Produção da Comunicativa para o BJÀ
Comunicativa , Salvador |
12/03/2023 às 18:58
Daniela Portugal
Foto: João Lins
Em entrevista, a advogada Daniela Portugal destaca questões ligadas à luta por igualdade no Dia das Mulheres. Portugal possui mestrado e doutorado em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), onde também se graduou em Direito. É professora de Direito Penal e Criminologia na Ufba, na Faculdade Baiana de Direito e atua como advogada criminalista. Feminista abolicionista, atualmente ocupa o cargo de presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB/BA._
1. Qual a origem do dia internacional das mulheres?
Existem várias explicações diferentes sobre a origem do Dia Internacional das Mulheres. Enquanto data internacional, só foi oficializada essa data comemorativa pela ONU no ano de 1975. Mas isso nos remete a uma história de luta muito mais antiga e de diferentes origens, já que estamos falando da luta por direitos acontecendo concomitantemente em diferentes lugares do mundo - e aqui eu vou destacar dois episódios.
Nós temos uma história que é mais conhecida da luta por mulheres nos Estados Unidos, principalmente da Marcha das Mulheres na cidade de Nova Iorque, exigindo melhores condições de trabalho. Nesse contexto, o próprio Partido Socialista da América declara o Dia Nacional das Mulheres. Mas temos também uma importante história de luta de mulheres russas exigindo pão e paz, num protesto que acaba forçando o czar a abdicar e o governo provisório concede a essas mulheres o direito ao voto. Essa greve das mulheres acontece em 23 de fevereiro, que no calendário gregoriano corresponde à data 8 de março.
Portanto, o Dia Internacional das Mulheres é oficializado como uma forma de contemplar essas diferentes lutas que possuem entre si um ponto de convergência, que é a luta por igualdade, pelo reconhecimento e respeito do direito das mulheres em busca dessa igualdade entre gêneros.
2. Algumas pessoas questionam a necessidade de um dia específico para a celebração da luta de mulheres por igualdade. Você vê necessidade na existência de um marco comemorativo?
A gente sabe que todos os dias são dias de luta. Todas as mulheres sabem muito bem disso. A disputa por igualdade, pelo direito de fala, pelo reconhecimento do nosso trabalho, por condições igualitárias de inserção nos nossos espaços familiares, de trabalho, de lazer e tantos outros, são pautas diárias nossas. Ainda assim, entendo que é importante haver um marco comemorativo, que nesse caso é o dia 8 de março. Esses marcos funcionam como momentos de mobilização política em torno dessas pautas, atraindo maior visibilidade para esses pleitos e levando essas reflexões a pessoas que talvez não estejam tão imersas nessas discussões, sejam homens ou mulheres.
Ao contrário do que muitas pessoas falam - “Para que um dia da mulher? Todos os dias são dias das mulheres” -, entendo que é sim necessária a existência de um marco comemorativo por conta dessa mobilização e dos reflexos dessas mobilizações, que atraem a atenção do público em geral. A partir daí, a gente tem a possibilidade de agregar mais fôlego para essa luta.
3. De que modo as ações afirmativas de gênero se relacionam com o princípio da igualdade?
Quando nós falamos em igualdade, precisamos pensar esse princípio sob dois aspectos. O primeiro é o sentido formal, que implica não haver nenhum tipo de distinção em lei. Então todos são iguais perante a lei, que não discrimina homens ou mulheres em virtude do gênero. O segundo aspecto é a igualdade em sentido material/substancial, onde nós precisamos considerar as diferenças e as disparidades entre os gêneros para, a partir delas, conferir a essas pessoas igualdade de oportunidades. Se eu identifico, por exemplo, que historicamente as mulheres estão segregadas de um determinado espaço, garantir igualdade significa fornecer a elas uma política afirmativa que garanta o acesso para promover concretamente essa igualdade de oportunidades. Ou seja, eu preciso compensar barreiras históricas e políticas no sentido de efetivar e garantir essa igualdade.
Então, quando nós falamos de ações afirmativas de gênero, isso passa por um olhar de que as mulheres historicamente foram segregadas dos mais variados espaços. Eu estou me referindo ao espaço público de uma maneira geral, como universidades, política e ciência. Uma vez percebendo que as mulheres sempre foram segregadas desses espaços, eu passo a pautar ações que garantam efetivamente o acesso e a permanência dessas mulheres. E, com a permanência, a ascensão das mulheres dentro desses espaços.
4. Quando falamos em “luta das mulheres”, quais são as principais lutas e pautas atualmente consideradas?
Não podemos falar em luta das mulheres sob um olhar unifocal. Pensamos na luta das mulheres considerando as especificidades interseccionais de cada grupo social que vai fazer da luta dessas mulheres lutas distintas, que se cruzam e possuem aspectos em comum, mas que possuem também pautas específicas. Nós temos que destacar e reconhecer, por exemplo, que a luta de mulheres negras passa por demandas e questões distintas da luta de mulheres não-negras, que por sua vez também vai ter suas especificidades se comparada a luta de mulheres indígenas ou de mulheres quilombolas. Então a gente precisa compreender a luta das mulheres não a partir da imaginação de uma pessoa universal, mas sim sobre um olhar interseccional que considere as especificidades de cada pauta e que entenda que existe entre elas, além dessas especificidades que as diferenciam, também um ponto de convergência.
Quais os desafios para enfrentarmos a violência de gênero?
Quando falamos em violência de gênero são várias as espécies de violência: violência política, violência sexual, violência à vida dessas mulheres, violência nos seus ambientes de trabalho, violência na ocupação dos espaços públicos, violência familiar... O conceito de violência é extremamente largo e penso que os desafios passam por compreender a temática de uma forma interseccional.
Por exemplo, as mulheres negras são vítimas muito mais frequentes das mais variadas formas de violência do que as mulheres não-negras. A partir daí pautamos políticas concretas de enfrentamento, como políticas de acolhimento e, eventualmente, políticas de repressão, medidas punitivas, medidas jurídicas de prevenção e combate. Mas o mais importante dentro desse olhar é que essas medidas sejam pautadas de forma interseccional, levando em consideração quais outros fatores para além do gênero que tornarão determinadas mulheres mais suscetíveis, mais vulneráveis a determinadas práticas.
Uma vez pautadas essas políticas de enfrentamento, o grande desafio é fazer com que elas de fato funcionem. Temos, por exemplo, a lei Maria da Penha, que tem um texto legal extremamente avançado e elogiado, mas nem sempre colocado em prática pelos nossos poderes públicos. Pouquíssimas localidades do país possuem delegacias especializadas! Esse é um ponto de pauta importante, todas as localidades devem ter uma DEAM à disposição de mulheres para que possam reportar as mais variadas formas de violência.