Cultura

LISBOA, CAP 11: A CASA MUSEU DE FERNANDO PESSOA REÚNE TODA A SUA OBRA

Você está acompanhando o 11º capitulo do nosso livro Lisboa, a bota maldita, o surdo e a ladra
Tasso Franco ,  Salvador | 04/05/2022 às 03:44
TF na casa museu em frente ao famoso quadro de Almada
Foto: TF

 No terceiro dia da viagem o turista deixou a cama de madrugada para ir ao banheiro e encontrou a neta Luna na janela do flat observando uma balada que ocorria numa travessa da Praça Dom Luis I. Pediu que fosse dormir pois ao dia que viria à frente estaria de pé, cedo, para uma jornada até o bairro Campo do Ourique, iniciando a primeira visita na casa onde residiu Fernando Pessoa, hoje, um museu na Rua Coelho Neto. Ela não lhe deu muita atenção e seguiu na janela.

  O turista acordou com as galinhas portuguesas às 11 horas e pôs-se a trabalhar atualizando o BahiaJá. As meninas levantaram quando os ponteiros do relógio já passavam do meio dia. Com meus botões indaguei se o bairro localizado na região centro de Lisboa teria alguma ligação com a lenda que surgiu no século XV do Milagre de Ourique, segundo a qual, antes da batalha contra os mouros, Cristo teria surgido a D. Afonso Henriques e teria dito IN HOC SIGNO VINCES (do latim, «Com este sinal vencerás!»), assegurando-lhe a vitória e a proteção futura do reino.

  Esta lenda surgiu em 1485 (três séculos após a batalha), quando Vasco Fernandes de Lucena, embaixador de D. João II enviado ao papa Inocêncio VIII, incluiu no relato da Batalha de Ourique o aparecimento de Cristo. No século XVII, o frade alcobacense Bernardo de Brito reelaborou a lenda pormenorizando-a e reforçando a sua importância. 

  A partir do século XIX a lenda foi posta em causa, primeiro por Herculano e posteriormente pela moderna historiografia.

 Para Alexandre Herculano, “Discutir todas as fábulas que se prendem à jornada de Ourique fora [seria] processo infinito. A da aparição de Cristo ao príncipe antes da batalha estriba-se em um documento tão mal forjado que o menos instruído aluno de diplomática o rejeitará como falso ao primeiro aspecto”.

 Já para Camilo Castelo Branco, sem crispações e com alguma ironia, Ourique e o seu poder taumatúrgico não eram mais do que uma pia tradição, mas a sua posição diferia da estritamente científica de Herculano. Enquanto Herculano considerou o “milagre absurdo e inútil do aparecimento do Cristo”, Camilo afirmava que talvez fosse absurdo, porque historicamente infundado, mas não inútil, porque era funcional, “querido do povo, sempre apaixonado pelo maravilhoso”, pertencendo à sua “herança de crenças” e, em suma, entrando no paradigma dos grandes mitos das nações, como o da “passagem do mar vermelho” ou o da “voz do Eterno no alto do Sinai”.

  Conta-se, ademais, que um pouco antes da Batalha de Ourique, D. Afonso Henriques foi visitado por um velho homem, que o rei acreditava já ter visto em sonhos.

   O homem fez-lhe uma revelação profética da vitória. Disse-lhe também para, na noite seguinte, sair do acampamento sozinho, logo que ouvisse a sineta da ermida onde o velho vivia. O rei assim fez.

   Foi então que um raio de luz iluminou tudo em seu redor, deixando-o distinguir, aos poucos, o Sinal da Cruz e Jesus Cristo crucificado. Emocionado, ajoelhou-se e ouviu a voz do Senhor, que lhe prometeu a vitória naquela e noutras contendas. No dia seguinte, D. Afonso Henriques venceu a batalha.

  Conforme reza a lenda, D. Afonso Henriques decidiu então que a bandeira portuguesa passaria a ter cinco escudos, ou quinas, em cruz, representando os cinco reis vencidos e as cinco chagas de cristo.

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   O Campo de Ourique quje iria visitar é uma freguesia (bairro) portuguesa do município de Lisboa, pertencente à Zona do Centro Histórico da capital. Foi criada no âmbito da reorganização administrativa de Lisboa (2012), que entrou em vigor após as eleições autárquicas de 2013, resultando da fusão das anteriores freguesias de Santa Isabel e do Santo Condestável. 

  O Milagre de Ourique também está retratado em óleo sobre tela do pintor português Domingos Sequeira realizada em 1793 e que está em exposição no Museu Louis-Philippe do Palácio de Eu em França.

 O Milagre de Ourique, que havia sido levado para o Brasil pela família real em 1807, foi redescoberto, em 1986, pelo historiador e crítico de arte José-Augusto França, no Palácio d'Eu, na Alta Normandia. Esta grande tela que foi executada em Roma quase em simultâneo com a Alegoria à Fundação da Casa Pia levou J-A. França a classificar ambas as obras como filiadas no neoclassicismo romano.

   Do património edificado de Campo de Ourique, destaca-se a Igreja do Santo Condestável, monumento emblemático da zona da autoria de Vasco Regaleira, o arquitecto das "novas igrejas" e a Igreja de Santa Isabel. Até 2010 existia aí o edifício do antigo Cinema Europa edificado na década de 30 e redesenhado pelo arquitecto Carlos Antero Ferreira em 1958, com escultura de Euclides Vaz.

 Nos anos 1980 e 90, várias bandas surgiram em Campo de Ourique, tendo marcado a cena musical nacional: Ena Pá 2000, Pop Dell'Arte e Essa Entente. Também a primeira editora discográfica independente portuguesa, a Ama Romanta, teve origem no bairro, em 1986, ficando então a sua sede na Rua Coelho da Rocha.

 

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 No início da tarde estávamos pegando um táxi para o Campo de Ourique e postei-me ao lado do taxista. As Jesus sentadas no banco traseiro. Falei ao taxista: - Vamos a Casa de Fernando Pessoa na Coelho Neto do Campo do Ourique. O gajo esforçou-se para entender e disse que conhecia o bairro, mas não a rua. Era o de menos. Tocamos em frente. 

 Quando chegou numa ladeira próxima ao Mercado perguntei ao gajo, creio que por pirraça, que se fora ali que o rei Afonso Henriques vira Cristo, o qual lhe assegurou a vitória contra os mouros. 

 Ele não entendeu nada ou fez de conta que não entendeu. Em seguida, perguntei se já estávamos perto do nosso ponto de chegada. Ele também nada respondeu. 

 Então, solicitei as meninas que falassem ao taxista para responder as minhas perguntas e a Bião falou alto: - O senhor está ouvindo o que Sêo Franco lhe fala? 

 O taxis disse que era surdo de um lado (exatamente onde eu estava) e, portanto, que repetisse as perguntas se assim quisesse. Minha neta caiu na risada: - Dois surdos conversando. Daria um poema de Fernando Pessoa. Ria de chorar seguida da Bião. Ai foi que o taxista ficou sem entender nada. 

Rodávamos feito piões entra a Sampaio Bruno, o Jardim da Parada e a Almeida e Sousa e disse-nos ao parar o veículo - Esta é a Coelho da Rocha. Não posso entrar que é contra-mão. Sigam daqui a pé até o número 8 que encontram a casa do poeta.

 Seguimos a pé. A rua estava correta, mas o número era o 18. Chegamos a casa onde o escritor viveu os últimos 15 anos de sua vida, entre 1920 e 1935, onde há um museu, um apanhado completo da existência do poeta desde textos escritos a lápis a obras de arte, em destaque, o retrato em óleo de Almada Negreiros o mais famosos e conhecido deles. 

  A missão da Casa Fernando Pessoa é fazer uso do legado do escritor para dar a conhecer o seu singular universo criativo e servir como lugar de encontro e reflexão sobre a criação literária e as suas múltiplas leituras, diz um dos folhetos. A casa museu bem montada com uso de novas tecnologias, audiovisuais, auditório, placas em braille, elevadores para cadeirantes e idosos é um primor. Custa 5 euros o ingresso às suas dependência. É bem sinalizada e o roteiro é feito pelo visitante sem a ajuda de monitoramento.

  A Casa conserva, preserva e divulga o legado de Fernando Pessoa, cujo espólio documental foi classificado Tesouro Nacional. Há de tudo do autor inclusive os óculos que usava, livros seus prediletos - um raro exemplar da Divina Comédia de Dante - e vários outros de sua biblioteca particular onde escreveu serem os livros que já lera. Foi também montado um quarto similar ao que o autor viveu com a cômoda onde escrevia em pé e uma réplica da arca onde guardava os textos que escrevia. 

   Há uma sala espalhada - o que somos - onde as pessoas entram e ficam diante de um jogo de espelhos com essa pergunta enigmática do ser, o que somos. 

   Lugar de duas bibliotecas – uma biblioteca pública, especializada em Fernando Pessoa e poesia mundial e a Biblioteca Particular de Fernando Pessoa – a Casa acolhe e mostra também objetos, mobiliário e documentos do escritor, bem como uma colecção de obras de arte, composta por trabalhos de artistas de diferentes gerações e correntes.

   Os livros que pertenceram a Fernando Pessoa são o maior acervo que guarda e divulga. Permitem conhecer o universo criativo do escritor, revelando o seu lado leitor. Há uma sala de leitura para o público com várias obras de Pessoa à disposição.

   No final dos anos 1980, a Câmara Municipal de Lisboa adquiriu o prédio, que se encontrava em mau estado de conservação e em risco de ser demolido. O facto de ter sido a última morada de Fernando Pessoa fazia deste edifício um lugar privilegiado para depósito e exibição do espólio do escritor.

  Inaugurada a 30 de Novembro de 1993, no dia do aniversário da morte do poeta, todo o edifício foi reconstruído, segundo o projeto da Arquitecta Daniela Ermano, mantendo-se apenas como originais a fachada, as escadas que levam ao primeiro andar e duas divisões do apartamento da família.

 

  Em 2019, a Casa encerrou para obras de remodelação, com um novo projecto de arquitectura e museografia que permite responder melhor ao público crescente que a visita e às suas expectativas. A sua reabertura está prevista para 2020 com uma nova exposição, uma nova biblioteca e um novo auditório.