Josué Oitentinha Piaçava, homem urbano trabalhador que abriu sua primeira poupança na Caixa, em 1936, quando esta casa bancária se instalou em nossa aldeia
Tasso Franco , Salvador |
16/06/2024 às 18:16
Ilustração de Seramov
Foto: SERAMOV
CAP 23: JOSUÉ OITENTINHA E A POUPANÇA MILIONÁRIA
PRÓLOGO:
Antes que franqueasse a palavra para novo contista a representante das costureiras, modistas e bordadeiras dona América Feliciana Cajueiro levantou-se e pediu a palavra, promovendo a seguinte locução: - Quero externar minha modesta opinião sobre este conto narrado pelo senhor Eliseu Abobreira da grandiosa mesa construída pelo profícuo Jão Matos Calumbi, nosso querido Jão Galinha, e dizer que nossa associação das costureiras e bordadeiras encontra-se preparada com agulhas circulares, tesouras, linhas, lãs e panos pronta, se por acaso queiram repetir esta festa religiosa quando nossa aldeia completar 90 anos, fato que se dará em 1966, que está a postos para costurar e bordar uma toalha de mesa de 60 metros ou mais, com bordados que retratem a nossa vida cultural, em monumentos, fauna e flora, o coreto, a matriz de Sant'Anna, a sede do Paço, o sobrado de Sêo Leobino, o palacete dos Nogueira, a igreja nova, a santa, o obelisco, bois, vacas, bodes, carneiros, codornas, porcos, aves e os cactos, as macambiras e os cansanções, produzindo uma toalha que tenho certeza pode ir para qualquer museu do mundo, uma vez que ainda não temos o nosso museu, somos um povo que não cultua sua memória, vai tudo se perdendo no tempo, e já se falou aqui da coletânea de poesias de Oscália sem encadernação, não há nada registrado sobre a Sericicultura que hoje abriga o Ginásio, nossa estação antiga do trem no modelo inglês não temos mais registro, ninguém sabe onde foram levados os sinos da gare, a usina de luz não temos sequer uma foto, o intendente Marianno Sylvio Ribeiro, o primeiro, ninguém conhece nem de pintura e isso é uma coisa absurda porque todo povo guarda e cultua sua história, porque sem história não há povo organizado, decente, e se alguns dos senhores e senhoras forem ao Rio de Janeiro e/ou São Paulo vão ao Museu Ipiranga e tem muita coisa do Império e o Palácio da Quitandinha de Petrópolis, então, meu caro Eliseu se V.Exa. souber de alguma manifestação que venha ocorrer nos nossos 90 anos de emancipação, quiçá o Messias pode aparecer, estamos de plantão para darmos o melhor e temos, entre nós, bordadeiras magníficas, dona Maninha Baraúna, Cecília Tricô de Ouro, Vania Dantas Mão de Fada, e costureiras do porte de dona Cordélia Mamoeiro, de dona Dadá Figueira e tantas são boas na linha e na Singer. É o que tinha a proferir.
Ouviram-se muitos aplausos e dona Teodora Bispo Ramos, da Liga Cultural Carnavalesca de Serra, arrazoou também umas palavrinhas e profetizou que em toda festa cristã tem que ter música, foguetes, folguedos, bolos, quermesses, e assim é em nossa aldeia na época de Sant'Anna e no Natal quando a praça fica toda enfeitada com barraquinhas de comidas e objetos de barros dos artesãos, tendas dos jogos de dados, então “colocaremos a LCCS para fazer um grande desfile, em 1966, e tenho certeza – reforçou as aspas - que o Messias, se vier, vai adorar”.
E os industrias também se manifestaram com a fala de Zeca Manjericão Cajarana o qual lembrou que a Indústria de Metais e Ferro Inox São Boaventura, sita no bairro do Cruzeiro, está apta a produzir os talheres, copos e pratos para o grande evento de 1966, se assim ocorrer, tudo inox, no estilo vintage europeu.
Percebendo que os apartes estavam sendo muitos e a noite poderia cair a qualquer momento operei a sineta com veemência e ponderei que chegara o momento dos oradores que ainda não se pronunciaram de proferir seus contos e Manjericão Cajarana pôs-se de acordo obtemperando que daria continuidade a sua fala e narraria o conto que segue: - Os magníficos senhores e senhoras que estão participando desta tertúlia em távola de sábios com suas narrativas espetaculares sabem que estamos adentrando em breve no ano de 1961 quando nossa aldeia vai, finalmente, alcançar o que os políticos daqui e de além mar chamam de ‘progresso’ essa palavrinha mágica que tanto usam ao lado de uma outra, o tal de ‘desenvolvimento’ com a instalação da energia elétrica em nossa aldeia, momento em que daremos adeus aos fifós, candeeiros, aladins, tochas, fogões a lenda e velas e vamos poder, finalmente modernizar nossas indústrias, a São Boaventura já está a encomendar na Alemanha uma máquina elétrica que produzirá nossos garfos e facas num piscar de olhos, e tenho certeza que a Fábrica de Cordas e Tapetes, também sita no Centro Industrial do Cruzeiro vai eletrificar suas trançadeiras; a Indústria Matos de Móveis aposentará sua traquitana de serrar toras manuais; a Indústria de Sorvetes do Gó igualmente produzirá os gelatos com batedeiras elétricas; a Fábrica de Sabão de Cerqueira e Cia produzirá barras em quantidade impressionante; e tantos são os exemplos que daria para ficar descrevendo por bom tempo todo nosso parque industrial, e esse ‘pogresso’ – desculpem falar dessa maneira mas é assim que o povo fala nas esquinas de nossa aldeia que “o pogresso está vindo”; “o pogresso vai chegar” graças as promessas de doutor fulano de tal, nosso alcaide que promete e faz; que promete e realiza, e se tivemos a presença do ‘desenvolvimento’ com a instalação da Estrada de Ferro, graças a dom Pedro II, agora teremos a luz com dom Carlos.
Fui forçado a badalar a sineta com veemência e pedir a Zeca que entrasse logo no seu conto e aproveito aqui para dar pequenos traços desse personagem, um homem agalegado, quase vermelho, em algumas rodas íntimas chamado de “pimentão” - apelido que detesta, pois, quando nas discussões sobre seu clube São Cristovão fica vermelho igual a um pimentão – é magro, ossudo, cabelo liso tipo espiga de milho, quase louro, olhos azuis e sobrancelhas que mais parecem bigodes sobre os olhos, tenho a impressão que pintadas de negro, o que dá um contraste com sua tez avermelhada bem estranha, e ademais, veste-se a caráter, com blazer azul, camisa alva e uma gravata borboleta estilosa, de igual cor do blazer.
- Bem, voltou a falar Manjericão Cajarana, peço a compreensão ao distinto mediador porque falar do ‘progresso’ ou ‘pogresso’ como diz o povo é muito bom e eu que nasci em nossa aldeia a luz de velas, puxado por uma parteira, estudei a luz de candeeiro e embora não tenha alisado os bancos de uma `Politécnica aqui muitos me consideram engenheiro, já estou entrando na velhices, e tenho certeza que o ‘progresso’ vai permitir que eu morra na luz elétrica, que algum dia, os futuros alcaides instalem uma estátua ou um busto de dom Pedro II, patrono da ferrovia, e já foi dito aqui que povo sem memória não existe; que se coloque também uma estátua do Pai Geza, que sem ele nossa aldeia nunca seria emancipada do Irará; e digo-vos que com a energia elétrica nossas indústrias vão conhecer o tal ‘desenvolvimento’ e meu conto é simples, presencial, de uma pessoa que convivi, mas Deus já levou para sua morada e se trata do amigo Josué Oitentinha Piaçava, homem urbano trabalhador que abriu sua primeira poupança na Caixa, em 1936, quando esta casa bancária se instalou em nossa aldeia, e o que dizem é que, até então, entre os anos 1910/1930, tudo o que amealhou de sobra pois era um homem econômico, solteiro, que gastava pouco em diversão, que não era de luxo, a casa em que vivia quase cai em sua cabeça, mas guardava os cobres em meias embaixo da cama e quando a Caixa abriu foi preciso duas carradas no jeep de Sêo Pebão para levar tudo para a poupança e isso só fez crescer nos anos seguintes e quando ele morreu a fortuna era, ao que se diz, de alguns milhões de cruzeiros, e como ele não pode levar para o céu ficou tudo ai, pois, sendo solteiro não tinha herdeiros.
Intervi: - Terminou sua oração ilustre Zeca?
- Sim, nobre mediador.
Só uma perguntinha para passar a palavra ao próximo: - Com quem ficou a herança.
- Aí está o grande mistério e essa é a pergunta que está na boca do povo desta aldeia e ninguém sabe nem a Caixa diz.
Moral da história: o tesouro de Sinhô sumiu com o vento; os milhões de Oitentinha dormem no templo. Portanto, quem gasta no momento certo alcança o reino dos céus.