Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, CAP 19: O PINTOR QUE PINTAVA COM A ROLA (TF)

O Homem Verde do Ginásio é o novo livro de Tasso Franco que está sendo publicado no www.wattpad.com
Tasso Franco ,  Salvador | 29/04/2024 às 10:26
Risca, em ilustração de Seramov
Foto: SERAMOV
   O PINTOR QUE PRODUZIA OBRAS DE ARTE COM A ROLA


  Prólogo: 

  Creio que já tínhamos passado das 3 horas da tarde. O ambiente na Taverna de Agripina - permita-me, também assim chamar - ficou mais fresco com o sol a caminho da Coruja local ao Sul da cidade em direção a Coité, onde o astro rei dorme e chega à noite, a sombra cobrindo alguns casarões da Barão e um contentamento enorme tomando conta dos convidados, a essa altura do encontro Cheiroso oferecendo uma rodada de refresco de groselhas, alguns contistas em paqueras sutis; outros pilheriando, todos admirados com as histórias até então narradas, acreditando-se ou não nelas. 

  Mas, é claro, o que vem do povo é sábio e verdadeiro. E eu, como mediador, não opinava sobre qual conto até então era o melhor embora tivesse minha preferência. Mantinha a imparcialidade, a discrição, e fazia apenas alguns comentários como fiz em relação aos boêmios que os conhecia a miúde, assim como prosava, eventualmente, com Cumbá, mas nunca ouvira falar no "Vermelho" do tridente, o “Pé-de-Botelho”, residente no bairro do Cruzeiro.

  Não poderia conhecer tudo. A cidade - só lembrando aos abnegados leitores estamos no início dos anos 1960 - crescera e muitas famílias da zona rural vieram morar na sede e outras provenientes de localidades vizinhas chegaram para aumentar a população.

  Feitas essas observações a quem nos lê, franqueei a palavra para nova locução e apresentou-se a representante da Associação das Meninas e Senhoras Alegres das Noites Serrinhenses - AMESANS - a empreendedora que muitos de nós já conhecíamos de ouvir falar, a popular Lia do Luar do Sertão, senhora belíssima, alva, com traços de polaca, seios volumosos com pequena parte à mostra na abertura de sua blusa de cetim ostentando um broche onde se via um besouro estilizado, imensos anéis vitrificados nos dedos, em destaque, num deles, no polegar, uma robusta esmeralda; colar de madrepérola no colo e argolas em aro emoldurando as orelhas. De estatura mediana começou a falar com voz firme, quase grossa e assim se apresentou:

  - Muitos dos senhores e senhoras me conhecem de más interpretações que correm na boca das faladeiras, fofoqueiras e fuxiqueiras que nesta cidade tem como as mangabas que brotam nos campos da Baunilha, diria, ademais, sem nominá-los, que nesta távola há dois clientes de nosso "dancing" que, solicito ao represente de "O Serrinhense" que escreva o nome correto do nosso templo "Cabaret Luar do Sertão", cabaré com t mudo, como se escreve em francês, pois, embora nem a Serrinha tenha o "status" de capital da França; nem nosso “dancing” se assemelha em grandeza e luxo ao "Moullin Rouge” - ainda que tenha sido inspirado nele - e se não temos um moinho na fachada colocamos um florido pé de mandacaru (planta sem espinhos), com destaque para a flor vermelha, que é nosso símbolo.

  Eu sou natural da localidade de São João Baptista da Água Fria e me chamo Cornélia Serafina Umbuzeiro Moura, nascida em 10, filha do roceiro Cornélio dos Umbús - daí vem meu Umbuzeiro no nome - e da senhora Serafina leiteira, “porque mãe foi a mais destacada tiradeira de leite da Água Fria" e migrei para a Serrinha na onda do trem, na conversa de que os trilhos traziam o progresso e a riqueza e a Serrinha que estava mais acima da minha querida São João Baptista, de quem era subordinada no século XIX, pelo menos na parte da Freguesia, tinha alcançado riqueza na comercialização da charque, do couro de boi, do fumo e do algodão, e aqui cheguei mocinha, nos anos finais do 1920, para trabalhar numa descaroçadeira de algodão no mercado municipal e me apeguei a esta terra, e também vi, enxerguei, que se continuasse só trabalhando de ajudante na lavoura não iria a lugar nenhum e coloquei uma tenda de comida e sucos, depois vendendo bebidas quentes com álcool e fui crescendo até que apareceu um homem na minha vida e me encaminhou na arte do sexo e só depois vim saber que ele era dono de uma casa de encontros na 15 de Janeiro e ele me pejou e quanto nossa filha Cléa Marcia nasceu me levou pra morar numa casa da rua Henrique de Menezes, com todo conforto, e manteve sua atividade no salão da noite e só me interessei por esse negócio quando Deus resolveu levá-lo para sua morada, de uma hora para outra, de um ataque no coração ao subir o Morro Guarani na Semana Santa, e tive que cuidar de minha tenda de comidas e bebidas que já tinha sido ampliada e organizei o salão, contratei o Trio Chão de Estrelas pra tocar nos finais de semana, e se não era um Tabaris, como na capital, ao menos imitava o Baile da Célia, também na Cidade da Bahia, que tive a oportunidade de conhecer quando lá visitei com meu querido Amadeu (se benzeu) e acrescentou "que Deus o tenha em sua honra e glória", quando ficamos hospedados no Hotel Paris e também visitamos a Pensão Americana, que era no São Bento de Baixo, e tinha muitas polacas e francesas que fugiram da guerra, fazendo vida e encantando as noites baianas, e nosso Luar do Sertão se transformou no "Cabaret", hoje, ainda vivo, porém enfrentando dificuldades, as meninas querendo se mudar para Feira e Salvador, para dias melhores, mas ainda tempos ótimas dançarinas, nosso pequeno corpo de “balet” é fantástico, e tocar como Canhoto, no violão; Aristeu na flauta e no sax; e Romeu na bateria; e mais Dorinha no vocal, não conheço músicos e cantora melhor.

   Nisso, Ivan Três Noites pediu um aparte e disse que concordava com a senhora Lia, uma vez que morando no Recreio, depois da Bomba e Coruja, ouvia, na porta de sua casa quando colocava uma cadeira para apreciar a lua, o som que emanava do “Luar do Sertão”, embora, nunca tenha ido por lá. "Sei da luta que a senhora enfrenta para manter essa casa de espetáculos em pé, funcionando, e se tem algumas senhoritas que se divertem em alcovas isso faz parte da vida desde os tempos antigos do Egito".

  Interrompi a interlocução e solicitei que fossem evitados novos apartes uma vez que a tarde avançava para abraçar a noite e ainda faltava muita gente para falar e, então, pedi a senhora Lia que narasse seu conto.

   - Com esse nome de Cornélia, que remete a uma rena galhuda, não deve sair coisa boa, comentou Francisco Secundo, o Chico Cabeleira.

  - Agradeço os apartes e o apelo do distinto jornalista, porém, repilo esse senhor que veio com pilhéria sobre meu nome, e creio que, se cornos existem estão escondidos debaixo da juba de leão de vossência, senhor Chico.

   Ouviram-se várias risadas e toquei a sineta: - Inicie seu conto digníssima senhora Cornélia, frise acenando a sineta com vigor.

   E assim ela seguiu, altiva, esguia, do alto do seu Luís XV: - A história que vou narrar imagino que alguns dos senhores já tenha ouvido falar, deu-se na virada do século XIX pro XX, quando a Serrinha - salvo engano - era governada pelo intendente Basílio Cordeiro e o que se diz é que havia nesta cidade, que há pouco tempo passara de vila para esse "status" e a Luís Nogueira ainda se chamava “Largo das Barrigudas”, árvores imensas, surgiu um homem jovem que riscava as paredes lisas de alguns muros, de sobrados e outros, com a rola (alguns convivas arreglaram os olhos e dona Zabelinha levou as mãos à boca em sinais de admiração), isso mesmo, peço aos senhores e senhoras que não se assustem, pois, embora não existam registros em gazetas desta aldeia, uma vez que Sêo Reginaldo Ribeiro só inaugurou o Jornal da Serrinha, em 1910, um senhor mais velho que frequenta a nossa casa me contou, e há testemunhas disso, que esse jovem se chamava Risovaldo ou Riscovaldo, acabou tendo o apelido dado pelo povo de "Risca pincel de ferro"; outros chamando de "Piroca de Aço" porque chegou a escrever um verso inteiro de poema no muro de Dr. Graciliano de Freitas, na Rua da Estação, do maranhense Gonçalves Dias segurando a "piroca" com uma das mãos e com outro tendo latas de tinha e ia, a cada passo lateral dado rente ao muro, molhando o pincel duro na tinta, e escrevendo sua obra que fala dos bosques floridos.

   Cornélia suspirou e prosseguiu: - A fama deste rapaz correu longe e foi levada a capital pelos trilhos do trem por um vendedor de charque que tinha  um cliente inglês morador do Corredor da Vitória, e este gringo, que era ligado a arte e cultura, esteve em Serrinha para conhecer o tal artista, o povo já o apelidando de "Risca" e há registros orais de que, certa ocasião, ao usar tanto a “trolha” na sua arte acabou ferindo-a e manchas de sangue foram vistas num muro da antigo Paço, e teria este moço procurado Sêo Trasybulo da Pharmácia para que cuidasse do seu “pincel”, o distinto atendido com presteza por uma auxiliar chamada Aurorinha, a qual, fez os devidos curativos e ficou admirada com o "ganso" do rapaz, a firmeza, a consistência, o alongar do pescoço da "jeba" e até hoje não se sabe se ela o usou para outros fins, mas o certo é que esse inglês que falava um português todo enrolado trouxe consigo umas telas de linho e disse ao tal do Risca que se ele fizesse algumas obras d'arte nas molduras, e se assim conseguisse poderia participar do Salão de Pintura da Cidade da Bahia, na Galeria 14, quiçá também em Londres, e o rapaz não se entusiasmou, mas, foi incentivado por Aurorinha que também funcionava como intérprete e incentivadora e disse a Mr Goffrey - assim era o nome do inglês - que conhecia a "careca de gola" do pintor e sendo rombuda não daria para fazer pinturas "naif" nem detalhistas, mas, poderia pintar paisagens do sertão, flores, cactus, morros, lagoinhas, e o gringo disse que se fossem belas seriam de bom proveito, mas, o importante, frisou era o "makerting" - pela primeira vez Aurorinha ouviu falar nesta palavra - o fato de que Mr Risovaldo pintar usando a "dick", um "brush" que era inédito, "the dove", "the dove" e tanto Aurorinha quanto Risca sem nada entender de inglês, mas, por suposição achando que era o pênis, "yés, the penis" - soletrou o inglês - consentiram e decidiram ir a campo para realizar tal missão, uma vez que Mr Goffrey não quis os acompanhar porque precisa pegar o noturno da “Chemin de Fer” e retornar a capital deixando seu endereço para que, assim que as obras estivessem prontas, passassem, um telegrama ou telégrafo para ele retornar à Serrinha.

   Cornélia tomou um gole de suco de groselha para concluir sua oração e assim obtemperou: - Reza a oralidade que a dupla aproveitou um domingo que era dia de folga de Aurorinha na Pharmácia e foi até o Açude da Bomba, construído para dar suportes as máquinas “Marias Fumaças” e munidos de latas de tintas e telas, “Risca” pintou belas paisagens, coloridas, tendo ao fundo o Morro Guarani, o Tamarineiro, os Treze, e criou de sua imaginação um pescador num barco verde pescando na Bomba, resultado extraordinário, telas belíssimas, produzidas com todo pela “careca de gola” do bendito pintor, objeto sensível que Aurorinha cuidou com toda dedicação, quer no ato de besuntar o “rolete” com as tintas de várias cores; quer na limpeza final e acomodação da mesma no seu devido lugar. Resumindo meu conto: - Digo-vos que Aurorinha entrou em contato com esse inglês pelo telégrafo da Leste, hoje, assim chamada nossa estrada de ferro, e ele esteve em Serrinha, pagou alguns mil reis ao pintor - o que teria sido em dólares - ela ficou com 10% do valor total e a Expo foi um tremendo sucesso, destacada, inclusive pelo "Imparcial", jornal muito famoso da capital, que prometeu deslocar um repórter a Serrinha para entrevistar o pintor.

                                                          ****

   E assim, Cornélia deu por encerrado seu conto, sendo aparteada por Chico Cabeleira, o qual quis saber que fim levou este pintor e se houve a Expo em Londres.

   - Que fim que “Risca” levou eu não sei dizer ao certo, mas, se fala que, já idoso, foi abrigado Casa de Caridade São Judas Tadeu; e não saberia dizer se houve a Expo em Londres.

   Nesse momento, o Dr Tamboatá, mui digno juiz pediu a palavra e disse que, por sua experiência e pelos casos que mediava no juizado, não se admirava de mais nada neste mundo, e destacou que a Sra Cornelia merecia todos os aplausos por ser uma empreendedora, uma mulher que também ajuda os menos favorecidos, mantenedora que é de uma creche na Coruja, e não admitia galhofas contra sua pessoa, uma vez que a sociedade é constituída por múltipalas personalidades e não existe um lugar onde só residem e atuam juízes, ou dentistas, ou marceneiros, por isso é que há de tudo, do varredor de rua ao médico, do alfaiate ao funileiro, e desejo também louvar esse inaudito pintor, e aqui temos, outros seres estranhos como Anízio do Sax de Papelão. Gaúcho que conta dinheiro de papel na porta da igreja Matriz, e até um homem que se veste de mulher e sai pelas ruas a flanar e mal nenhum causa a uma formiga, e se chama Silvinha quando é Silvio.

                                               ***