O fogo era essencial para cozinhar alimentos, a fé na Procissão o Fogaréu, o fogão da lenha, as fogueiras de São João, os oleiros, ferreiros e funileiros assim era no tempo dos meus avós
Tasso Franco , Salvador |
30/10/2025 às 08:19
A Procissão do Fogaréu, o fogão a lenha e a fogueira para São João
Foto: SERAMOV
7. O fogo
Dos fenômenos da natureza apontados pelo Velho Testamento em Gênesis e criados por Deus – terra, água, fogo e ar – o fogo era o mais temido por meus avós. Queimaduras provocadas pelo fogo eram dolorosas, demoravam de sarar e algumas delas levavam à mote.
No território de Serrinha na época em que estamos analisando (1880/1960) havia poucos medicamentos (pomadas) contra queimaduras, centros médicos para atingidos pelo fogo não existiam e quaisquer queimaduras – a maioria domésticas – eram muito doloridas.
Mas o fogo era essencial às famílias porque utilizado para cozinhar e assar alimentos, produzir pães, bolos, doces, etc; para o trabalho dos ferreiros, funileiros, mecânicos de automóveis, padeiros, etc; e para a produção de energia, de luz.
Isso! Parece surreal. Mas, no tempo dos meus avós a luz das residências era produzida pelo fogo em forma de chamas nos fifós, candeeiros, lanternas e velas. Não se usavam tochas como na época de Jesus Cristo e da dominação do Império Romano na Palestina, mas, era coisa parecida com isso.
O fifó era uma tocha estilizada. Objeto feito de flandre – mistura de aço com baixo teor de carbono revestido com estanho - bojudo e parecendo um bule para uso de café com leite, com o bico para o alto onde nele se enfiava uma trança de algodão que descia até o bojo contendo querosene.
Embebida essa trança era só riscar um palito de fósforo na ponta (no bico) e produzia-se uma chama, a luz, que iluminava ambientes os mais diversos numa casa ou armazém.
A diferença, portanto, para o tempo de Jesus é que já existia o fósforo (um palito contendo na ponta um pouco de pólvora que riscado na lixa posta na lateral de uma pequena caixa produzia uma chama) que acendia o candeeiro. E também se usava o querosene, derivado do petróleo.
Na bíblia, há inúmeras interpretações sobre o fogo desde a purificação do espirito santo e a condenação (o pecado), e o mais citado é a destruição de Sodoma e Gomorra, um lugar onde a devassidão imperava.
Para o povo simbolicamente falando o fogo remete ao inferno. O céu é limpo, azulado; o inferno é sujo e repleto de labaredas de fogo e brasas onde impera o diabo com seu tridente. Mas, o diabo não se queima porque ele é poderoso demais e tem o poder de controlar o fogo e provocar o mal e foi destruída pelo fogo.
São narrativas criadas pelo judaísmo e reforçadas pelo cristianismo. No candomblé não existe inferno nem diabo. E em outras religiões como o budismo, o induismo e o espiritismo também não.
Serrinha, no entanto, era católica e a população acreditava no céu onde morava Deus; e no inferno, a residência do Diabo.
O fogo é também associado a paixão, poder e força. Xangô é o orixá do fogo, do trovão e da justiça com seu machado de dois gumes um dos mais poderosos do candomblé.
No popular, quando se diz que um homem ou uma mulher está de “fogo aceso” significa querer fazer sexo. Há centenas de expressões com fogo. Uma das mais populares é “fogo de palha” ou não tá com nada; não é de nada. Tem também a sex “tá com fogo no rabo” pronta para fornicar.
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Para meus avós e a população de Serrinha, o fogo era um bem essencial porque fervia a água, cozinhava e assava os alimentos e tudo isso acima eram narrativas religiosas de valor apenas espiritual. Na hora de cozinhar o feijão tinha era que acender o fogo e botar a panela no fogão alimentado por lenha.
O homem primitivo caçador-coletor (5 milhões de anos atrás) não domava o fogo. As caças e os peixes eram ingeridos crus assim como as frutas e verduras. Conhecia-se o fogo provocado pelos raios que atingiam áreas secas e provocavam incêndios. E o homem se protegia do fogo nas cavernas.
Lá um dia o Homo Erectus (há 1.500.000 anos) aprendeu que atritando uma pedra contra outra de pequeno tamanho provocava faíscas (iguais às dos raios) e se colocasse uma palha seca ao lado gerava fogo. Assim, na África (Quênia) e Oriente Médio (Israel) apreendeu a domar o fogo produzindo fogueiras e começou a assar algumas caças (e até humanos) para comer.
Nossos antepassados na Bahia, os tupinambás, eram antropófagos. Comiam os guerreiros que aprisionavam e cozinhou o donatário Francisco Pereira Coutinho, num panelão. Também foram cozinhados pelos caetés, em Alagoas, o primeiro bispo da Bahia, Dom Pero Fernandes Sardinha e o alcaide Antônio Cardoso quando a nau que retornavam para Lisboa naufragou no litoral de Alagoas.
A bíblia cristã cita a seguinte frase atribuída a Jesus: “Eu vim para incendiar a terra e gostaria que já estivesse em chamas” (Lucas 12:48) e há um episódio em Gênesis conhecido como “as brasas de Abrahão” (1800 a. C) quando relata a fé de Deus no profeta e pede para ele queimar seu filho Isaque.
Abrahão leva a faca e o fogo em brasas para executar o filho, o que, simbolicamente representava “o teste da fé em Deus”. No momento da execução aparece um anjo e salva Isaque e Deus oferece um cordeiro para o sacrifício.
Vem daí, provavelmente, o primeiro registro escrito sobre um cordeiro assado.
Quem já assistiu algum filme sobre o Império Romano deve ter visto banquetes dos imperados com leitões assados e outros., O fogo também queimou muita gente na Inquisição da Igreja Católica e na perseguição a bruxas.
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Tudo isso é história e meus avós e a população de Serrinha não queriam saber desses detalhes e sim como utilizar o fogo para cozinhar, qual a posição melhor de construir um fogão a lenha numa casa, como colocar a chaminé para evitar a fumaça na cozinha, como ter um local do borralho para aparar as cinzas, o buraco para colocar a lenha, as trempes de ferro, os abanos e tudo mais que facilitasse a vida das donas de casa.
Nessa época, homem não cozinhavam, salvo raríssimas exceções e/ou nos momentos de assar um quarto de boi para churrasco ou um leitãozinho. Assim como não existiam mulheres padeiras, ferreiras e funileiras profissões reservadas aos homens.
Os fogões das casas eram assemelhados aos existentes no tempo anterior a Jesus Cristo. Certa ocasião, 2006, morando em Barcelona, Espanha, fui conhecer “Bercino” – a cidade romana que deu origem a Barcelona e fica no centro da capital catalã numa área subterrânea, hoje, centro de turismo, e pude ver como era uma rua, as casas e as suas dependências, há 4000 anos.
As cozinhas – salvo pequenas mudanças – eram iguais as nossas (1880-1960) com fogões de pedra ou barro cozido reforçado e o uso da lenha.
Ainda alcancei muito esse modelo porque nasci em 1945 e na casa dos meus pais, avós e demais de Serrinha todos tinham fogões a lenha. E, ainda hoje, muita gente os tem. Minha irmã, que mora no Distrito do Tanque Grande em sua fazendola “A Casa das 7 mulheres” tem um fogão a lenha e outro a gás.
Meus avós não tiveram a oportunidade de utilizarem o fogão a gás. Quando começou a ser vendido em Serrinha na década de 1960/1970 eles já tinham falecidos.
Lembro que lá em casa quando meu pai comprou um fogão a gás foi um alivio para a empregada, minha mãe e todos que circulavam na cozinha e ao mesmo tempo um temor, se o botijão iria explodir. Foi preciso meu pai colocar o botijão do lado de fora da casa e entre ele e o fogão havia uma extensa mangueira.
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Bem, o fogão a gás foi inventado no século XIX (1826), por James Sharp, Inglaterra, e o primeiro a ser instalado no Brasil no Palácio do Governo de São Paulo, 1901.
Demorou 60 anos para chegar em Serrinha e representou a primeira tecnologia do fogo na arte de cozinhar alimentos e também assar. Aposentaram-se, assim, os fogões a lenha.
As padarias, no entanto, mesmo até os anos 1990 seguiram com fornos a lenha. Alimentar as casas e as padarias com lenha era uma mão de obra imensa. Nas casas as famílias se viraram como podiam comprando carroças de lenha, kombis de lenha, etc, e as padarias compraram caminhões de lenha que eram jogados na rua, nos fundos das padarias e, às vezes, ficava aquela montanha de lenha na rua até que fosse toda consumida.
Eu conheci Cabinho, padeiro do tempo dos meus avós, que jogou como lateral do Fluminense, e era profissional respeitado em fabricar pães.
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A segunda utilidade mais importante do fogo no tempo dos meus avós era produzir luz para iluminar ambientes às noites. Eu também nasci nesse tempo do candeeiro (1945), do fifó, do Aladim, da luz das velas e quando entrei no ginásio (hoje, Colégio Rubem Nogueira) ainda era assim.
Serrinha era um breu. Em 1917, quando Luís Nogueira urbanizou a Praça Manoel Victorino (Hoje, tem seu nome) instalou uma iluminação nos postes da praça a acetileno (gás altamente inflamável), nos lampiões de carbureto.
Tinha um servidor da Prefeitura, Alexandre Ramos (Papainho) que acendia e apagava os lampiões toda noite, que ficavam acesos das 18h às 21h.
Na década de 1930, governo José Vilalva, a Prefeitura instalou uma iluminação pública em vários locais com motores a diesel. A usina ficava na praça onde nós morávamos (Miguel Carneiro, hoje, catedral – exatamente no lugar onde está a catedral) – e os postos eram acesos entre 18h e 22 horas.
Nas residências e no comércio o sistema continuou o mesmo à base de candeeiros.
Nos éramos tão atrasados que quando os Estados Unidos lançaram as duas bombas atômicas em Hiroshima e Nagashaki e ouviu-se falar na “bola de fogo mortal” das duas bombas. Necessitou o jornal local “O Serrinhense” explicar (sem detalhes, porque também não sabia) como uma bola de fogo era tão devastadora.
Isso foi em 1945, ano que nasci, o redator de “O Serrinhense” era meu pai Bráulio Franco e meus avós não deram a menor atenção as bombas (diziam que era longe demais) e queriam era ver o neto.
No fundo, a grosso modo, uma bomba atômica é uma concentração imensa das brasas de Abrahão provenientes do fogo. Claro, com outra tecnologia, mais letal. Essa imensa concentração de energia (fogo) quando explode (a bomba em Hiroshima explodiu a 520 metros de altura) e liberou a energia matou 140.000 pessoas e destruiu a cidade pelo fogo, com altas temperaturas geradas por ele. Assim, os japoneses se renderam e acabou (o final) da II Guerra Mundial na Ásia.
O FOGO E A FÉ:
Também na década de 1930, o pároco local, Carlos Ribeiro, introduziu a procissão do Fogaréu que havia em Salvador e levou-a para Serrinha. Também conhecida como o “Fogaréu dos Homens” a ideia do padre era associar o fogo espiritual a fé, em homilia proferida na matriz de Sant’Anna dando conta de que se a população rezasse e pedisse a Deus por chuvas seria contemplada.
O município passava por uma severa seca que durou mais de dois anos e ficou conhecida como a “Seca de Trinta” e a população – só homens, a maioria da zona rural – saiu em procissão da matriz até à rua Direita, depois seguiu até o Largo da Matança, atravessou uma avenida longitudinal até alcançar a Rua da Estação e subiu esta rua até a praça Luís Nogueira onde se encontrava a matriz.
Os homens levavam em mãos uma tocha feita de papel com fundo de papelão onde se introduzia uma vela que era acessa. Daí o nome de procissão do fogaréu de “fogos acesos” ou “velas acesas”. Durante o percurso, acompanhado pelo prefeito que conduzia a cruz de Cristo, rezava-se de joelhos e olhava-se para o céu entoando a ladainha “pequei Senhor, misericórdia”.
Essa era a mensagem principal puxada pelo padre e repetida pelos fieis em uníssono. Em seguida, um coroinha acionava uma matraca e o povo ficava de pé e seguia adiante.
Com o passar dos anos, a procissão foi se modificando e as mulheres começaram também a participar. Creio que isso aconteceu a partir do Concílio Vaticano II com o papa João XXIII quando houve uma abertura da igreja católica, mas, a essa altura, meados dos anos 1960, meus avós já tinham falecidos.
Já nos anos 1980 a procissão incorporou soldados romanos estilizados conduzindo Jesus Cristo – representado por um jovem – e havia uma encenação teatral na praça da Matriz. Paralelamente se ampliou o percurso até a colina de Sant’Anna, no bairro da Santa, onde a peça teatral também é encenada.
A instalação da imagem de Sant’Anna foi ideia de Samuel Nogueira que possuía uma fazenda no local e homenageou sua esposa, isso nos anos 1950. Portanto, não havia relação com a procissão. Mas, com o passar dos anos e a fazenda sendo loteada nas proximidades da imagem da santa uniu-se o útil ao agradável e surgiu um bairro.
Associado ao fogo no campo da fé está a fogueira para São João Batista e ampliada para São Pedro.
Tradição herdade de Portugal e que se expandiu bastante no Nordeste do Brasil as comemorações para São João tinha caráter religioso, mas também festivo e gastronômico, época do ano (mês de junho) de produzir bolos de aipim, milho, laranja, etc, canjicas, pamonhas, lelês, assar milho e carnes e acender uma fogueira narrativa que surgiu com Isabel (Santa Isabel) que teria acendido uma fogueira para anunciar o nascimento de Jesus Cristo.
Não preciso falar do São João que todos conhecem a simbologia da fogueira, o pular a fogueira, as simpatias e assim por diante. Época de soltar balões e fogos de artificio. No tempo dos meus avós, na década de 1950, meu irmão Bráulio era craque em produzir balões e soltá-los. Para isso era usada uma bucha umedecida de querosene presa numa armação de arame acondicionada na base do balão que, quando acendia (olha o fogo aí) pegava pressão e o balão subia. É o mesmo princípio usado nesses balões gigantes que são usados no turismo.
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Outras utilidades exercidas com o uso do fogo no tempo dos meus avós eram praticadas pelos padeiros, ferreiros, fogueteiros, funileiros e oleiros. Havia um fogueteiro chamado João, no bairro da bomba, que produzia foguetes e bombas.
A Serrinha nessa época não tinha ladrões como hoje e poucas casas tinham grades de ferro nas portas, janelas e fachadas. Os ferreiros faziam alguns portões, trabalhavam para produzir dobradiças de cancelas, ferramentas – pás, enxadas, estrovengas, picaretas, alavancas, ferros com letras para marcar o gado e até armas (espingardas).
Usavam uma fornalha de alvenaria onde colocavam as brasas do fogo para aquecer as chapas de ferro. Em seguida, com as chapas vermelhas colocavam numa bigorna (superfície solida de aço) com o uso de pinças de ferro e moldava-a no que deseja produzir com um martelo potente (estampa). Assim que conseguia o formato de uma pá ou outro instrumento levava a um tonel contendo água para esfriar. Esmerilhavam e pronto.
Na idade média essa profissão era supervalorizada porque eram os ferreiros que produziam as armas – lanças, espadas, punhais.
Em Serrinha, produziam muitos ferros de ferrar gado com duas letras na ponta esculpidas. No momento de ferrar o gado, os capatazes das fazendas colocavam essa ponta com as letras num brasileira e quando bem quentes encostava na anca dos bois e vacas deixando a marca (as letras) impressas no animal.
Assim, os fazendeiros sabiam de quem eram os animais perdidos se por acaso se misturassem aos seus bois.
Esses ferros também foram usados para marcar escravos no Brasil colonial, mas, não há registros disso no território de Serrinha, assim como alguns cangaceiros de Lampião marcaram as mulheres com ferro.
Os funileiros trabalham com frandre, metal mais leve, e produziam bicas, baldes, canecos, fifós. Conhecia alguns do tempo dos meus avós como Sêo Zé da Oficina (ferreiro e mecânico da Praça da Usina), Julinho Carneiro (que era um funileiro gay) e Duduzinho Funileiro. Profissionais de fogo.
Funileiros eram profissionais valorizados em Serrinha e desapareceram com a chegada e invasão dos plásticos. Ferreiros ainda existem, poucos. Padeiros também ainda existem, mas usam outra tecnologia – fornos elétricos.
Os oleiros trabalhavam em olarias quase sempre familiares e produziam telhas, tijolos, panelas, talhas, canecos, aribés, etc, etc e utilizavam fornos a lenha para dar textura aos objetos. O fogo era crucial e havia o ponto, o momento de verificar que os produtos estavam prontos para serem vendidos. A complementação era secar no sol e decorar algumas peças. Esses produtos artesanais no tempo dos meus avós eram vendidos na Praça da Federação pelos rurais.
Por fim, lembrar que os desbravadores dos sertões roçavam as áreas de mata ou caatinga, juntava tudo que foi cortado e roçado no centro da terra limpa e tovaca fogo. Esse processo, bem primitivo e usado pelo homem há 10.000 se chamava coivara. Ainda hoje se usa no território da Serrinha.