As talhas como na época de Jesus Cristo e os copos de barro e de ferro; meus avós não experimentaram água encanada e tratada
Tasso Franco , Salvador |
23/10/2025 às 14:59
Como no tempo de Jesus Cristo assim era a Serrinha (1880-1960)
Foto: SERAMOV
CAPITULO 6. A ÁGUA E OS AGUADEIROS
Já analisamos nos capítulos iniciais deste livro como as pessoas vinham ao mundo e a finitude, a morte. E avançamos para comentar sobre os 4 fenômenos básicos da criação de Deus para o Universo – a terra, água, o fogo e o ar,
A terra vimos no capítulo anterior que Deus ao cria-la colocou nela para procriar o homem, a mulher e os animais. E já somos 8 bilhões de sapiens. Ninguém sabe quantos ainda virão e qual o limite da terra em suportar essa quantidade imensa de pessoas e animais (só no Brasil existem 238 milhões de bois) num planeta em que o homem mutila o meio ambiente, há uma quantidade enorme de armas nucleares e usinas da mesma natureza para produção de energia.
O homem é predador. Deus o fez à sua semelhança segundo o que se lê em Gênesis e ELE o puniu com o dilúvio mandando chover 40 dias e 40 noites inundando tudo.
“O Senhor viu o quanto havia crescido a maldade dos homens na Terra e como todos os projetos dos seus corações tendiam unicamente para o mal” (Gênesis 6.5) e determinou a primeira catástrofe ambiental.
“Vou exterminar da face da terra o homem que criei e com ele os animais, répteis e até as aves do céu, pois estou arrependidos de tê-los feito” (Gênesis 7.7)
Foi assim que Deus – segundo a bíblia Velho Testamento – determinou que Noé construísse uma arca e entrasse nela com mulher, filhos e animais (um casal de casa espécie) e mandou chover 40 dias e 40 noites e a água subiu 7 metros e 30 cm acima de todas as montanhas e exterminou todos os seres e animais da terra.
Depois que a chuva cessou se passaram mais vários dias até que as águas baixassem e Noé ancorou a arca, os bichos saíram dela e Noé com mulher filhos e genros. Surge então uma nova geração a partir dos filhos de Noé – Sem, Cam e Jafé.
Evidente que se trata de uma narrativa lendária intersubjetiva, mas no tempo dos meus avós, esse era o senso comum.
A água, no entanto, era um bem tão precioso que algumas pessoas duvidavam do dilúvio encarado por Noé, uma vez que Deus não colocou no território de Serrinha um rio ou lagoa. O rio que bordejava o Oeste do município era o Itapicuru que distava 90 km da sede e beneficiava os moradores de Tucano.
Como meus avós viviam da terra e o semiárido é seco, o sol é inclemente, a água foi o grande desafio para eles e para as demais famílias, tanto nas zonas urbanas como nas rurais.
No Brasil, os portugueses a mando do rei de Portugal se concentraram na descoberta do ouro, o que só vai acontecer no século XVII. Na América mais ao Norte os espanhóis se deram bem porque a prata na Bolívia e o ouro no México eram vistos a olho nu.
Nem nessa época (séculos XVI e XVII) nem no tempo dos meus avós (séculos XIX e XX) sabia-se que havia ouro no território de Serrinha. A mina da Fazenda Brasileiro que se estende de Teofilândia (Pedra) até Santaluz é uma mina de ouro subterrânea, descoberta pela Vale do Rio Doce (2003) e, na atualidade, explorada pela canadense Yamana Resources.
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O ouro no tempo dos meus avós era a água. Se procurava água em qualquer lugar, nas cacimbas, nas baixadas, nos pés das serras, porque sem água não dava para sobreviver nem os humanos nem os bichos. E, humanos e bichos representavam um mesmo ente porque bebiam a mesma água, dos tanques, cacimbas e cisternas.
Serrinha não teve um ciclo de cisternas como a Turquia nos arredores de Istambul quando a profissão de cavadores de poços era valorizada e bem paga. Há um livro espetacular sobre esse tema escrito pelo Nobel de Literatura, Orhan Panuk, intitulado “A Mulher Ruiva”. A história é fantástica e mostra como a zona produtiva e industrial de Istambul só prosperou cavando poços e o jovem cavador de poços que se apaixona por uma mulher.
Em Serrinha foram poucos os poços cavados porque dava água salobra e nem o gado queria nem os humanos suportavam. O que valia e tinha (e ainda tem) em preciosidade suprema era a água de Deus, da chuva, na natureza. A água representava a vida, pois, quando chovia o capim nascia, as plantas floresciam e tudo se modificava na produção dos alimentos.
Esse simbolismo da água advém do cristianismo quando a água se tornou o símbolo da vida, a purificação, a benção e a renovação espiritual.
O simbolismo se difundiu bastante a partir do batismo de Jesus Cristo no Rio Jordão, por João Baptista, na localidade de Betânia, na Jordânia.
O batismo foi levado pela igreja católica ao sertão da Bahia desde os primórdios e dizia-se que, aquele que não se batizasse era pagão. Ninguém sabia ao certo o que era pagão (não batizado) e se espalhava que pagão não entrava no céu uma vez que o batismo era “a porta da vida no espírito”.
Mas, já dito, Serrinha não tinha um rio e a igreja católica criou a pia batismal – uma pequena pia com água, dita benta – e a criança ou jovem colocava a cabeça e o padre (e os leigos) jogavam um pouco d’água e faziam o sinal da cruz na testa. Pronto, abria-se a porta do céu.
Criaram-se, também, os coadjuvantes do batismo – padrinhos e madrinhas – que simbolizavam (tal como João Baptista simbolizou para Cristo) um segundo pai e uma segunda mãe para os batizados. Cristo, no entanto, não teve madrinha.
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Em parte, quem resolveu o problema da água na vila foi o trem de dom Pedro II. É incrível como essas máquinas de ferro produzidas na primeira revolução industrial (meados do século XIX) revolucionaram Serrinha no sentido de que foi deixando de ser uma localidade tipicamente rural para ser urbana com engenharia, medicina, hotéis, viajantes, etc. Mudou muita coisa.
E como as “Marias Fumaças”, locomotivas assim apelidadas porque expeliam uma fumaça pela chaminé, necessitavam de água para refrigerar as caldeiras que iam produzir vapor e mover as rodas dos trens, construiu-se um imenso açude a jusante da estação de passageiros, algo em torno de 1 km, e colocou-se uma bomba que levava a água para uma caixa d’água, instalada um pouco antes da estação,
Era dessa caixa d’água que uma mangueira levava a água para as caldeiras das máquinas.
O importante a destacar é que a maioria da população da vila passou a usar essa água do açude que foi apelidado de Bomba (devido uma enorme bomba hidráulica para bombear a água até a caixa d’água) para beber, para dar ao gado, para gasto e outros fins. E a Intendência – uniu o útil ao agradável – e instalou o matadouro próximo da bomba. E começou, dessa maneira, a poluição da água pois o chorume da matança dos bois era descarregado na Bomba.
As máquinas não sabiam o que era água poluída, mas, os humanos sim. E a água da Bomba matou muita gente com doenças provocadas pela contaminação. O povo ainda chegou a cunhar uma frase que dizia: “O que não mata engorda” e bebia a água assim mesmo.
O certo é que a Bomba teve uma grande utilidade para a Leste Brasileiro (os trens) até que as locomotivas foram substituídas para máquinas a óleo e também para a vila e a cidade e nasceram e prosperaram no seu entorno 6 bairros: Bomba (o maior), Treze, Ninho do Poeta, Nossa Senhora de Fátima e Recreio. Podem ser chamados de bairros da água.
A Bomba, portanto, foi o nosso Rio Jordão, e que chamo em minhas crônicas noutros livros de “nosso mar”, porque muitos serrinhenses aprenderam a nadar nela e curtiram o quando puderam as ruas “praias”.
Hoje se tornou um pinicão e o que restou está rodeado de casas e ocupações diversos. Poderia ser uma lagoa (como a de Feira de Santana) área de lazer, preservada, com equipamentos de ginástica, pista de cooper, etc, mas esqueça isso pois os gestores de Serrinha preferirem gastar milhões em festas do que cuidar do meio ambiente.
Meio ambiente é bom para discursos, mas não dá votos.
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No início do século XX, meus avós eram pequenos, houve uma seca terrível no Nordeste da Bahia e muita gente morreu de fome, assim como bovinos e outros animais. O homem rural, o quanto pode, comeu tudo que corria no mato, de raposa a calangos.
Houve uma migração de muitos rurais para a sede e o intendente Joaquim Hortélio (1904-1907) teve uma ideia providencial mandando construir um açude na zona Norte da cidade que ainda não era habitada e havia uma baixada onde juntava água quando chovia, usando neste trabalho os retirantes da seca (e outros) e pagando a mão de obra com abóboras.
Mandou importar as abóboras de Feira de Santana, donde era filho, e assim construiu um açude na base da picareta, pá e enxada, que ficou conhecido como Tanque das Abóboras.
Meu avô paterno quando adquiriu o casarão da praça Miguel Carneiro, em 1923, o quintal correspondia a área de um sitio indo até a beira do Tanque das Abóboras, na área Norte; e na área Oeste, na década de 1930, passou a estrada de Getúlio Vargas (a Transnordestina).
Em volta do Tanque das Abóboras nasceram os bairros Abóboras e Colina das Mangueiras e na estrada de Getúlio o bairro da Rodagem. A população inicial de todos eles bebiam a água do Tanque das Abóboras, que, posteriormente foi aterrado e não existe mais.
A seca nessa época foi de tal ordem que o governo federal através do ministro da Agricultura, Miguel Calmon, baiano, decidiu construir um grande açude, o maior de todos, na zona Leste da cidade que ficou conhecido como Gravatá, nome derivado do engenheiro Antônio Gravatá, o qual, esteve na Câmara de Vereadores de Serrinha, em 16 de outubro de 1905, para prestar contas da obra.
A Serrinha urbana (aproximadamente 2.000 habitantes) estava com uma boa planta de água e os povoados e distritos criaram seus tanques e açudes.
A estrada de Getúlio, chamado de pai dos pobres, foi outra benção inesperada em termos de reservatório de água, pois, no seu trajeto em direção a Tucano surgiram desníveis, buracos, que quando chovia enchiam d’água e passaram a ser conhecidos como aguadas (a primeira aguada ficava logo depois do bairro da Rodagem) e a quarta água se alargou tanto que se tornou o açude da Cabeça da Vaca, já vizinho ao distrito de Pedra (Teofilândia).
Eu era moleque nos anos iniciais de 1950 e íamos com a turma de pequenos do Largo da Usina tomar banho na 1ª e 2ª aguadas. Era uma aventura fantástica. Diga-se de passagem, os meninos e jovens de Serrinha todos aprenderam a nadar (inicialmente de cachorrinho e depois de Tarzan) nas aguadas, na Bomba, no sangradouro da Bomba (Treze), no riacho do Tiro de Guerra (hoje, bairro Oseas) no Gravatá e outros.
Não havia piscinas nem clubes de natação e como já foi dito Deus não nos deu um mar, nem um rio, nem lagoa. Mas, nadar além de ser uma aventura, se dizia que era bom para a saúde e Tarzan, um branco que era rei da selva africana, nosso espelho. Todo mundo queria ser Tarzan que nadava mais rápido do que um jacaré.
E onde víamos isso? No cinema.
Meus avós e muitas outras pessoas mais velhas não sabiam nadar.
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Falemos agora do uso da água, do controle de qualidade e das novas tecnologias para a produção da água e sua utilidade.
Ainda no final do século XIX e início e meados do século XX o uso da água era assemelhado ao tempo de Jesus Cristo (dou como referência JC porque todos conhecem) há 2025 anoss. Ou seja, os humanos bebiam a mesma água dos bois e outros animais. A diferença é que algumas famílias tinham cuidado de purificar a água e fervê-la. Ferver era mais raro. Purificar com areia, talhas, etc, era o mais comum.
Nessa época, além dos canecos de barro cozido e de ferro (iguais ao do tempo de Jesus) se usam canecos de madeira.
Vale lembrar que os aquedutos – canais para transportar água – existem desde 691 a.C. e o Império Romano construiu vários deles na Europa. O aqueduto das Águas Livres de Lisboa ainda hoje se vê sua estrutura.
Por que os administradores de Serrinha não construíram um aqueduto para levar a água da Bomba e do Gravatá para as residências?
Era tecnicamente viável, mas, ninguém fez e a população criou sua própria tecnologia, os chamados tanques de cimentos nas casas que captavam a água das chuvas daí caiam nos telhados e bicas levavam o líquido para os tanques.
Essa foi a primeira tecnologia usada em Serrinha no tempo dos meus avós para se livrar as águas dos tanques e açudes. Não de todo é claro. Muita gente continuou usando, em especial nos povoados e zonas rurais.
O beber a água, o uso doméstico da água, continuava, no entanto, como no tempo de Jesus Cristo. Há uma passagem no Evangelho de João intitulado Bodas de Caná (hoje, cidade de Kafr Kanna, Israel) onde se encontrava Maria.
“Houve umas bodas em Caná da Galiléia e estava presente a mãe de Jesus () Também fora convidado para a festa Jesus e seus discípulos. Tendo acabado o vinho disse a mãe para Jesus: ‘eles não têm vinho’. () Havia seis talhas de pedra para a purificação dos judeus. Disse-lhe Jesus: ‘enchei de água as talhas’. Encheram as talhas até a borda e Jesus transformou a água em vinho” (João, 2. 1.2.6.7).
Pois bem, na casa do meu avô paterno havia uma talha de água também chamado de jarro grande de água assemelhado ao de Caná, com a diferença de que, meu avô não tinha o poder de transformar água em vinho. Sobre a boca da talha havia uma tampa de madeira coberta com um pano e ao lado, numa mesinha, os copos de barro cozidos.
Tanto na talha quanto nos tanques de cimento para retirar a água usava-se uma técnica. No caso dos tanques descia-se um balde amarrado numa corda bem devagar para não espanar a água e subir os ciscos e deixava-se o fundo do balde tocar de leve na água. Dava-se, então, um toque na corda, o balde virava e enchia. Depois, suspendia-se o balde e pronto.
Nas talhas os copos tinham que submergir devagar e quanto mais o nível da água baixava, mais cuidado se tinha. A talha (ou pote grande de barro cozido) tinha capacidade de filtragem e retirava impurezas. Se a família fosse mais cuidadosa bota-se essa água para ferver e depois esfriar e consumir. Mas, poucos faziam isso. Era dos potes (ou talhas) para as bocas.
Se a pessoa fosse visita havia um copo especial ou vários copos para muitas visitas e os dos donos da casa eram marcados com uma letra. Meu avô se chamava Jovino (J) e minha avó Roza (R).
Havia também as moringas de barro recipientes menores que eram enchidas com a água das talhas e mais fáceis de manejar. Era só pegar pelo gargalo, apoiar a base num local qualquer e derramar a água no copo.
Adiante, não me recordo qual década, provavelmente nos anos 1940, surgiram os filtros que eram moringas maiores, sofisticadas para a época, com uma torneira na parte inferior e velas de cerâmica no interior para filtrar a água. O filtro era divido em duas partes: a de cima, onde ficavam as velas e era jogada a água; e a de baixo onde a água filtrada se acumulava por gotejamento para o consumo.
Então foram as tecnologias no tempo dos meus para a evolução e consumo da água: 1 – Dos tanques e açudes cavacos no solo para os tanques de cimento; 2 – Das talhas e moringas para os filtros.
Meus avós não tiveram a oportunidade a subsequente tecnologia para a água, ou seja, a encanada e tratada. Serrinha era (e ainda é) muito atrasada. A água encanada e tratada foi implantada em SP em 1857/1877, mas só chegou em Serrinha pós 1961.
Também não me recordo se chegaram a usar o copo de vidro idealizado em SP, 1947, por Nadir Figueiredo. É provável que sim.
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A cultura da água, a sua capitação, desenvolvimento e uso geraram várias profissões informais: os cavadores de tanques, os guias de bois para leva-los a beber água, os aguadeiros e as lavadeiras.
Nas áreas urbanizadas os aguadeiros, tal como em Lisboa, Portugal, surgiram no início do século XX e se extinguiram nos anos 1960; e as lavadeiras também surgiram no final do século XIX diminuíram bastante nos anos 1990, mas ainda existem e persistem.
Os aguadeiros eram homens e usavam jegues (eventualmente burros) portando uma cangalha de madeira com alças onde se prendiam 4 barris pequenos (2 de cada lado) que eram enchidos de água e vendidos, nas residências, nas lojas, oficinas e outros.
Meu pai tinha uma tipografia e nos anos 1950 as impressoras em movidas a diesel mas os motores também necessitavam de água e toda semana, um aguadeiro ia ao Serrinhense abastecer o tonel d’água.
Era assim que funcionava: os aguadeiros vendiam água de gasto, água para cozinhar e água pra beber, mas, embora fosse muito difícil saber o que era uma e outra, tinha-se que confiar no aguadeiro.
Os aguadeiros que se abasteciam no Tanque das Abóboras usavam uma trilha estreita, que, na atualidade é a rua Siqueira Campos e dava na praça Miguel Carneiro. Os que usavam água da Bomba tinha várias trilhas.
As lavadeiras atendiam as suas famílias e também às famílias da classe média que pagavam por peça lavada. Usam imensas trouxas nas cabeças e quando chegavam nas casas onde as donas haviam encomendado as lavagens, abriam as trouxas e contavam peça por peça do que tinha recebido.
Era assim no tempo dos meus avós e eles não tiveram a oportunidade de usar água encanada e tratada, nem geladeiras, nem máquinas de lavar roupas e louças.
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** Próximo capitulo, 7 - O fogo (Leiam todos os capitulos no www.wattpad.com e/ou no www.BahiaJá.com.br em Culltura)