Com informações do Valor
Sepnal , Salvador |
25/03/2014 às 09:06
Com base em uma série de documentos aos quais teve acesso sobre a compra da refinaria de Pasadena em 2006, incluindo o acordo de acionistas entre a Petrobras e a Astra, o relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o caso e a "carta de intenções" negociada pelo ex-diretor da área internacional, Nestor Cerveró, com os sócios belgas, o Valor preparou abaixo uma série de perguntas e respostas sobre os principais pontos de discórdia envolvendo a transação.
Quanto a Petrobras pagou pela refinaria?
Embora o desembolso total da estatal com o negócio tenha sido de US$ 1,18 bilhão, esse não foi o valor pago pelo "ativo refinaria". Pela primeira metade das ações da unidade, a Petrobras diz que pagou, em fevereiro de 2006, US$ 189 milhões. O valor era metade da avaliação feita por 100% do ativo, de US$ 378 milhões, que constava em contrato, e que se compara aos US$ 42,5 milhões pagos pela belga Astra Oil Trading (que depois mudou de nome para Transcor Astra) um ano antes. Soma-se a isso mais US$ 300 milhões, que era o capital investido pela futura sócia na trading (braço comercial da refinaria), que aparentemente eram estoques, e chega-se a um valor de referência de US$ 678 milhões para refinaria e trading, com estoques.
Segundo a versão da Petrobras, além dos US$ 189 milhões, mais US$ 170 milhões teriam sido pagos, também em fevereiro de 2006, por metade dos estoques que estavam na trading na época. (esse valor não coincide exatamente com metade dos US$ 300 milhões citados no contrato, gerando uma diferença de US$ 20 milhões a ser esclarecida).
Após a disputa com o sócio, a corte arbitral determinou, em abril de 2009, que a Petrobras teria que pagar US$ 296 milhões pela outra metade das ações da refinaria (não fica claro porque o valor subiu 56% em relação ao desembolsado pela primeira metade, e se isso tem a ver com as cláusulas do contrato) e mais US$ 170 milhões referentes à segunda metade dos estoques existentes em julho de 2008, além de outros ajustes.
Assim, pelo "ativo refinaria" teriam sido pagos US$ 485 milhões e, incluindo os estoques de US$ 340 milhões, chega-se a um valor de US$ 825 milhões para o negócio. O restante, de US$ 355 milhões, foi pago em multas, juros e reembolsos com honorários motivados pela disputa arbitral, que não estão bem detalhados.
À Securities and Exchange Commission (SEC), regulador do mercado nos EUA, a Petrobras disse que pagou US$ 416 milhões pela primeira parcela da refinaria, valor distinto do informado no Brasil.
Por que a refinaria é avaliada hoje em menos de US$ 200 milhões?
Pouco antes da crise de 2008, o mercado de refino de petróleo viveu uma fase de ouro, com o petróleo batendo recorde e as margens das refinarias nas alturas, o que esticou demais os preços dos ativos. Foi exatamente com essa perspectiva que a compra foi fechada.
Após a queda do Lehman Brothers, tudo mudou. Reportagens da imprensa internacional citam casos em que houve queda de 80% no valor das refinarias americanas depois da crise. Como referência, a Valero Energy, maior empresa independente do setor de refino dos EUA, viu o valor de sua ação sair de US$ 63 em abril de 2006, perto do fechamento do negócio em Pasadena, para menos de US$ 15 em 2010 (queda de 76%). Atualmente, a ação está perto de US$ 50.
O que explica o salto do valor da refinaria de US$ 42,5 milhões em 2005 para US$ 378 milhões em 2006, sem os estoques?
Essa pergunta continua sem resposta. Mas o preço que mais parece fora de lugar é o primeiro, conseguido na negociação da belga Astra com a antiga dona da refinaria, a Crown Refinery, que tentava se desfazer do ativo desde 2001 e fechou negócio em 2005. A Petrobras diz, em sua defesa, que, logo depois da compra, a Astra investiu mais US$ 84 milhões no negócio, o que elevaria o total gasto pela belga para US$ 126 milhões. Ainda assim, o valor está bem abaixo da avaliação inicial de US$ 378 milhões da refinaria (sem estoques) feita em 2006.
Qual era a média de preço de uma refinaria quando a Petrobras fez a aquisição?
Ao se considerar os US$ 378 milhões de avaliação para 100% da refinaria de Pasadena previstos na negociação de fevereiro de 2006, a compra da Petrobras teria sido fechada com um múltiplo de US$ 3,78 mil por barril. Contando o desembolso de US$ 360 milhões (incluindo os estoques), o múltiplo sobe a US$ 7,2 mil.
Em março de 2006, um mês depois de vender 50% de Pasadena para a Petrobras, a própria Transcor Astra comprou outra refinaria nos EUA, na região de Seattle, pagando US$ 200 milhões, para uma capacidade de refino de 38 mil barris por dia, com múltiplo de US$ 5,2 mil por barril. Com essa referência, chegar-se-ia a um valor de US$ 526 milhões para 100% da refinaria texana comprada pela estatal brasileira na mesma época. Em maio de 2005, a americana Valero vendeu uma refinaria antiga em Denver (que precisaria de investimentos para reduzir o nível de enxofre dos derivados) por US$ 30 milhões, com capacidade de refino de 30 mil barris, com múltiplo de US$ 1 mil. Em agosto de 2006, o fundo canadense Harvest Energy comprou uma refinaria de 115 mil barris diários por US$ 1,6 bilhão, com múltiplo de US$ 13,9 mil por barril. Na operação da Astra com a Crown, o múltiplo ficou em apenas US$ 425 por barril, o mais barato.
O que mais parece estranho em relação aos preços?
A informação sobre o preço de compra da refinaria de Pasadena pela Astra, de US$ 42,5 milhões, aparece em um relatório anual da CNP (Compagnie Nationale à Portefeuille), empresa belga que controla a Transcor Energy, referente ao ano de 2005. A CNP, cujo site está fora do ar, pertence ao bilionário belga Albert Frère.
No ano seguinte, a CNP disse em seu relatório anual que conseguiu vender 50% da refinaria de Pasadena para a Petrobras, por US$ 330 milhões, o que lhe daria um lucro de US$ 150 milhões a US$ 180 milhões após impostos. Segundo a empresa, esse seria um ganho fora de "qualquer expectativa razoável", trecho esse que foi destacado em relatório do TCU que investigou a aquisição. Passado mais um ano, contudo, a mesma CNP diz no relatório anual de 2006 que a venda dos 50% da refinaria para a Petrobras lhe deu um lucro de 75 milhões de euros (US$ 93 milhões da época). Por que o lucro ficou em metade do previsto?
A CNP menciona ainda, em seu relatório, que tinha direito a uma "alocação especial", pelo seu relacionamento no mercado de trading, que lhe garantiria um retorno de 25 milhões de euros em 2007 e mais 17 milhões de euros em 2008, além da sua fatia de lucro na joint venture. A Petrobras não cita isso em seus comunicados, mas talvez isso explique o valor da segunda metade do negócio.
O que é a cláusula Marlim?
Apesar de a presidente Dilma Rousseff ter dito que rejeitaria o negócio se conhecesse essa cláusula, ela, aparentemente, não explica o mau negócio da Petrobras.
Essa cláusula garantiria retorno de 6,9% ao ano para a sócia belga, caso a Petrobras tivesse levado adiante seu plano de transformar a refinaria de Pasadena, para que ela processasse petróleo pesado, extraído do campo de Marlim, e não mais óleo leve, conforme seu projeto original. Esse tipo de transformação é chamado de "revamp", uma modernização que inclui equipamentos mais caros, capazes de transformar óleo pesado (e portanto mais "pobre") em diversos combustíveis, aumentando a margem. O retorno de 6,9% seria garantido com o ajuste do preço de venda do petróleo bruto da Petrobras para a refinaria. Ou seja, o petróleo seria vendido a preço de mercado. Mas caso fosse necessário, a Petrobras teria que reduzir o preço de venda para assegurar esse retorno para sua sócia na refinaria.
Em tese, como a mudança de configuração da unidade era do interesse da Petrobras, mas não necessariamente da Transcor Astra, que é focada no negócio de trading, a estatal brasileira teria oferecido essa garantia para "convencer" a sócia belga de que seria uma boa estratégia.
Contudo, como a mudança nunca foi feita, já que a Petrobras mudou de planos após a descoberta de viabilidade econômica do pré-sal, a cláusula nunca deveria ter sido aplicada. Não fica claro, entretanto, se ela de alguma forma influenciou a determinação do preço pela Petrobras pela segunda metade da refinaria. A estatal brasileira disse ao TCU que não.
Por que existia uma cláusula de saída ("put option") apenas para a sócia belga?
Isso ainda não foi totalmente esclarecido. A Petrobras e a Transcor Astra formaram uma joint venture com 50% das ações para cada lado. A governança da empresa previa que um comitê paritário decidiria os planos de negócio da refinaria - seja para tocar o "revamp", ou para outros projetos de expansão. Para que a Petrobras tivesse o direito ao voto de desempate (o que na prática lhe dava poder de controle), a Astra ficou com essa opção de sair do negócio caso não tivesse interesse de acompanhar os novos investimentos. E o que se viu é que as condições estabelecidas favoreceram a Astra a sair do negócio sem ter feito nenhum esforço ou investimento, tendo um lucro expressivo. O TCU considera questionável que a opção de saída tenha sido concedida só para a Astra.
O que é a carta de intenções assinada por Nestor Cerveró?
É um documento enviado pelo então diretor da área internacional da Petrobras (demitido na sexta do cargo de diretor financeiro da BR Distribuidora) para o presidente da Transcor Astra, Gilles Samyn, que tratava dos valores que a Petrobras pagaria pela segunda metade da refinaria. O documento é mencionado pelo presidente da Astra em carta para Cerveró no dia 5 de dezembro de 2007. Outras cartas são mencionadas por Samyn, mas não foram localizadas. Conforme o documento, Cerveró teria acertado que a Petrobras pagaria US$ 700 milhões pelos 50% restantes da refinaria, valor bem acima do negociado no primeiro contrato, e mais US$ 85 milhões referentes à tal "alocação especial".
Essa parte da negociação só foi conhecida pelos demais diretores da Petrobras e pelo conselho de administração, que a rejeitou, quando os sócios divergiram e a Astra acionou a opção de venda. A carta não foi reconhecida pela corte arbitral, mas foi usada pela Astra em processo na Justiça, o que contribuiu para elevar os "extras" que a Petrobras teve que pagar em acordo para encerrar o caso, no total de US$ 355 milhões.
Por que a sociedade deu errado?
O perfil e o interesse das duas empresas eram distintos. A Petrobras é uma empresa integrada do setor de óleo e gás, e queria aumentar a capacidade de refino para o petróleo pesado que tira da bacia de Campos no Brasil. A empresa belga visava essencialmente lucrar com a atividade de trading de derivados. O desentendimento que levou ao acionamento da cláusula de opção de venda não foi decorrente do projeto de revamp, nem da expansão da refinaria, mas de gastos com segurança, meio ambiente e saúde, que a sócia belga se recusava a bancar na mesma medida que a Petrobras desejava.
Porque a Petrobras, uma gigante integrada de petróleo, se associou com a desconhecida Astra?
Essa questão continua sem esclarecimento, já que há centenas de refinarias nos EUA. O que se sabe até o momento é que um ex-funcionário da Petrobras, Alberto Feilhaber, negociou com a estatal em nome da Astra.
A transação era relevante e merecia atenção especial?
Embora o primeiro "cheque" de US$ 359 milhões, aprovado na reunião do conselho presidida por Dilma Rousseff, seja bastante dinheiro, representou apenas 2% do investimento de US$ 17,4 bilhões da Petrobras em 2006. Por outro lado, compras de refinarias não eram operações comuns.