Direito

DESAFIOS DA IGUALDADE DE GÊNERO NO MEIO JURÍDICO

Confira a entrevista com a advogada e professora Daniela Portugal
Matheus Buranelli , Salvador | 26/08/2022 às 14:56
Daniela Portugal
Foto: João Lins

No Dia Internacional da Igualdade Feminina, discutimos os empasses da equidade de gênero no meio jurídico em uma entrevista com a advogada e professora Daniela Portugal. Daniela é presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB-BA; doutora e mestre em Direito Público pela Ufba e professora de Direito Penal e Criminologia na Ufba e na Faculdade Baiana de Direito.

De acordo com dados fornecidos pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em 2021, as advogadas são maioria no país. Você observa essa presença majoritariamente feminina nos ambientes jurídicos? Como você percebe as questões de gênero nesses espaços?

Infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade estruturada no patriarcado. Isso significa que toda a nossa cultura, todos os nossos espaços sociais, irão estabelecer formas, mais ou menos evidentes (mas sempre presentes) de favorecer os homens. Podemos exemplificar isso desde situações aparentemente sutis, como o fato de serem mais ouvidos ao pedirem a palavra, ou de nos interromperem a todo instante no nosso exercício de fala, a dados mais objetivos, como diferenças salariais em razão do gênero. Veja que essa distribuição desigual de poder, que coloca todos os homens em um lugar de privilégio, de vantagem – em especial o homem branco, cisgênero, heterossexual – independe da vontade ou de uma ação direta deles, trata-se de uma estrutura social, está posta, assim como o ar em que respiramos. A desconstrução desse paradigma, diferentemente, depende do engajamento não apenas de mulheres, mas também de homens conscientes dos vários prejuízos sociais da desigualdade entre os gêneros. Novas políticas dependem de vontade coletiva de mudança e, sobretudo, de ações afirmativas.

Nos ambientes jurídicos, assim como em outros espaços sociais, a presença de mulheres ainda é relegada à margem (metafórica e literalmente). São poucos os espaços protagonizados e liderados por mulheres. A força de trabalho feminina, seja nas atividades domésticas ou fora de casa, ainda não é socialmente valorizada, ou economicamente monetizada da forma devida. A economia capitalista neoliberal está assentada na exploração, opressão e distribuição desigual de riquezas. Consequentemente, as construções patriarcais de subalternização da mulher e desvalorização de sua força produtiva servem perfeitamente a esse modelo, pois justificam e naturalizam a ausência de poder político e econômico das mulheres.

O fato de termos rompido as barreiras de segregação horizontal que impediam mulheres de acessarem universidades e outros espaços públicos, coloca-nos alguns passos à frente nesse longo caminho de mudanças, mas ainda estamos muito distantes de extinguir os obstáculos verticais que ainda hoje impedem que vejamos maioria feminina em cortes superiores ou no topo de outras estruturas. Portanto, não há como dissociar a luta pela igualdade de gênero de uma pauta conjunta, que alinhe as críticas e desconstruções necessárias ao patriarcado, ao racismo e ao neoliberalismo.  

Apesar da maioria feminina, não há uma distribuição igualitária nos cargos de liderança no mundo jurídico. Quais os cargos mais comumente ocupados por mulheres? Poderia mencionar exemplos de juristas que se destacam em posições de liderança?

Os cargos comumente ocupados por mulheres são aqueles que representam nenhum ou menor valor no nosso sistema capitalista neoliberal. Daí a necessidade de se frisar que existe uma relação indissociável entre patriarcado e capitalismo, uma vez que a desigualdade entre os gêneros serve, nesse modelo econômico e político, para naturalizar e invisibilizar a hiperexploração do trabalho feminino. Em um sistema capitalista, a atribuição de valor (seja ao trabalho ou a outras mercadorias) é uma atividade de abstração não neutra. Como bem coloca Taylisi Leite em sua obra “Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista”, “as tarefas ‘de mulher’ não são tomadas nas estruturas produtivas e não se convertem em trabalho (abstrato) assalariado”. Portanto, todas as atividades necessárias ao bom funcionamento do nosso sistema, mas para as quais não se atribui nenhum valor significativo na nossa sociedade capitalista, são predominantemente ocupadas por mulheres. Assim, quais são os cargos comumente ocupados por mulheres? Ora, são aqueles menos valorizados. O valor não é neutro, ele tem gênero e cor. 

Ao longo dos séculos são muitos os movimentos de luta contra as opressões de gênero, e eu poderia perfeitamente citar mulheres e, no caso da pergunta posta, juristas que se destacam em posições de liderança. Entretanto, penso no revés político de destacar aqui alguns poucos nomes, quando sabemos que, num sentido social e coletivo, nós mulheres ainda estamos subrepresentadas em todos os espaços políticos de tomadas de decisão. Destacar algumas de nós como exemplo daquelas que chegaram a essas posições de liderança alimenta a lógica do empoderamento individual como suposta via de superação do paradigma patriarcal e isso é uma arriscada, ingênua e, por vezes, perversa armadilha. A existência de algumas mulheres “no topo” não faz dessas estruturas espaços mais democráticos e, em muitos casos, é ainda utilizada para legitimar a segregação de gênero enquanto prática estrutural, desviando o foco para os obstáculos ainda impostos às mulheres enquanto corpo social coletivo. Ou a luta é coletiva, ou não nos resta nada senão nos conformarmos com esse sistema de exploração.

A pressão estética e comportamental no meio jurídico é muito maior sobre as mulheres. Além disso, a maternidade se apresenta como um empecilho à carreira, porque impacta na substituição de cargos e jornadas no trabalho. Na sua opinião, quais os principais desafios para as mulheres neste meio? Você percebe sororidade nesses espaços?

Nosso grande desafio hoje é impor que as especificidades de nosso gênero (a exemplo da gestação e da amamentação) sejam normativa e politicamente acolhidas no nosso exercício profissional, a fim de que não nos sejam impostos obstáculos desiguais. Trata-se aqui de um olhar capaz de identificar essas especificidades e corrigir eventuais opressões. Como bem destacou o CNJ no recente “Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero”, publicado em 2021, “a desconsideração das diferenças econômicas, culturais, sociais e de gênero das partes na relação jurídica processual reforça uma postura formalista e uma compreensão limitada e distante da realidade social, privilegiando o exercício do poder dominante em detrimento da justiça substantiva”.

Dessa forma, ao buscarmos a igualdade de gênero, o que se pretende é que nossas desigualdades naturais ou sociais não sirvam de instrumentos de opressão guiados à exclusão da presença feminina na advocacia ou em outras carreiras jurídicas. Em recente pesquisa realizada pela comissão da Mulher Advogada da OAB/BA, apuramos que entre as pessoas entrevistadas que afirmaram pensar, constantemente, em abandonar o exercício da advocacia 75,57% são mulheres. Esse é um dado relevantíssimo, e diretamente ligado ao fato de sermos as vítimas preferenciais de todas as formas de assédio (não apenas o sexual), aquelas que possuem as menores remunerações e, ainda, vítimas mais frequentes de violações de prerrogativas no exercício profissional. Podemos dizer que a existência, pela primeira vez em 90 anos, de uma presidência feminina (e feminista!) na OAB/BA é representativa de um grito coletivo por mudança, mas ainda leva tempo para chegarmos aonde queremos e merecemos estar social e profissionalmente.

Há empresas e escritórios de advocacia buscando equidade de gênero, influenciando positivamente as próximas gerações e contribuindo para termos mais mulheres protagonistas no universo jurídico. Quais políticas de equidade você destaca como mais eficazes?

Penso que a paridade de gênero e racial são políticas que devem ser construídas nos mais variados espaços, inclusive em escritórios de advocacia. A democratização desses espaços é importante, inclusive, para superar o tradicional viés monocular com o qual examinamos as complexas questões jurídicas que nos são trazidas no dia a dia profissional. Se eu tenho uma equipe homogênea em termos de gênero, raça, classe, idade e tantos outros marcadores, isso repercutirá, necessariamente, em um olhar padronizado e empobrecido para problemas que poderiam estar sendo discutidos sob uma perspectiva verdadeiramente plural e complexa. Direito é debate, é confronto de ideias. Se nossos espaços profissionais não são plurais, a nossa capacidade criativa e construtiva é inevitavelmente comprometida.