Os dois personagens mais relevantes na construção da Avenida Sete e reforma urbanística de Salvador e que mudaram sua cara colonial
Tasso Franco , Salvador |
30/01/2025 às 10:29
Os construtores da Avenida Sete JJ Seabra e Arlindo Fragoso
Foto: Seramov
Estamos chegando ao final deste livro e não poderíamos deixar de falar sobre dois personagens já citados em passante nas crônicas anteriores, mas, que merecem uma só para eles. Falo de José Joaquim Seabra o JJ Seabra, assim conhecido e imortalizado ex-governador que implantou a Avenida Sete no seu primeiro governo (1912/1916); e Arlindo Coelho Fragoso, o engenheiro santamarense responsável pela execução da obra.
Dois personagens com características distintas, JJ Seabra político, intrépido, tribuno loquaz, ambicioso na medida do seu amor pela Bahia; e Arlindo discreto, técnico, obstinado intelectual, fundador da Escola Politécnica e da Academia de Letras da Bahia, construtores de sonhos tomando aqui emprestado o termo do biógrafo de Arlindo, Caiuby Alves da Costa.
Como então, dois seres tão distintos um do outro e falo isso diante do que já li sobre ambos se uniram para construir a avenida que mudou a cara da Salvador colonial para ser contemporânea do século XX, no alvorecer daquele século, copiando ao que se disse na época, o modelo parisiense dos bulevardes do barão de Georges-Eugène Haussmann, final do século XIX e que mudaram Paris e depois o Rio de Janeiro, de Pereira Passos.
Ora, pouco importa que assim fosse porque a capital baiana necessitava de algo que a soltasse, que a respirasse do gueto colonial confinado entre o São Pedro e o Além Carmo com incursões pela cidade baixa, também remodelada por JJ Seabra, no Comércio, e no cais dourado da velha Bahia.
Há de se dizer que Seabra destruiu a memória de parte dessa antiga cidade derrubando igrejas integralmente e fachadas de outras, colocando casarões coloniais no chão e que essa higienização prejudicou as pessoas de menor poder aquisitivo, mas essa é uma conversa própria dos acadêmicos de gabinetes e livros, pois para se executar uma reforma urbanística nem existe consenso, nem outro tipo de solução. É ter vontade politico e por mãos à obra.
E Seabra enfrentou o poder da igreja católica, mas também negociou com o arcebispo Dom Jerônimo Tomé da Silva, poupou uma banda do Mosteiro de São Bento graças a resistência do abade belga Majolo (Pedro) de Caigny, e descortinou a cidade para o mar da Baía de Todos os Santos, na Barra, abrindo a área para novas residências e incorporando a praia como área de lazer, o que, até então (1915) só era usada pela população como terapia medicinal.
A Ladeira da Barra sequer existia como via de integração e uma pedreira impedia que o acesso ao mar se desse por essa trilha e sim somente pelo antigo caminho da Vila Velha (hoje Avenidas Princesa Isabel e Princesa Leopoldina) a estradinha na Mata Atlântica de Caramuru e Catarina para sua capela de Nossa Senhora da Graça.
Em “Adorável Comunista”, Antônio Risério, diz que “foi no primeiro governo Seabra que teve inicio o processo de modernizante (de Salvador), Seabra como que renunciou a administrar o estado, deixando o interior nas mãos dos coronéis, para se concentrar na Cidade da Bahia, como uma espécie de super prefeito. E seguiu à risca o figurino carioca numa campanha agressiva contra o centro histórico e na abertura da Avenida Sete e Oceânica. O que planejava era destruir a cidade colonial, herdada do barroquismo jesuítico, para erguer sob as suas ruinas, uma cidade moderna. A imprensa e a elite político-administrativa baianas defendiam como disse Fernando da Rocha Peres, em “Memória da Sé”, que ‘o antigo burgo deveria ser convenientemente preparado para entrar, já com certo atraso, na mecânica do século”.
Exagero à parte, uma vez que nos estudos que se realizaram na época por Gerônimo Teixeira não havia essa intenção de “destruir a cidade colonial” e a derrubada da Sé Primacial objeto do livro de Fernando Peres se consumou em 1933, no governo Juracy Magalhães, (outro episódio, distinto) a essa altura Seabra fazia oposição a Juracy integrando um movimento de baianos da terra (Juracy era cearense) numa campanha chamada “A Bahia ainda é a Bahia” abaixo o “forasteirismo” e é eleito deputado federal constituinte.
Em “JJ Seabra sua vida, suas obras”, de Edilton Meireles, a biografia mais completa desse personagem da história da Bahia, comenta que “em novembro de 1932, seria criada, na Bahia, a Liga de Ação Social e Politica (LASP), presidida por Aloysio de Carvalho Filho, tendo entre seus fundadores Nestor Duarte, Luís Viana Filho (como secretário), José Vanderley de Araújo Pinho, Gilberto Valente, Inocêncio Calmon e Jayme Baleeiro e que teria Seabra como patrono, que, aliás, tomou a iniciativa de propor a união das oposições”.
Noélio Dantaslé Spinola em “A Trilha Perdida – caminhos e descaminhos do desenvolvimento baiano no século XX” comenta que “na visão dos historiadores, certamente o vulto histórico mais controvertido e polêmico entre os governadores baianos da primeira metade do século XX, JJ Seabra foi eleito duas vezes para o governo da Bahia (1912-1916) e (1920/1924), porém seu poder politico se estendeu por 12 anos com a eleição de seu sucessor (e aliado) Antônio Ferrão Moniz de Aragão”.
Advogado, deputado estadual, deputado federal, ministro da Justiça (governo Rodrigues Alves), ministro da Viação (governo Hermes da Fonseca) e duas vezes senador, na visão de Noélio (obra citada) Seabra foi um personagem “que contrariou muitos interesses e arregimentou ferozes e poderosos inimigos na elite oligárquica baiana, tendo contra si os ‘vianistas’, ‘severinistas’ e ‘marcelinistas’, é objeto de juízos diferentes. Para uns, foi um modernizador que efetivamente implantou o ideal republicano na Bahia, derrotando a velha oligarquia local, reduzindo a influência do ‘coronelismo’, integrando o interior (notadamente o Sertão) ao governo estadual além de realizar uma administração profícua, responsável por importantes medidas político-administrativas e obras, entre as quais se destacou a reforma urbana da cidade do Salvador”.
Para a historiadora Consuelo Sampaio (pág 113 da obra citada) “havendo capturado o poder através da politica das salvações nacionais, que, como já foi referido, pretendia o aniquilamento das oligarquias regionais, Seabra – garantindo-se o apoio dos coronéis e estendendo a ação do seu partido a todos estado – estabeleceu na Bahia um domínio oligárquico como até então não se conhecia”.
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Após essas pinceladas para compreender o jurista e político JJ Seabra, voltemos ao fulcro do nosso trabalho que é a Avenida Sete. De fato, a personalidade de Seabra era tão forte e dominante que os prefeitos de Salvador naquela época (engenheiro Júlio Viveiros Branco 1912-1914; monsenhor João Gonçalves da Cruz – interino 1913; e coronel João de Azevedo Fernandes (1914/1915) raramente aparecem em citações (até jornalísticas) nas obras da Avenida Sete e do Comércio. Tudo tinha a mão de Seabra e a sua marca.
E observem que ele chegou ao poder pelo voto direito depois do bombardeio da cidade do Salvador ocorrido em 10 de janeiro de 1912 a mando do presidente Hermes da Fonseca, ao que dizia seus adversários na Bahia “por maquinação de Seabra” ou “a pedido de Seabra” (nunca se soube a verdade), mas, sabe-se o objetivo era quebrar a resistência que a Bahia se impunha ao governo central.
E os canhões vomitaram balas de fogo no centro de Salvador, vários prédios foram destruídos - o Palácio sede do governo foi um deles e as labaredas de fogo engoliram a Biblioteca Pública e seus livros, o ministro da Marinha, almirante Marques de Leão (hoje, nome de rua na Barra) pediu demissão e o Barão do Rio Branco, que nunca tinha vindo a Salvador, morreu de desgosto. E Seabra venceu as eleições.
Analisando a biografia de JJ Seabra em comparação com outros governadores da Bahia do período Republicano, seguramente foi o mais destacado governador por seu saber jurídico, por ter se envolvido em diversos episódios revolucionários, amado, detestado, exilado e probo. Morreu no Rio de Janeiro, paupérrimo, dando aulas e devendo a amigos, o que é bem diferente de gestores mais recentes.
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O seu parceiro nas obras da Avenida Sete foi Arlindo Coelho Fragoso, uma pluma, um ‘gentelman’, santamarense do século XIX, aluno do Colégio do Professor França, dai seguindo para o Rio de Janeiro diplomando-se em engenharia pela Escola Politécnica, em 1885, aos 20 anos de idade, a essa altura colaborado de “A Gazeta da Tarde”, de José do Patrocínio, atuando como abolicionista.
Arlindo foi um dos fundadores da Academia de Letras da Bahia (ALB) depois que Almachio Diniz e o Barão de Macaúbas haviam criado a Academia Bahiana de Letras (1911) e Instituto Literário da Bahia (1845). Fragoso era literato e engenheiro. Em Santo Amaro já havia publicado "Estudos sobre a Cinemática (1887), Instrução popular - o Instituto Municipal (1891), Administração municipal de Santo Amato (1893) quando sensibiliza o governador Antônio Moniz a fundar a ALB em 7 de março de 1917, data de sua instalação.
Nascido em 1865 com formação em engenharia na Escola Politécnica do Rio, a essa altura da vida já tinha fundado, também, a Escola Politécnica da Bahia (1897), atuava como jornalista free-lancer nos jornais “A Maçonaria” e “Correio da Tarde” e tinha 15 obras literárias publicadas. Os demais fundadores da ALB eram advogados e jornalistas - Ruy Barbosa, Severino Vieira, Egas Moniz de Aragão, etc, mas isso não era empecilho para que se dessem bem, nem que trabalhasse com Seabra.
Creio que o melhor livro de Arlindo Frango foi "O Espirito...dos Outros" - Chronicas Modernas, História, Arte e Críticas, 1917, prefácio da Xavier Marques (Imprensa Oficial da Bahia (IOB), 1917, formato 11x18cm, 575 páginas, CCL capítulos curtos, reeditado pela EDUFBA, 2015, R$70,00 encontrado também em Estante Virtual R$49,00 e nos sebos) uma delícia de leitura contendo tiradas filosóficas, sátira política e citações de autores franceses e portugueses, d'alguns brasis, a base para formular a sua linguagem satírica e humorística de alta qualidade remetendo-as aos dirigentes da República nascente no país.
Ao escrever "O Espirito... dos Ouros" eis que Arlindo Fragoso se não incorporou espíritos alheios nos seus chistes e comentários de fina ironia demonstra ser um leitor assíduo das obras dos franceses do seu tempo, século XIX, assim como da literatura portuguesa e dos românticos brasileiros onde se apega em citações nas aberturas e intermezos de suas crônicas, dando-lhes desfechos com tiradas de humor e tons políticos.
Diria ser uma crítica social relevante a República nascente no Brasil (o livro foi publicado em 1917, mas as crônicas foram publicadas nos jornais da Bahia, antes) e aos seus integrantes do poder que, n’alguns casos se assemelham em diátribes as cortes francesas dos luíses, em especial dos XI aos XIX.
Como bem salientou Xavier Marques no prefácio: “Arlindo Fragoso brilhante talento, essencialmente oratório, apoiado em sua cultura cientifica e literária () ...ao lado do entretenimento à crítica, mas a crítica mansa, risonha, quase indulgente, com um sainête que a ameniza e afinal poupa a pele do viciosos para incidir sobre a entidade vicio"
E completa Xavier: "O livro galante de Arlindo já pelo espirito, já pelo feitio, merece ser classificado entre as nossos melhores letras humorísticas, na secção que se vai opulentando com a saborida prosa de Carlos de Laet, Constâncio Alves e Nuno de Andrade, e com os versos mais ou menos picantes, irônicos ou facciosos de Emilio de Menezes, Bastos Tigre, Aloysio de Carvalho e outros, herdeiros das musas folgazãs que com tanto lustre contribuíram para o cancioneiro alegre de Camilo”.
Ora, pois, o que satiriza Fragoso para deferências tão especiais a sua pena erudita que pontilhou em 250 dias no Jornal de Notícias com o pseudônimo de Piron?
Como disse na época Aloysio de Carvalho Filho (Lulu Parola) “a verve do descanso num país de feriados e de gente de pouca pressa”. Assim, Fragoso publicou suas crônicas ‘modernas’ que o jornal classificou como uma “secção moderna, parisiense, fina, e cheia, na sua filosofia alegre, desse humor salutar da sátira inofensiva, a Tackeray, na simples pretensão de aliviar enfados e tristezas”.
E ao iniciar suas crônicas Fragoso cita Fournier, “um mineiro das boas letras, muito amado em França e toda a parte em que a graça contenta e vale. () quanto ao estilo, porque a nenhum me obrigo, estimarei Voltaire neste conselho de arte e começo buscando o abade Dom Fontaine. () Quando o cardeal Mazarino, de famosíssima memória, buscava, em Paris, um novo imposto, era certo perguntar aos de sua intimidade...o que a respeito dele ou do tributo, se dizia pelas ruas.
- Contam-se por toda a parte, atrozes sátiras contra a pessoa de Vossa Eminência.
- Ah! Cantam...Tanto melhor! Se cantam, pagarão.
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Satiriza Fragoso no fecho: - Aqui é o contrário. Quando aparece a praga, aliás muito comum, o povo não canta: geme, chora, protesta, representa e, às vezes, ensaia, a medo, umas bernardas infelizes, cujo só préstimo dizem crônicas, é servir à gloria militar das cavalarias salvadoras e beneméritas.
E completa: - Mas com bulha ou sem ela, gemidos e lágrimas, e súplicas e protestos, valem os anúncios daquelas trovas e cantigas, que, em Paris, tanto agradava ao cardeal.
- O povo, eis tudo, paga e paga!
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Vês nobre leitor, amiga leitora, que o tempo passa e lá se vão mais de 100 anos dessas “chrônicas modernas” de Arlindo Fragoso, os cardeais continuam pidões em nossa República e os nossos “luíses” da Corte Brasis a cobrar mais e mais impostos, e, mais recentemente, na República do Amor paga-se e paga-se sem bulhas.
“O Espírito...dos Outros” está tão atual como outrora. E vale para a ALB, hoje, mais parecendo um puxadinho da UFBA e entronizando cantantes. Pois, pois, eis na penúltima crônica deste livro os dois personagens construtores de sonhos da velha Bahia que um dia já foi civilizada.