Cultura

DARZÉ GALERIA: TEXTO DE TARCÍSIO ALMEIDA SOBRE GUILHERME ALMEIDA

Ao entender a pintura como uma ilha de edição, onde recortes de noticiários e fotografias são elementos predominantes, o artista repete estratégias de montagem para projetar sua prática compositiva
Tarcisio Almeida , Salvador | 24/04/2024 às 13:40
Guilherme Almeida
Foto: REP

  "Há alguma maneira de ser intelectual que não seja social? Quando penso no modo como estávamos usando o termo ‘estudo’, penso que estávamos comprometidos com a ideia de que estudo é o que você faz com outras pessoas. É falar e deambular por aí com elas, trabalhar, dançar, sofrer, alguma convergência irredutível dessas três ações, todas reunidas pela ideia de prática especulativa. A noção de um ensaio – de estar em uma espécie de ateliê, tocar em uma banda, numa sessão de improvisação, uns velhos sentados na varanda, pessoas trabalhando juntas na fábrica –, há vários modos de atividade por aí. Chamá-los de ‘estudo’ serve para marcar o fato de que a incessante e irreversível intelectualidade dessas atividades já está lá desde sempre. Essas atividades não são enobrecidas pelo fato de que nós agora dizemos ‘ah, se você fez essas coisas de certa maneira, pode-se dizer que você estava estudando’. Fazer essas coisas é se envolver com um tipo de prática intelectual comum. O importante é reconhecer que tem sido assim desde sempre – porque o reconhecimento permite acessar toda uma variada história alternativa do pensamento"
(Stefano Harney e Fred Moten - Estudando por meio dos subcomuns, 2012)
        
São muitas cenas sugeridas aqui: Em algumas delas, é possível perceber as personagens em uma intimidade profunda com a paisagem; em outras, o lugar coletivo ora anuncia um sentido de multidão, ora celebra um fazer conjunto, seja por meio do ritual ou das festas. Existem cenas onde o olhar difuso das personagens se mescla a outros corpos, fazendo da massa de tinta a protagonista. Pontos dourados ganham destaque, revelando joalherias e brasões em posições de abundância. Há também as personagens que aparecem em primeiro plano, posando para o artista que exalta seu prazer. Duas moças negras trançam o cabelo de uma senhora que também está trançando o cabelo de outra jovem mulher. Ela apresenta um saber que vai e volta, em um ciclo interminável, o mais velho ensina, o mais novo aprende e dialoga junto ao mais velho, repete Guilherme Almeida.

Nesse jogo de sobreposições "aparentemente" cotidianas, as flores presentes nos balaios, vasos e jarros emergem como testemunhas de um traço comum a todas elas; um fazer permeado de performatividade e destreza que remonta historicidades inscritas no próprio corpo. Aquilo que é "aparente", por sua vez, merece um pouco mais de repouso, pois se adentrarmos neste delicado limiar entre o pigmento e o suporte, perceberemos que aí habita a criação de uma refinada estratégia de sobrevivência e transmissão. Em outros termos é como se pudéssemos dizer "tocar é escrever", "trançar é filosofar", "cozinhar é ensinar". E é sobre eles, os arcabouços intelectuais de matriz africana presentes nos cotidianos e nas práticas sociais de Salvador, que Almeida mira sua astúcia.

Estes gestos encarnados, onde o corpo se torna o fio condutor, encontram sua máxima no pensamento de Leda Maria Martins que repete de diferentes maneiras: o corpo é a tela onde se inscrevem as marcas da história. O corpo - esse conjunto de formas e forças - é apresentado não mais como um simples instrumento físico, mas como um campo onde se abrigam memórias e saberes que se entrelaçam com sua própria singularidade. 

Cada movimento, cada momento compartilhado se transforma em um timbre onde a pele se sobrepõe à base, e o ato de transmitir e ensinar são as linhas cromáticas de uma celebração sempre tecida e desejada. Minha hipótese é a de que o corpo em performance é, não apenas, expressão ou representação de uma ação [...], mas principalmente local de inscrição de conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia [...] nesse sentido o que no corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, reforça a pensadora ao refletir sobre as ritualidades afro-brasileiras."
    
Essa repetição rítmica, fruto da incorporação de múltiplos tempos, é o mesmo que carrega o caráter ingovernável e contraventor destes gestos de sociabilidade. É através do toque e na busca por uma certa filosofia do toque, parafraseando Harney e Moten (Hapticality, or love), que nós tocamos. Expressões pictóricas se aproximam aqui de uma textualidade pelo toque.  

A hapticalidade é o que rege o espaço-tempo de forma a manifestar traços que fluem de cada uma dessas experiências, cada uma desafiando a contenção por meio de uma composição de gestos, materiais, afetos e intensidades. E para co-habitarmos essa dimensão do toque, não mais como espaço abandonado, será preciso considerarmos que aquilo que está quebrado permanecerá quebrado e que não poderá ser reparado. E é preciso amor contra a ‘logisticality’ que gerencia as subjetividades e o conhecimento, tramamos nossas pequenas e dispersivas revoluções cotidianas, nós, os embarcados, nos lembram os filósofos. Esse mesmo toque, legado da brutalidade histórica, é agora a própria tática não prevista na escrita dos textos oficiais. E é sob ele, desde ele, que passam a coexistir movimentos de dissonância, ruído, trepidação, desorientação, fugitividade, despossessão…

Os autores também nos falam da hapticalidade como uma capacidade de sentir com/pelo outro, por meio da pele. Nos dizem de uma solidariedade comum: uma sensação de sentir os outros sentindo você. Um sentimento que não pode ser sentido individualmente, mas nem coletivamente como algo homogêneo. Uma sensação que não pode ser fixada em um território, estado, nação, história ou instituição. 

Esses traços aqui tamborilando em uma textura brilhante feita por sorrisos astutos e dourados podem também ser lidos pela sua insurgência tátil embora negados aos afetos, à história e ao lar, sentimo-nos (por) uns nos outros. Ser tocado é tocar na linguagem, tocar a oscilação e a alternância eternas. Nesse contexto, a prática artística se torna um ato de reificação, uma forma de documento pautado na auscultação, fusão e dissolução do sujeito e do objeto, gestos amplamente experimentados nesse modo de saber.
 
As formas sintetizadas nesse conjunto de pinturas, as primeiras da série Desfrutar o Tambor, anunciam também uma condução implicada e aplicada sobre a própria ideia de técnica. Aqui, as técnicas comumente associadas a um modo de fazer e registrar, não se restringem aos regimes da mimese, ou seja, de uma repetição pelo mesmo, mas sim como uma forma generativa de diferenças fazendo do ato de tocar, comer, trançar, celebrar, cultuar um gesto de estudo constante. 

As expressões e momentos editados pelo artista não se limitam apenas à visualidade, pois podem ser estendidos aos domínios do que é sensível e não são facilmente descritos pelos campos da linguagem formal. Desse lugar, os procedimentos de trabalho que Guilherme Almeida elabora se entrecruzam, indo desde a recuperação de momentos históricos decisivos para o território baiano protagonizados pelas Comunidades Negras até a presença de um arquivo pessoal de memórias que contam da sua participação nestes espaços culturais, pedagógicos e familiares. 

Ao entender a pintura como uma ilha de edição, onde recortes de noticiários e fotografias são elementos predominantes, o artista repete estratégias de montagem para projetar sua prática compositiva. O uso dos jornais como suporte atesta essa "vida das coisas", tensionando um desejo por expandir o lugar da pintura ao mesmo tempo que, de modo ativo, passam a inserir novas camadas de sentido no que está sendo veiculado. E é preciso ter coragem para afirmar alto que podemos repetir as coisas nos rememora a voz de Édouard Glissant, penso que a repetição é uma das formas de conhecimento do nosso mundo; é repetindo que começamos a ver os indícios de uma novidade que começa a aparecer.

Nesse sistema, nada passa despercebido. O contraste entre as cores brilhantes e opacas, os rostos sugeridos e o ângulo altivo das figuras reforçam aquilo que Mestre Pastinha já parece ter nos ensinado: um compromisso geracional, no qual o artista se inscreve, ao entender a pintura como um processo de documentação de contextos, comunidades, histórias e ancestralidades. Esse desfrutar sonoro que encontramos diz também sobre a audácia do prazer como prática ética ao advogar a favor de um corpo (singular e coletivo) que sabe e sente.