amarildo empatou, ao receber de Zagallo na esquerda e próximo da linha de fundo, acertando um chute de canhota entre a trave e o goleiro Schroif, o melhor da competição (lembrou o gol de Ghiggia em cima de Barbosa em 50).
Aos 24 minutos do segundo tempo, Zito puxou um contragolpe, deu a Amarildo e correu pra área, Amarildo fez que arrancava, travou, levantou a cabeça e cruzou pelo alto da esquerda para o mesmo Zito, já na pequena área e do lado oposto, cabecear livre, quase entrando com bola e tudo rente ao poste. Pra fechar o caixão, aos 34’, Mané - que apenas fazia suas gracinhas pela direita, atraindo a marcação e abrindo espaços, febril - cobrou uma lateral para Djalma Santos que alçou na área inimiga, a bola arriando entre a marca do pênalti e a linha da pequena área; mesmo de boné, o goleirão Schroif, encandeado pelo sol, deixou a bola, aparentemente fácil, escapar das mãos e Vavá, atento e rápido tocou para as redes.
Éramos bicampeões do mundo e o Capitão Mauro Ramos, já no entardecer de Santiago do Chile, erguia a Taça Jules Rimet, repetindo o gesto, então consagrado, do amigo e Capitão Belline, quatro anos antes, na Suécia.
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Os bicampeões:
Gylmar (Castilho), Djalma Santos (Jair Marinho), Mauro (Belline), Zózimo (Jurandir), Nilton Santos (Altair), Zito (Zequinha), Didi (Mengálvio), Garrincha (Jair da Costa), Vavá (Coutinho), Amarildo (Pelé) e Zagallo (Pepe). Treinador Aymoré Moreira – que anos depois, na Bahia, treinou o Bahia e o Galícia.
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Curiosidades:
- O artilheiro da Copa do Chile foi o iugoslavo Jerkovic, com 5 gols.
- O jogo Chlle 2 x 0 Itália foi chamado de “Batalha de Santiago”, por conta dos socos, pontapés, nariz quebrado, dois jogadores italianos expulsos e uma arbitragem pusilânime e bem chilena do inglês Ken Aston.
- O atacante Coll, da Colômbia fez um inusitado gol olímpico no empate de 4 x 4 contra a URSS.
- E aconteceu o gol mais rápido de todas as copas, anotado aos 15 segundos pelo atacante tcheco Masek, na derrota de 1 x 3 para o México.
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Elza Soares - A ‘musa’ da Seleção
Mané Garrincha e Elza Soares já se conheciam, paqueravam-se desde um ano antes da Copa. Ele, astro famoso maior do Botafogo, ídolo de todas as torcidas, pura simplicidade, presença nas rodas populares cariocas, chegado a boa prosa, umas biritas, mulheres, babas, passarinhos de gaiola, microfones, no seu auge, aos 28 anos.
Ela, já uma cantora de nome, carioquíssima, nascida pobre em Bangu, em 1930, criada na favela de Água Santa, Engenho de Dentro. Conhecera Garrincha num desses programas de rádio e TV, de auditório, e Mané, mesmo casado em Pau Grande (cidade pequena próxima do Rio) com Dona Nair, sete filhas, a mais nova ainda de meses, bateu os olhos na formosura da mulata, que vivia então uma relação com o baterista Milton Banana (um dos preferido de João Gilberto), criando três filhos de outros relacionamentos. Garrincha passou a cortejá-la com regalos, visitando-a, vez em quando, nas folgas. Ela gostava dos agrados.
Em abril, quando a delegação brasileira já estava concentrada em Campos de Jordão, o jornalista Mario de Moraes, de O Cruzeiro, inventou uma noitada-show com artistas do ‘cast’ da TV Tupi, no Hotel Vila Inglesa, pra alegrar os jogadores. Com o apresentador Airton Rodrigues na produção, lá foram Peri Ribeiro, Agostinho dos Santos, Edith Silva, o Trio Sereno, Germano Mathias, o trio Orixá e... a divina Elza Soares.
Como não tinha camarins, Elza foi banhar-se e trocar de roupas no quarto de Mané Garrincha, ele todo fagueiro, solícito e vigilante, protegendo-a dos colegas machões fascinados com as curvas e desenvoltura dela. O show foi um sucesso, Elza encantadora, de mesa em mesa, Mané marcando colado. Mas quando o ônibus da Tupi se foi, noite alta, ele se despediu com beijinhos da cantora e... sumiu na madrugada com uma cabrocha do Trio Orixá, só aparecendo no hotel-concentração já perto do amanhecer. Depois, os jogadores foram pra Friburgo, na segunda etapa dos treinamentos, e Elza foi lá ver Garrincha, desejar boa sorte.
Elza foi para Chile (ainda com Milton Banana) durante a Copa por conta da astúcia do empresário uruguaio Edmundo Hlinger, que a convidou para um festival – uma série de shows – que faria na Feira de Asiva, um balneário perto de Valparaíso e bem próximo da concentração brasileira.
Foi lá que Elza conheceu Louis Armstrong, deslumbrado com a voz da brasileira. Elza queria ver os jogos do Brasil, logo lhe arrumaram ingressos e os organizadores da feira, espertos, a elegeram como “Madrinha da Seleção”, com direito a uma faixa verde-amarela e tudo, com a qual visitou a delegação concentrada. E teria comemorado numa noitada, dizem que ao lado de Garrincha, o triunfo contra a Espanha. Foi aí que Mané prometeu a ela o título: “Vou ganhar pra você”, e passarinhou pra ela o resto da copa.
O fato é que, título conquistado, Elza foi agradecer e comemorar junto, ainda nos vestiários, os jogadores todos nus, alguns sob o chuveiro, aos gritos ... e ela, de vestidinho de cetim verde-amarelo, poderosa, invadiu e foi abraçar Mané, os dois molhados, os demais procurando toalhas para encobrir as vergonhas. Ela nem aí! Ousada, segura, exuberante, sedutora, bela. Paixão pura. A Copa era dela!
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Quem conta é o escritor Ruy Castro, em seu excelente “Estrela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha”:
Em fins de junho, uma semana depois da volta do Chile, o carro de Garrincha passou sua primeira noite na garagem de Elza. Ela oferecera uma feijoada a ele e a seus amigos de Pau Grande. À noite, ainda em meio ao festival de paios, linguiças e um dilúvio de caipirinhas, Garrincha levou Elza para um canto:
“Crioula, estou te amando”.
Ela fingiu surpresa: “Mas como? Você é casado, ama a sua mulher”.
Ele: “Não, nunca amei ninguém. Tem um monte de mulheres me querendo, mas eu amo é você”.
Elza continuou vendendo caro: “Ah, só pode ser a caipirinha!”
Garrincha não se deu por achado: “Caipirinha ou não, é isso que estou te dizendo”.
Elza, então, fez uma coisa que surpreendeu até a ela: despachou os filhos para a casa de sua mãe, no Meyer, e mandou os convidados embora. Quando o último saiu, passou o cadeado na porta e os dois começaram ali mesmo, na sala, a história mais apaixonada de suas vidas.
Foi uma semana inteira sem sair pra nada, sem abrir as portas pra ninguém. Só os dois. Elza elegera o seu ‘Nenem’, assim passou a chamá-lo, o homem de sua vida.
Milton Banana sumiu, Garrincha já não seria encontrado nos botecos de Pau Grande, mudara de endereço. Já nem aparecia nos treinos do Botafogo, só chegava para jogar, muitas vezes caindo aos pedaços de bebida e esbórnia com sua ‘nêga’. E o romance ganhou as manchetes, os microfones e as futricas das comadres do país, de norte a sul, com um viés de preconceito e conservadorismo nunca visto. A carga pesada toda pra cima dela, claro, mulher e negra, cantora e destruidora de lares. Mané com sete filhas menores pra criar, caiu na buraqueira, perdido, encantado.
Virou ‘o assunto nacional’, nem a conquista da Copa valeu de perdão pra o casal.
Como se vê, não é de agora que o Brasil desconhece o Brasil.
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O menino passarinho
No dia 28 outubro 1933 nascia em Pau Grande/RJ o eterno menino batizado Manoel Francisco dos Santos, mais tarde mundialmente conhecido como Garrincha (nome de um passarinho), Mané Garrincha, um gênio da bola, o anjo das pernas tortas, a alegria do povo. Descendente direto dos índios fulniôs, de Alagoas, por parte de pai. O maior dos ídolos do Botafogo do Rio, o clube da Estrela Solitária. Na Seleção, ganhou duas copas e ao lado de Pelé nunca perdeu. Garrincha morreu em 88, vítima de problemas com alcoolismo.
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Nosso Carlitos dos gramados, um Chaplin, brincalhão. O que ele dizia sobre o amigo Pelé:
“Era um assombro, um fenômeno, goleador, finalizador, vencedor. Eu gostava mais de preparar as jogadas. Em campo, Pelé virava um chato, reclamava, gritava, pedindo a bola, enquanto eu queria brincar mais um pouco com meus ‘joões’, ora.”
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O que o lateral bi-campeão do mundo Djalma Santos disse sobre os dois:
“Pra ganhar o jogo eu escolheria o Pelé, mas com o jogo ganho eu queria Garrincha”
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