Economia

COOPERATIVISMO TEM SE REVELADO TÃO DEMOCRÁTICO COMO EFICAZ

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| 15/10/2009 às 20:00
Veja recomendações do secretário de Economia Solidária, Paul Singer
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O secretário de Economia Solidária, Paul Singer, diz que, em momentos de
dificuldade, as pessoas buscam alternativas ao modo de produção
excludente.

O economista e professor da USP, Paulo Singer, é modesto. Ele diz que
não pode afirmar com certeza se a criação da Secretaria Nacional de
Economia Solidária (Senaes), dentro do Ministério do Trabalho e
Emprego, logo no início do governo Lula, em 2003, ajudou a impulsionar
essa modalidade de organização econômica e social. "Acredito que sim",
diz.

Baseada na autogestão e no compartilhamento coletivo de decisões e de
resultados de um empreendimento, a economia solidária, muito conhecida
pelos modelos de cooperativismo que já existiam no país há algumas
décadas, é uma opção que tem se revelado tão democrática quanto eficaz
como solução de geração de trabalho e renda sem patrão.

Isso vale para os pequenos empreendimentos que unem grupos de
comunidades tradicionais, como pescadores, quilombolas, indígenas,
quebradeiras de coco, até grandes empreendimentos agrícolas e
industriais, nos quais os trabalhadores assumiram o comando de
negócios que os proprietários não deram conta.

Cita como exemplos dessa experiência a Uniforja, do ramo metalúrgico,
em Diadema (SP), e a Usina Catende (PE, a 150 quilômetros de Recife),
do setor sucroalcooleiro. A usina foi instalada em 1890 e um século
depois, após falir, foi assumida pelos trabalhadores. Hoje, 4 mil
famílias respondem pela maior experiência de autogestão da América
Latina. O espaço de 26 mil hectares passou recentemente por processo
de reforma agrária e as gerações mais jovens dessas famílias se
organizam para dar continuidade a esse sonho, tendo a economia
solidária e sustentável como horizonte.

A Senaes já mapeou, até 2007, a existência de 22 mil empreendimentos
econômicos coletivos e solidários, que geram trabalho e renda para 1,7
milhão de pessoas. Isso porque o mapeamento só atingiu 52% dos
municípios do país.

Nesta entrevista, Paul Singer faz um balanço do papel da Senaes, da
transformação desse "modesto" e revolucionário movimento em política
pública de Estado e da importância de sua continuidade como forma de
"candidatar" esse modelo econômico e social a um modelo do futuro.

Revista do Brasil - Como evoluiu a economia solidária de 2003 para cá,
quando ela se tornou uma política pública nacional?

Vou ser muito franco: evoluiu muito nesses seis anos. Eu diria,
explodiu pelo país, englobando setores sociais, e passando a
incorporar grupos que já estavam na economia solidária, principalmente
indígenas e quilombolas, e hoje com muitas chamadas comunidades
tradicionais, como pescadores, caiçaras e ribeirinhos, as quebradeiras
de coco. Sabe quantas quebradeiras de coco temos no Brasil?
Quatrocentas mil! São mulheres que vivem da extração do coco-babaçu,
em seis estados do Norte e do Nordeste, e agora organizadas em
cooperativas, em uma luta ecológica memorável ao se opor à destruição
dos babaçuais. Quando o preço da soja sobe interessa aos fazendeiros
cortar os babaçus para plantar mais soja, que é uma monocultura, e se
os babaçuais forem cortados elas não terão mais o que fazer. Elas são
especializadas. É um exemplo de população tradicional que veio para a
economia solidária, todos eles vieram.

RdB - Em que medida a aproximação do Estado muda a vida delas?

Nos países andinos, que agora têm governo de esquerda e onde os
indígenas são dominantes, como no Equador e na Bolívia, eles se
reconhecem na economia solidária. As novas constituições - e você deve
ter acompanhado o trabalho que deu para aprová-las em referendos -,
definem a economia tanto do Equador como da Bolívia como economia
social e solidária. No Brasil, acredito que a criação da Senaes deve
ter ajudado, porque conseguimos, por meio das delegacias regionais do
trabalho (hoje Superintendências Regionais do Trabalho, SRT) estender
a economia solidária para o Norte e o Centro-Oeste. Ela está mais
forte no Acre, Amazonas, Rondônia, Roraima, Amapá, Pará, também no
Tocantins, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A economia solidária se
tornou efetivamente um movimento nacional. O Fórum Nacional de
Economia Solidária representa uma diversidade cultural econômica,
religiosa e linguística muito ampla.

RdB - Diversidade econômica também?

Nós temos 3 mil quilombos no Brasil hoje, ninguém sabia disso antes, e
muitos estão vindo para a economia solidária. É uma ação de
etnodesenvolvimento. Temos uma parceria com a Secretária Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Enfim poderia
ficar falando por horas, mas esse é só um aspecto, um dos que me toca
mais.

RdB - E os grandes empreendimentos econômicos solidários no setor
agrícola e no setor industrial, como estão?

Nas indústrias, são empreendimentos, sobretudo, recuperados (de massas
falidas). São empresas capitalistas que quebram e os trabalhadores
exerceram o direito de solicitar que a empresa permaneça operando sob
forma de arrendatários da massa falida. Como aconteceu com a Uniforja
(metalúrgica em Diadema) ou a Catende (setor sucroalcooleiro,
Pernambuco). Recentemente falou-se muito da Varig. Tive uma reunião
com as presidentes dos sindicatos dos aeronautas e dos aeroviários
discutindo se a Varig podia se transformar numa (empresa de)
autogestão. Mas não deu certo. A editora Bloch, da revista e TV
Manchete, também não deu certo. Nem sempre dá.

RdB - Aí não se trata de escolha político-econômica, mas de falta de
opção, não é?

Os trabalhadores estão diante de uma situação de perda dos empregos.
Todas as empresas de que falamos eram antigas e seus trabalhadores,
mais velhos, teriam muito dificuldade de recomeçar em outro lugar.
Para eles, manter as empresas é questão de vida ou morte; ou isso, vão
ficar desempregados crônicos. Mas quando eles assumem a empresa não
serão mais empregados convencionais, com aqueles direitos trabalhistas
- não tem mais patrão. E isso é um obstáculo. Muitas vezes há uma
divisão dos trabalhadores, alguns que acham que não: "a gente quer
emprego, mas com carteira assinada, nada de ficar responsável etc.".
Muitas vezes os que assumem são até minoria, mas eles podem assumir,
depende do juiz da falência e dos outros credores. Para os credores a
fábrica funcionando vale muito mais do que ela fechada, porque tudo
que se pode arrancar é levado embora, fica só a casca, que vale muito
menos. Em geral os outros credores, os bancos etc. são favoráveis a
isso. No caso da Uniforja, 40% dos trabalhadores assumiram a empresa.

RdB - Os bancos ajudam no processo de recuperação?

Não há nenhuma notícia, acho que não. O BNDES ajudou, mas anos depois,
no início não. Mas eles (trabalhadores) conseguem recuperar a empresa.
Quando a empresa funciona, voltam a ganhar mais ou menos o que
recebiam antes, mas já não é mais salário, agora é uma participação na
receita. Para que 13º salário, fundo de garantia, essas coisas todas
passem a fazer parte da vida desses trabalhadores novamente depende de
aprovarmos uma lei agora.

RdB - E a previdência?

Sim, a previdência eles recolhem. O interessante é que quando a
empresa se recupera mesmo os antigos trabalhadores que não conseguiram
emprego vão pedir emprego lá e depois se associam - entram numa outra
etapa, depois que o pior já aconteceu. Nós temos centenas de empresas
no Brasil recuperadas, principalmente industriais, mas também
agrícolas; tem uma mina de carvão que já está com 20 anos.

RdB - A Catende está por aí e é a maior. Como participam hoje os
jovens que eram criancinhas quando seus pais assumiram a usina falida?

Catende está com 15 anos e é a maior autogestão da América Latina, são
4.300 famílias, 13 mil e tantas pessoas, é uma grande comunidade.
Estive várias vezes em Catende nos últimos meses e levantei essa
questão: a nova geração depois de 15 anos. Fiz uma reunião com 20
jovens e foi muito interessante. Tem uma associação de jovens com
"apenas" 4 mil sócios que promove várias atividades. Perguntei a cada
um deles o que vai fazer, o que está estudando, qual é a sua
perspectiva e mais da metade fala em ambientalismo, em ecologia, o que
é bem interessante, sobretudo para quem pretende viver em uma
agroindústria, numa propriedade de 25 mil hectares. Já incorporaram a
sustentabilidade, já foi feita a reforma agrária lá, hoje as terras
são deles. O que está em disputa é a fábrica. Mas, enfim, estou dando
alguns exemplos, eu podia ficar o final de semana falando para você,
porque está acontecendo muita coisa na economia solidária e eu acho
mais importante explicar com detalhes.

RdB - De todo modo, ainda não se sabe plenamente onde estão, o que
fazem, como vivem e do que precisam esses grupos que se organizam para
tocar um negócio coletivo?

Na Senaes, estamos fazendo um mapeamento da economia solidária, e isso
não havia. Nós estamos investindo muito mais e indo pela terceira vez
a campo, agora de outubro até fevereiro. No último levantamento, em
2007, recenseamos ou cadastramos quase 22 mil empreendimentos, nos
quais trabalham 1,7 milhão pessoas. Então a economia solidária não é
mais uma coisa microscópica, já é uma realidade em todos os estados
brasileiros. Esse levantamento foi feito só em 52% dos municípios.
Nessa nova ida a campo, nós pretendemos atingir o conjunto do
território nacional. Isto vai nos dar provavelmente uma cifra ainda
maior. O mapeamento é muito importante politicamente, para dispor de
informações para o público e para o Estado, para que todos saibam do
que se trata, e com isso almejar mais recursos para apoiar e
desenvolver a economia solidária no país. Mas também tem a importância
prática, de gerar um banco de dados, em que cada um desses milhares de
empreendimentos tenham sua localização geográfica; e dispor dessa
informação online, e também sobre o que eles produzem, o que eles
consomem, permite que empreendimentos que vendem coisas que não estão
prontas ainda, que é matéria-prima, possam encontrar cooperativas que
precisam dessa matéria-prima, e pela internet.

RdB - Formar uma rede?

É essa ideia, é política da Senaes fomentar cadeias produtivas de
redes. Há uma diferença, cadeia é quando você tem um produto final e
você tem, na mesma organização, numa cooperativa de segundo grau,
todos os elos da cadeia, a Justa Trama é um famoso exemplo disso. É
uma cooperativa de segundo grau, em que se usa algodão orgânico
produzido no Ceará, depois fiado e tecido em empresas recuperadas em
São Paulo e finalmente transformado em objetos que se vendem em
cooperativas de costureiras do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. E
tem, além disso, uma cooperativa de mulheres que faz biojóias em
Rondônia, com sementes da Amazônia, muito bonitas, que viram adereços
em bolsas ou roupas da Justa Trama. São coisas muito bonitas e que são
vendidas geralmente quando há eventos de economia solidária.

RdB - No mercado externo também há espaço para esse tipo de empreendimento?

Sim, o comércio justo é uma modalidade em que os trabalhadores ganham
mais. O comércio justo é mais justo para os produtores. Mas voltando
ao mapeamento, o último dado, de 2007, surpreendentemente é que 40%
dos nossos empreendimentos estão ou em redes ou em cadeias, ou seja,
estão no que a gente chama de organizações complexas, isso é muito
mais do que a gente imaginava.

RdB - Seria um passo para resolver um gargalo antigo que é o escoamento?

Escoamento e o acesso ao capital. O lema da economia solidária é de
que a união faz a força, elementar assim. Ajuda mútua é vital, não tem
forma de sobrevivência sem solidariedade entre as pessoas pobres. A
partir daí é que se constrói a economia solidária e é nossa política
fomentar o máximo possível a união entre os empreendimentos que são
frágeis.

RdB - E são atividades formais?

Não, infelizmente, porque a formalização desses empreendimentos seria
em cooperativas. A cooperativa responde exatamente aos princípios da
economia solidária, foi feita para isso. O diabo é que é dificílimo
você formalizar uma cooperativa no Brasil. Então, 90% dos
empreendimentos que vemos ou são informais ou são associações que, em
tese não podem ter atividade econômica, mas pelo menos ficam
formalizadas. E 10% são cooperativas, mas há uma enorme quantidade de
grupos informais que gostariam de ser formalizados se não fosse tão
complicado para gestar uma cooperativa. (Pela lei do cooperativismo)
precisa ter pelo menos 20 pessoas como sócios, tem que fazer o
registro na junta comercial, que são contra a economia solidária,
avessas, dificultam o máximo que podem, além de estarem sediadas só na
capital de cada estado - na Amazônia, por exemplo, significa dias e
dias de barco. São processos enormes, com um monte de documentação que
as pessoas suam para conseguir reunir. Quando conseguem, apresentam a
um funcionário que olha e diz: "Aqui falta um carimbo". É uma via
crucis, leva seis meses ou mais para se formalizar, e isso custa
dinheiro também. São necessários ajustes na legislação para que
possamos simplificar os procedimentos, a exemplo do que está
acontecendo com esse programa que estimula a formalização de
empreendedores individuais.

RdB - Por outro lado tem muitas falsas cooperativas formalizadas que
se enquadram em uma modalidade jurídica para garantir uma situação
fiscal e trabalhista mais vantajosa, mas tem "empregados" e "donos"
com papéis e retornos distintos.

Existe essa ironia. Em meio a tanta dificuldade para se formalizar uma
cooperativa autêntica existirem essas que são completamente falsas.
Agora, eu acho que elas estão perdendo a importância, porque o
desemprego está bem menor do que quando elas começaram a proliferar.
Mesmo nessa crise o desemprego não aumentou, continua perto da metade
do era quando chegou ao auge em 2003. Assim não tem tanto trabalhador
disposto a entrar nessas situações.

RdB - A menos que seja uma opção política do trabalhador, fazer parte
de uma organização que pratica a autogestão.

Veja o caso dos médicos recém-formados e que vivem de dar plantão em
hospitais. Há hospitais que não os aceitam a não ser que sejam membros
de uma cooperativa, e uma cooperativa dos próprios hospitais, ou seja,
falsa na prática. Então o médico vai, se inscreve na cooperativa e é
chamado para dar plantões, mas não tem nenhum direito - nem a férias,
nem 13º salário, nem FGTS. Para o hospital é bom, mas para o médico é
terrível. É uma exploração horrorosa. Nós estamos com um projeto de
lei, que conseguimos que o presidente da República mandasse ao
Congresso, exigindo que as cooperativas de trabalho garantissem aos
seus próprios sócios o mínimo de direitos trabalhistas. É uma
legislação que copiamos deliberadamente da França, da Espanha, da
Itália e de outros países europeus onde foi adotada exatamente por
isso: porque lá também, quando desemprego foi lá pra cima, sugiram
essas falsas cooperativas para tornar o emprego barato. Nosso projeto
já passou pela Câmara, foi aprovado com um longo trâmite, e agora está
no Senado na bica de ser votado.

RdB - O Senado vota alguma coisa neste ano?

É uma boa pergunta. Mas está para ser votado. Não conseguimos aprovar
ainda esse projeto porque as cooperativas e sindicatos de médicos
querem ser excluídas da abrangência dessa lei com vários argumentos a
meu ver não-aceitáveis. Pelo que sei, muitas delas são falsas
cooperativas que nós temos de combater para defender os direitos dos
médicos, enfermeiros, anestesistas e tudo mais. Nós queremos que os
assalariados sejam nossos aliados defendendo os direitos deles também.
De alguma maneira estamos lutando contra as falsas cooperativas, com o
apoio da OCB, Organização das Cooperativas do Brasil, que representa o
cooperativismo capitalista, a primeira vista uma surpresa.

Fonte: Revista do Brasil