Cultura

O ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA, 30:O POETA DO TIJOLO E A INDEPENDÊNCIA

Ataide Gusmão poeta nascido e criado na rua do Tijolo, centro histórico de Salvador, e as comemorações dos 200 anos da independência da Bahia
Tasso Franco , Salvador | 19/11/2023 às 09:50
O dragão e Catarina Paraguaçu nos 200 anos da independência da Bahia
Foto: BJÁ
  Ataíde Gusmão, o poeta do tijolo assim chamado porque seus versos são uma tijolada na sociedade, reside desde o nascer na rua do Tijolo, centro antigo de Salvador da Bahia, vestiu o seu melhor em linho branco, sapatos e meias igualmente cores de neve, gravata azul clara, a comenda de comendador espetada na altura do bolso esquerdo do terno para ir aos festejos ao 2 de julho, comemorativos dos 200 anos da Independência da Bahia

  É - como se diz - um amante da pátria e tem versos próprios sobre esta efeméride, e sempre que participa do cortejo alusivo à esta manifestação popular e ouve os clarins a tocar numa sacada de um casarão do Pelourinho, é o primeiro a pôr a mão direita sobre o peito e recitar a estrofe de Titara e Barrêto, "com tiranos não combinam, brasileiros, brasileiros, corações"

  E no 2023, evocativo dos 200 anos das lutas em Pirajá e Itaparica, da libertação da Bahia, o sol brilhando a brasileiro, Ataíde tomou rumo cedo em direção à Lapinha, uma distância de cinco quilômetros que faria a pé até o panteão e depois, hasteadas as bandeiras da Bahia e do Brasil e feitos os discursos das autoridades, acompanharia os carros da cabocla e do caboclo, esses sim, os verdadeiros heróis da pátria, o culto da raça, o brio, a altivez, a luta, até o Terreiro de Jesus

  Resoluto, altaneiro, passou na Cantina da Lua onde tomou um reforçado café da manhã, benzeu-se em frente à igreja de São Pedro dos Clérigos e iniciou sua jornada pela Alfredo de Brito, Maciel de Baixo até o largo do Pelourinho onde parou um pouco, respirou fundo, viu quanto sua querida Salvador era bela, as torres das igrejas do Passo, do Rosário e do Carmo a encher seus olhos de orgulho e, de sua lavra, recitou intimamente: - Salvador és bela como Afrodite/Luz divina abençoada pelo Senhor/Mãe rainha do Brasil varonil/Amo-te minha cidade da Bahia

  Astuciou à sua volta que já havia muita gente na praça e os irmãos da confraria dos homens pretos do Rosário estavam chegando ao templo para reverenciar o cortejo, o povo subia e descia, freiras em grupo do Pará e do Piauí eram ciceroneadas, e tudo observou seguindo em frente para subir a ladeirinha do Carmo e avançar até a Cruz do Pascoal, etapa mais árdua, enladeirada, pedras roliças a vencer, e sentiu os pés a arder como brasas ao chegar ao Boqueirão 

  - Diabos, pensou consigo, vou sentar um pouco nos batentes do templo do Boqueirão para aliviar as dores. E assim o fez, resignado, porém, altivo, postura ereta mesmo sentado, como lhe recomendava sua fisioterapeuta Talita, tenho o cuidado de colocar o lenço alvo no batente para não manchar os fundilhos da sua calça 

  Brava gente, brasileira, o poeta solicitou de um vendedor de latinhas uma gelada para amenizar o calor e lá se foi a puro malte de sabor delicioso, a que apreciava, caindo-lhe muito bem 

  Em seguida, levantou-se, verificou se o terno estava com algum amasso, sentiu uns pingos de suor na camisa, ajeitou-se o quanto pode e seguiu em frente 

  Ao descer a ladeira encontrou-se com Dalva, a quituteira da Ignácio Acciolli, antiga rua do Bispo, quase sua vizinha e amiga de lambanças no Tijolo e arredores, mulher faceira, estabelecida na esquina a vender bolinhos de estudante, passarinha, abarás, acarajés e cocadas, e se derramou em elogios: - Eis a autêntica Bahia à minha vista, a mais bela baiana desta cidade com seus colares e contas, com seu torço, com seus olhos cor de mel a nos encantar, assim saudou a amiga

  Foram momentos encantadores. Os dois trocando beijos e abraços, discretos, mas, de uma sinceridade, de um amor puro e eterno 

  - Sinto deixá-la, mas vou a Lapinha e volto com os caboclos ainda a lhe ver, comentou com Dalva. - Apresse os pés meu poeta do coração pois o tempo urge e a essa altura, dez horas marcam no meu relógio, os caboclos estão a caminho a passar da Soledade. - Não me diga, então, estou indo minha querida, despediu-se afobado

  Na esquina dos Perdões tomou outra gelada. As dores nos pés aumentaram. - Maldito sapatos, não os calços há bom tempo, faz-me calos. Mas, ainda assim, já mancando, seguiu adiante

  Ao chegar no Baluarte ouviu um grito estridente a evocar seu nome "grande poeta do tijolo" e quando levantou as vistas percebeu que era o Lapa, velho colega do Liceu Salesiano, que, latinha em mãos, bebia com um pequeno grupo de amigos num bar estilo "pé sujo" numa algazarra típica do evento cívico a saudar os heróis da independência 

  Cumprimentos afetivos se deram, Lapa o apresentou ao grupo elogiando-o como o vate mais relevante da Bahia, o que lhe encheu de orgulho, e o poeta apertou a mão de cada um deles recebendo também elogios por sua elegância e sentido cívico ao expor sua comenda no peito 

  Ergueram as latinhas em brindes demorados. Em pé sujo, caro leitor, não se vão às taças e sim as latinhas, aos torresmos, as coxinhas e aos pernis, e neste que vos falo, do Pepe, havia um pernil de presunto de dar água na boca, quando se ouviram sons de clarins e surgiram na boca da rua os homens do batalhão Quebra Ferro a puxar o carro da Cabocla, homenagem a mãe do Brasil, Catarina Paraguaçu, a célebre tupinambá brasileira, e Gusmão mudou o semblante, pediu aos amigos que preparassem as palmas e os vivas

  Sim, entre esse aviso aos amigos e a passagem do carro, já se via o segundo carro, o do Caboclo, a representação da miscigenação baiana entre o tupinambá e o negro, os homens que lutaram pela independência, Gusmão retirou um robusto Danneman do bolso, colocou na boca e acendeu-o usando um isqueiro niquelado de chama alta, baforou Lapa e os novos amigos e, quando o carro da Cabocla se aproximou despediu-se da turma e colou na lateral onde se via um dragão e a adorada Catarina, a imagem de Labatut e pontas de baionetas. e laçou uma dezena de baforadas em direção a cabocla, a cada momento, chamando-a de minha rainha e mãe do Brasil

  E assim seguiu entre um carro e o outro, ora saudando a cabocla; ora fazendo o mesmo com o caboclo, já completamente suado, concentrado, sério, soltando vivas e pedindo que o povo também fizesse o mesmo, a essa altura sem dores nos pés, subiu a ladeira do Boqueirão como se fosse uma criança a brincar de picula em pátio escolar, o robusto vencido ao meio, mas ainda dando para soltar baforadas em círculos

  Avançou bravamente pelo corredor do Carmo e quando o cortejo se aproximou da baixa do Taboão e subida da Ladeira do Pelourinho sentiu uma vontade imensa de urinar, "droga, maldita cerveja, isso é hora de fazer efeito", imaginou consigo e, nesse momento, deu-se algo divino que só os céus sabem explicar, caiu um toró desses aguaceiros de parar as filarmônicas porque entram água pela tubas e pelas bocas dos saxofones, os homens do batalhão Quebra Ferro, alguns deles também já tinham experimentado uma pinga forte gritavam palavras de ordem e os carros depois que pararam no portal da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos onde receberam homenagens e guirlandas de flores, subiram a ladeira ao ranger dos eixos

  Nosso poeta, ainda altivo, altaneiro, todo molhado pela chuva, aproveitou a glória divina e, aos poucos, a cada passo, foi soltando rajadinhas de urina pelas calças, se aliviando de todo já a altura da Casa Fundação de Jorge Amado estava com a veste e a alma lavadas, dando vivas e com o robusto finalizado

  Jornada cívica a entrar nos anais da história, os carros chegaram ao Terreiro de Jesus onde os jesuítas descansavam na relva no século XVI, os sinos da catedral da Sé tocaram os bronzes quando os carros passaram em frente ao tempo inaciano,  o poeta Gusmão sem perder a fibra, ensopado, é verdade, a comenda meio caída na lapela, a seguir até a Praça Municipal onde os homens do Quebra Ferro estacionaram os carros dando por finalizado o cortejo na parte da manhã, evento que se seguiu à tarde, até o Campo Grande

  O poeta correu para sua casa tomou um banho quente, devorou um ensopadinho de carneiro que sua esposa organizara, trocou-se para um branco despojado com bata no estilo senegalês, passou em Agnaldo Calça Curta, comprou mais um robusto e dois dona Flor, andou até a Cantina onde adquiriu duas malzebiers e foi acompanhar os carros no trajeto da tarde pela Chile, São Bento, Relógio, Piedade, Mercês e Campo Grande onde os carros ficaram estacionados uma semana e receberam as homenagens do povo, na praça 2 de Julho, onde há o monumento ao caboclo da Bahia

  Gusmão, já usando um sapato tipo mocassin, folgado, dançou a valer no baile da praça do Caboclo ao com da Orquestra do maestro Fred Dantas e na volta dos carros à Lapinha, ei-lo, com os charutos a baforar os caboclos e as cervejas escuras a oferecer-lhes 

  E, eu, que acompanhei, toda essa trajetória, porque sou o Andarilho da Cidade da Bahia, curioso que sou, lhe perguntei: - Por que dás tantas baforadas nas imagens dos caboclos e lhes oferece Malzebier, se Catarina, a cabocla, é do século XVI e nem charutos havia na Bahia e a guerra aconteceu no século XIX quando não se vendia cerveja, ele me respondeu: - Os caboclos gostam de charuto, adoram o fumo do Recôncavo, pois, foram eles que, plantaram os campos de São Félix e da Cachoeira, e também adoram cerveja escura, se tinha ou não tinha naquela época, pouco importa. O povo acha que tinha. E eu sou o povo.