Depoimentos e documentos de duas autoridades que viveram os conflitos da Bahia 1822/1823
Evidente que todos os outros trabalhos são expressivos uma vez que a história é um mosaico e quanto mais informações se tem melhor ou se aproxima mais da realidade. O volume 5 (Recordações Patrióticas) é especial exatamente por conter documentos reveladores dos bastidores do conflito, sem loas às partes, quer seja em exaltações exageradas sobre feitos que não aconteceram nos conflitos, mas que seguem na historiografia como se tivessem sidos relevantes, como um tal toque de avançar do corneteiro Lopes e uma senhora que lutava em Itaparica com folhas de cansanção para combater soldados portugues armados com mosquetões.
O volume 5 traz documentos que circularam oficialmente e alguns deles tratam de um dos temas pouco abordados pelos historiadores - a ecomonia.
Ou seja, como o Recôncavo se virou para manter um conflito durante tanto tempo, sem recursos oficiais, se valendo do poder econômico dos produtores de açúcar e seus engenhos, e na base do confisco de ouro e jóias preciosas, de metais para produzir armas e de empréstimos, de doações e compra de gado e feijão, na confeção das armas e fardas e assim por diante.
São fatos históricos incontestáveis e narrados por quem esteve no olho do furacão dos conflitos - o advogado Antônio Pereira Rebouças e Miguel Calmon Du Pin e Almeida - os quais embora não atuassem nas frentes de combates propriamente ditas e estas foram poucas - iutegravam a junta governativa na Vila de Cachoeira que atuava com autoridade para manter a tropa de pé, alimentada, com soldo em dia para os batalhões oficiais, e fornecer armas e munições.
Isso, nas frentes de combates de Pirajá, Brotas e Itapuã; na defesa de Itaparica e no fornecimento de viveres e outros para a Esquadra de Lord Crochane estacionada em Morro de São Paulo. Dom Pedro I contratou o almirante e montou a esquadra brasis, mas a manutenção ficou por conta dos baianos.
O conflito, portanto, não se limitou a estratégias militares e ao cerco de Itaparica. E, ao contrário do que asseugram alguns historiadores mais apressados dando conta de que o cerco a ilha foi uma estratégia para impedir o abastecimento das tropas de Madeira de Melo estacionadas em Salvador e da esquadra portuguesa comandada por João Félix, foi também (e até mais) uma ação dos portugueses para impedir o abastecimento da armada comandada por Crochane, almirante que foi contratado por dom Pedro I, precursor da nascente Marinha do Brasil.
Ou seja, o ataque da marinha portuguesa a Itaparica, em janeiro de 1823, em especial, teve essas duas mãos. E se o almirante Félix não se apoderou da ilha é porque houve uma forte resistência armada. Ademais, há dúvidas, se Félix queria, de fato, ocupar Itaparica com tropas de desembarque, ou se suas investidas eram apenas para evitar o abastecimento da marinha de Crochane.
O que aconteceu, na realidade, é que Crochane nunca atacou a esquadra portuguesa estacionada em Salvador; nem Felix foi até Morro de São Paulo destruir a marinha nascente do Brasil. Ou porque Crochane não tinha forças suficientes para atacar Félix; ou porque Félix não tivesse interesse estratégico de avançar até Morro de São Paulo, desguarnecendo Salvador.
No dia 14 de março de 1823, na sala de Sessões da Vila de Cachoeira, o Conselho interino ordenou que de "ora em diante nenhuma pessoa possa sair de qualquer porto e alguns daqueles dois fins, sem que, além do passaporte deste Conselho com que por aquela indicada portaria deve estar munido, obtenha do juiz territorial do lugar onde carregar os ditos gêneros uma guia em que se declarem o nome do lugar, de onde sai, e daquele aonde se dirige".
Vale observar que, a aclamção da Regência do príncipe Dom Pedro, precursora da independência do Brasil deu-se no dia 25 de junho de 1822, dois meses e dias antes do grito do Ipiranga, 7 de setembro de 1822, quando surge o Império.
E assim narra Rebouças: "Seria 3 horas da madrugada do designado dia 25, quando foi o advogado Rebouças avisado da parte do coronel José Garcia Pacheco de estar à sua disposição na casa do major Arnizaud, o do seu regimento, ao largo do Hospital de São João de Deus, junto ao chafariz. Ali chegando, mostrou-le o coronel uma proclamçaão, que trazia escrita por seu capelão o patriota padre José Marcelino de Carvalho () ... Em seguimtno, segundo seu plano de proceder com a maior solenidade escreveu e foi assinado pelo coronel José Garcia Pacheco, em 1º lugar, um ofício ao Dr Juiz de Fora, Antonio de Cerqueira Lima, presidente da Câmara Municipal, para fazê-la reunir e estar presente na sala de sessões às 9h da manhã, e solenizar-se a aclamção de sua Alteza Real, Dom Pedro de Alcântara.
Seriam 9 horas da manhã, quando foram bem-vindos de Belém com o coronel José Garcia Pacheco e o ten-coronel Rodrigo Antônio Falcão Brandão, o capitão José Gomes Moncorvo, Manoel Ferraz da Mota Pedreira, um dos ajudantes do regimento de cavalaria, frei Mavignier, religioso franciscano, o alferes José Garcia Cavalcanti e alguns outros patriotas, proprietários e lavradores estabelecidos no distrito de Iguape.
Achava-se o advogado Rebouças marcialmente armado de uma espada, que lhe havia emprestado o patriota seu amigo e vizinho, Ignácio Ferreira Lisboa, que estava armado com pistola de cinto () ... a Câmara aclamou a Regência do Reino do Brasil na pessoa do principe D. Pedro d'Alcântara e foi lavrada e assinada a ata da aclamação e passou-se da casa da Câmara à igreja paroquial para assistir o Te Deum orando o vigário colado da Freguesia de Santo Estevão () ... Concluido o ato religioso desfilou a tropa.
Na manhã do dia 26, na casa do padre Navarro, ao largo do hospital São João de Deus, se decidiu que fosse criado um governo e por indicação de Rebouças, que teria a designação de "Junta Interina Conciliatória de Defesa". Foram eleitos presidente Antonio de Freitas Teixeira Barbosa vereador e abastado negociante; secretário Antônio Rebouças; e vogais o patriota José Paes Cardoso da Silva; Manoel José de Freitas ; e o capitão das ordenanças Antonio José Alves Bastos, estes dois últimos naturais de Portugal.
Essa Junta, posteriormente, passou a se denominar Comissão de Administração da Caixa Militar até que, em 6 de setembro, foi eleito um Conselho Interino de Governo da Provincia da Bahia, no salão do Hospital João de Deus, tendo como presidente Francisco Elesbão Pires de Carvalho e Albuquerque, deputado pela vila de Santo Amaro; secretário Francisco Gomes Brandão Montezuma, deputado pela vila de Cachoeira; Antonio José Duarte de Araujo Gondim, deputado pela vila de São Francisco Sergipe do Conde; Manuel da Silva e Souza Coimbra, deputado pela vila de Maragogipe; Manoel Gonçalves Maia Bittencoutr, deputado pela Vila de Jaguaripe; e Manoel José de Freitas, depuado pela vila de Pedra Branca. Miguel Calmon Du Pin e Almeida substituiu, posteriormente, a Montezuma.
Esses homens, considerados os mais importantes para manter o conflito em andamento e sustentar as tropas, na atualidade são esquecidos nas comemorações ao 2 de Julho que se transformou muma festa folclorizada.
Observe, ainda, que a Bahia, nessa época tinha uma Junta Governativa (também chamada de patriitica e fiel a Pedro, em Cachoeira) e uma Junta Governativa oficial, instalada em Salvador, fiel a dom João VI que era o rei de Portugal, do Brasil e Algarves. Mesmo depois do 7 de setembro, quando instla-se o Imperio do Brasil com Dom Pedro I, a Junta de Salvador continuou existindo fiel a Dom João VI, até 2 de julho de 1823.
Veja cópia da mcircular número 10 assinada pelos membros do Conselho em 28 de abril de 1823: "Havendo chegado felizmente à barra da Bahia a esquadra de Sua Majestade Imperial comandada pelo primeiro almirante Lord Crochane, que vem se unir às nossas forças e auxiliar o nosso Exército para repelir da cidade as tropas lusitanas que a orpimem ()...convém para manutenção da referida esquadra encarregar José Joaquim Muniz e a José Maria de Pina e Melo, não só promoverem na vila de São Francisco com a maior eficácia, energia e brevidade possível um donativo de criações em grosso e miúdo, como sejam de capados, leitões, carneiros, galinhas e frangos, como também fazerem depósitos nos seus engenhos de tudo o que arrecadarem".
Já na portaria de 28 de abril lê-se: "Sendo urgente e notória a falta de fundos públicos e dinheiros provenientes das rendas nacionais no momento em que vão pesar sobre o Tesouro Provincial as extraordinárias despesas da recémn-chegada Esquadra Nacional e Imperial comandada Excelentissimo Senhor Primeiro-Almirante Lord Crochane, além da ordinária e crescente despesa de um Exército já numeroso e, cumprindo lançar-se mão de um meio profícuo e compatível com o sistema políticvo e financeiro do Império, qual seja, a abertura de um empréstimo () contraido em ações de cem mil réis, com prêmio de 0,5% ao mês".
Mais adiante, em 8 de maio, o Conselho informa que buscando todos os meios necessários para manter a giuerra, há a "forçosa obrigação de ocorrermos à despesa de mais de quarenta contos por mês, a minguada existência da Tesouraria Geral de nossas tropas, onde se acha depositado todo o dinheiro aplicável aos soldos do Exército, a falta de fundos do erário da província () acrescente-se a penúria geral a que se vai reduzindo esta provincia, onde as fontes de riqueza pública e privada se acham há perto de um ano absolutamente estancadas e por essa causa o nenhum fruto que agora colhemos das derramas, donativos e empréstimos que, aliás, por dez meses, graças ao patriotismo baiano, escoaram o crédito público e forneceram o indispensável para a manutenção dos nossos guerreiros".
Bem, essa situação, é bom lembrar, também acontecia do outro lado do "front". Isto é, Madeira de Melo tinha enorme dificuldade em manter suas forças - exército e marinha - alimentada e com soldo em dia, o que dependia de Dom João VI e da Corte em Lisboa. Os dados dos perrengues que Madeira sofreu são em boa parte desconhecidos salvo os reforços oficiais enviados de Lisboa. Quando essa fonte secou, Madeira acumulou viveres suficientes para atravessar o Atlântico de volta para Portugal, o que aconteceu no dia 2 de Julho. O Exército Pacificador só entrou na capital baiana no dia 2 de Julho, um exercito em trapos, depois de confirmada a fuga de Madeira.
A segunda parte deste livro 5 contem o relatório dos trabalhos do Conselho enviado a dom PedroI por Miguel Calmon Du Pin e Almeida e há dados valiosos sobre o conflito. Como por exemplo: "Nos 8 meses do conflito foram fornecidos ao Exército e aos pontos de defesa 251.385 cartuchos de espingardas, 193 quintais e 18 libras de pólvora, 80 quintais, 2 arrobas e 26 libras de ferro, 579 balas de artilharia, 679 lanternas () 4.579 calças, 1.605 fardas prontas; 2.002 pares de sapatos, 1548 camisas () de 1 de outubro a 20 de maio foram consumidas 11.602 cabeças de gado - provenientes de 4.196 donativos voluntários; 4.905 de compra e 2.501 de empréstimos; 3.735 quartas de feijão; 5.671 de arroz; 3.903 de milho. O relatório é detalhado e contém, inúmeras informações o que mostra a complexidade que foi o conflito na guerra de cerco.
Combates, mesmo, foram poucos. Num conflito de 8 meses e com envolvimento de tanta gente, estima-se algo em torno de 16 mil homens em armas dos dois lados e só morreram entre 300 a 360 atesta-se que foi um conflito predominante de cerco e trincheiras.