Era terça-feira de carnaval quando, no dia 20 de fevereiro de 2007, Gilson Dias Wirzma Júnior decidiu entrar no mar. A correnteza estava forte como é costume na praia de Quissamã, no Norte Fluminense do Rio. Tinha 19 anos e uma taxa de álcool ligeiramente elevada no sangue. Veio uma onda grande, que ia estourar em cima dele. Passou por baixo para furá-la, mas, do outro lado, tinha um banco de areia... Gilson ainda não sabia, mas, naquele momento, já estava tetraplégico. Oito anos depois, disputa um lugar na seleção brasileira de rúgbi em cadeira de rodas que vai participar dos Jogos Paralímpicos de 2016. Se conseguir, terá o privilégio de integrar o primeiro time do Brasil a competir nesta modalidade. A vaga do país já está garantida por ser o anfitrião da festa.
— Nosso maior objetivo é fazer o esporte ganhar visibilidade. Queremos mostrar, não só para o Brasil, mas para o mundo, que temos um rúgbi de qualidade — diz Gilson, que não aposta numa medalha para o time. — Precisamos botar o pé no chão, ou a rodinha, neste caso. Acho difícil.
O atleta prefere não pensar alto depois do quarto lugar conquistado nos Jogos Parapan-Americanos de Toronto, em agosto passado. Na estreia da modalidade no evento, o Brasil perdeu de 48 a 50 para a Colômbia. O resultado, não satisfatório segundo ele, foi fruto do excesso de confiança.
— Foi frustrante, nunca tínhamos perdido para a Colômbia. Fomos com muita possibilidade de trazer o bronze e com a certeza de que a medalha já era nossa. Este foi o nosso maior erro. Na partida decisiva, não jogamos tudo o que sabíamos. Em esporte de alto rendimento, não existe jogo ganho. Se a gente entrar em quadra, mas não fizer as coisas do jeito que treinamos, não vamos conseguir nada. Essa é a maior lição que vamos levar para 2016 — comenta o atleta.
O rúgbi adaptado aos deficientes surgiu na década de 70, em Winnipeg, no Canadá. Foi incluído nos Jogos Paralímpicos de Atlanta, em 1996, como esporte demonstração, e estreou oficialmente nos Jogos de Sydney, no ano 2000.
No rúgbi em cadeira de rodas, o grau de lesão dos atletas é medido pelo índice de classificação funcional, que varia entre 0.5 e 3.5. Os que possuem um grau maior, de 05. a 1.5, como é o caso de Gilson, jogam na defesa. Atletas como ele, usam cadeira de rodas com uma espécie de grade na frente para dificultar o avanço do adversário. Os atacantes são os menos comprometidos, com grau de lesão que vai de 2 a 3.5. Em quadra, são apenas quatro jogadores em cada time (além de oito reservas). Em cada um deles, o valor somado das lesões não pode chegar a 8. Se houver uma mulher na equipe (o esporte permite a mistura), esse valor pode chegar a 8.5. A classificação é baseada em teste de banco (realizado em toda a extremidade da musculatura superior) e teste funcional do tronco (avaliação das extremidades inferiores e do tronco em todos os planos).
As partidas são realizadas em quadras de 15 metros de largura por 28 metros de comprimento. Cada jogo tem quatro períodos de oito minutos. Se terminar empatado, há uma prorrogação de três minutos. Como no rúgbi tradicional, não existe a figura do goleiro. Para marcar pontos, o jogador tem que ultrapassar a linha do gol com a bola nas mãos e as duas rodas da cadeira. Ele pode conduzir o objeto entre as coxas, quicá-lo ou passá-lo para outra pessoa. O tempo de posse de bola é indeterminado, mas é obrigatório quicá-la a cada 10 segundos, no mínimo.
— O rúgbi é um esporte de alto impacto, agressivo. Mas foi justamente isso o que me chamou a atenção. Sinto prazer de competir, me dá uma adrenalina gigantesca. Quando estou jogando, não sinto que tenho lesões. Além do mais, saio do lugar do coitadinho. As pessoas acabam te olhando com admiração, em vez de pena — fala o jogador, que não reclama das contusões sofridas em quadra. — Já tive fratura exposta num dedo e no ombro, e fissurei uma costela. Mas que esporte não ocasiona lesão? São ossos do ofício.
A paixão pelo esporte surgiu durante os exercícios de reabilitação no Hospital Sarah Kubitschek de Brasília, quando um documentário na televisão chamou sua atenção. “Murderball - Paixão e Glória”, de Henry Alex Rubin e Dana Adam Shapiro, mostrava um jogo de rúgbi, disputado por atletas sentados em cadeiras de rodas. Gilson, que já havia jogado vôlei, basquete e handball no colégio, além de futebol no time juvenil do América, voltaria à vida esportiva.
— Quando vi o filme, pensei: ‘Nossa, esse esporte é fascinante! É o que eu quero pra mim. As cadeiras batendo, a galera caindo, a torcida vibrando... Tenho que achar e começar a praticar — relembra Gilson, aos 28 anos.
Ainda demoraria algum tempo até que ele conseguisse se dedicar integralmente ao rúgbi. Como não encontrou, no Rio, um local onde pudesse jogar, foi se aventurar na bocha, na Associação Niteroiense de Deficientes Físicos (Andef). No esporte, chegou a ganhar medalha de bronze três vezes em campeonatos regionais, entre 2009 e o início de 2012. Antes, em 2010, quando a Andef introduziu o rúgbi em cadeira de rodas em seu quado esportivo, Gilson finalmente começou a realizar seu sonho. No início, praticava os dois esportes ao mesmo tempo, até que finalmente se decidiu.
Além do prazer de praticar o esporte, através do rúgbi Gilson comprou um carro e pode alugar uma casa em Niterói, para onde se mudou esta semana com a namorada, Gabriela (até então, morava em São Gonçalo, onde nasceu). Sem autopiedade e sempre com um sorriso no rosto, diz que o rúgbi lhe trouxe muitas alegrias e relembra o dia do seu acidente em Quissamã.
— Na hora, perdi todos os movimentos do pescoço para baixo e fiquei uns dois minutos boiando com a cabeça na água, sem poder respirar. Como sou muito brincalhão, meus amigos acharam que era bobagem. Aí, veio outra onda, que me virou, e eu consegui respirar um pouco mais. Então, um colega se deu conta de que era sério e começou a me puxar dali. Eu gritava: ‘Me solta, que eu quebrei os braços!”. Não tinha noção exata do que tinha acontecido — lembra Gilson.
Ele foi levado às pressas para um hospital da cidade. Mas, como lá não havia a estrutura necessária para atendê-lo, foi transferido para Macaé, onde ficou seis dias à espera de uma cirurgia, além de outros 40 em recuperação.
— Fiquei três dias deitado numa tábua de primeiros socorros, cheio de areia. Uma ferida se abriu na cabeça, em duas escápulas e no cóccix. Esta, demorou seis meses para fechar — conta o rapaz, que, sobre a tetraplegia, afirma: — Claro que a gente fica triste, mas não dá para se abater. Sou bem-humorado e não queria perder esta característica. Sempre quis muito viver.
E vive.