Cultura

LISBOA, CAP 11: COMO CONHECER A CAPITAL PORTUGUESA ANDANDO PELAS RUAS

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Tasso Franco , Salvador | 27/04/2022 às 09:58
Ladeira do Alecrim à noite
Foto: BJÁ
      Turista astuto, perspicaz, diria, sem soberba, sábio, é aquele que sabe escolher os caminhos para os museus, os templos religiosos antigos, as galerias, as casas de shows e os bares e restaurantes para petiscar e almoçar quando visita uma cidade. Tem faro fino e sempre acerta, tanto pode ser em Bogotá ou no Cairo; na cidade da Bahia ou em Lisboa. 

   Só vai a locais recomendados por razões superiores, por sugestão de algum condestável ou por fama e beleza que exista. Ainda assim, mede a quantia que leva no bolso e a calçada onde se encontra o local a ser visitado. Tudo conta. E se tiver fila na porta é ótimo, um restaurante. Se saem pessoas porta à fora carregando pães e brioches é padaria preciosa.  

  Em Lisboa, a capital avó do Brasil - uma vez que Salvador é a cidade mãe - tem tantas e quantas escadinhas, calçadas, escadarias de maior curso, becos, vielas, ladeiras, ladeirinhas, cotovelos, travessas que dá gosto andar pela cidade velha. Perambular. Claro, você não quer que eu vá da Baixa Pombalina onde me hospedo até o aeroporto Humberto Delgado passando sob os arcos do Aqueduto das Águas Livres - construído no reinado de Dom João V aproveitando os mananciais de Belas - andando, apreciando as ruas, ainda que nas suas imediações se situa a Calçada da Quitandinha.

  Agora, andar no bairro da Bica, na ladeira do Alecrim, na Alfama a partir do Largo do Chafariz de Baixo, bater pernas na praça do Comércio, na Augusta, na Rua do Ouro, no Rossio, nas ladeiras que rodeiam o Monastério de São Vicente de Fora, nas ruas estreitas que circundam a catedral Metropolitana e a igreja de Santo Antônio - onde nasceu Fernando Bulhões - o glorioso santo, na praça dom Luís I ao lado do Mercado da Ribeira, no corredor que dá no Mercado da Figueira, ao larguinho do Chiado, na Almeida Garret, na Misericórdia, no Largo de São Carlos, no bairro alto com suas inúmeras ruas e casas de fado isso é possível de ser feito com imenso prazer.

  É tão gostoso, tão prazeroso, que você esquece que tem um veículo que deixou no Brasil, que carro existe dos mais sofisticados no mundo, mas, neste caso, usa os pés, as botas, os tênis, as sandálias franciscanas para percorrer essas trilhas sem medo de ser feliz, sem a preocupação de ser atropelado por um veículo porque em algumas delas nada passa além de gente, pra lá; pra cá que, em alguns locais, as calçadas são tão estreitas que mal dá pra passar um gordo ou dois magros um indo e outro vindo, assim mesmo sinalizando para não haver um choque de pessoas.

  Não diria que possa acontecer com outras pessoas o que acontece comigo quando estou nas ruas e vielas de Lisboa tal o personagem de Saramago, o revisor Raimundo Silva; ou os amigos de Pessoa, o Almada e o Abdias, que com ele se encontravam no Martinho da Arcada para um absinto e prosas poéticas e políticas - sem me preocupar com a hora, sem apressar o passo, sentando n'algum canto quando sinto-me cansado, bebendo goles d'água n'alguma esquina, apreciando o casario, as roupas nos varais, o passar das pessoas como se o tempo tivesse parado e vivêssemos no século XIX, das aventuras de Carlos, do Eça de Queiroz, ou mesmo do próprio Garret em pessoa ele que dá nome a uma das ruas mais famosas da cidade, no Chiado.  

  Eu me sinto assim fora do tempo espaço atual da correria, do apressar o passo para pegar o metrô, do andar rápido temendo a chuva ou para conseguir uma vaga ao veículo no estacionamento do TCA. Ando como Machado de Assis andava nas ruas do Rio e Jorge Amado e Carybé percorriam as ruas do centro histórico de Salvador no tempo de Odorico Tavares, isso para não recuar a anos anteriores, do padre Antônio Vieira que gostava de sentar num banco da sacristia da Sé antiga para ver a Baía de Todos os Santos e quando estava enfadado andava pelo Terreiro de Jesus, dos jesuítas, que era um pasto também para animais, hoje, praça mor do centro de Salvador.

 Só não tenho as sandálias de Franciscano, de um frei José Ruy Lopes, do Convento de Nossa Senhora da Piedade, hoje, bispo em Caruaru, porque sempre que vou a Lisboa, mais, ultimamente, é no tempo do inverno e tenho que proteger os pés com algo mais consistente, ainda que os frades usem as sandálias e protejam os pés com grossas meias de lã e nada sintam, ao contrário de Santo Antônio que andava descalço, teimoso que era. Mas, Antônio tinha o poder de conversar com os peixes e eu não tenho, mal converso com minha esposa, a senhora Bião, que tem a atenção de ouvir-me com paciência de Jó, uma vez que falo pouco, às vezes trocando os pensamentos, e ouço ainda menos.

 E nesta viagem com minha neta Luna nos meus calcanhares, que não tem muita paciência de escutar-me e de falar pausadamente comigo, ralha-me a todo instante e zomba-me como um Mané perguntando "onde está o aparelho que não usas", tenho que explicar, muitas vezes que falo, "deixei na Bahia, não o trouxe" e ouço mais pressões na mente por parte da senhora Bião, a qual não guarda segredo, e emenda que "deveria ter trazido para não ficar com esse ouvido mouco". E eu nem me abalo porque, "ouço o que quero" e lá vem mais reprimenda por parte dela, "ouves o que queres e nada ouves, surdo de uma figa", e minha neta adianta que é "surdo de várias figas".    

  E eu dou risadas e lembro do livro de José Saramago, "História do Cerco de Lisboa" e das apreensões do  personagem revisor que deixava o trabalho no centro velho e caminhava até sua casa sem perder o rumo, sem perder o caminho de vista, e diz-nos o grande escriba: "Já ciente do caminho que deverá tomar, Raimundo Silva levanta-se, sacode-se as calças, e começa a descer as escadas. Sigo, não sigo, mas decidiu-se e foi empós do revisor, que vai descendo pela calçada do Correio Velho. Por estes sítios ou um pouco mais por dentro, para obedecer ao alinhamento do troço de São Crispim, baixava a muralha, a direito, se supõe, até a renomada Porta de Ferro...e aos olhos de um cão, o homem desce a Rua da Padaria, ao longo do que seria, há séculos, o pano de muralha que ia até à Rua dos Bacalhoeiros...o revisor entra pelo Arco Escuro...observa com vagar as janelas escuras, as fachadas salitrosas e encardidas, os registros de azulejos, este que tem a data de 1774, com uma Santa Ana ensinando sua filha a ler...daí a pouco quando estiver no Arco das Portas do Mar, achando em seu íntimo que o nome merecia outra tradução arquitetônica...

  Raimundo Silva não tem pressa, o revisor entrou na Alfama pelo Arco do Chafariz d'El-Rei, almoçará por aí, numa casa de pasto da Rua de São João da Praça, para os lados da Torre de São Pedro...percorrerá mais lentamente o que ainda lhe falta inspecionar, um outro lanço da muralha do Pátio do Senhor da Murça, a Rua da Adiça, por onde a cerca subia, e a Norberto de Araújo, de batismo recente...sobe a Rua dos Cegos, entra no Pátio de Dom Fradique e sai para a Rua Chão da Feira, em frente da Porta de São Jorge...em menos de cinquenta metros, embora invisível daqui está à sua casa".
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   Eu também não perco o caminho onde fica o flat em que me hospedo e sei de cor e salteado na minha cabeça a trilha tanto estando no Bairro Alto, na Misericórdia, no Miradouro de Alcântara, no Campo das Cebolas ou no Castelo de São Jorge e minha estrela guia é a Praça do Comércio onde está erguida de dom José I, e existem o arco que dá na Augusta e outros do prédio do Ministério da Justiça que é meu caminho de casa. 

  E, quem já teve a oportunidade de ler "Os Maias", do grande romancista Eça de Queiroz, ambientado na Lisboa na segunda metade do século XIX, quando Afonso da Maia, nobre e rico proprietário, se instala no Ramalhete com o neto recém formado em Medicina, pode sentir o significado de andar pelas ruas da capital portuguesa. 

  Eça descreve a casa que "os Afonsos vieram a habitar conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da senhora D. Maria I : com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar−se−ia a um colégio de Jesuítas. 
 

   E, Carlos, em busca de um adversário, sinceramente inquieto, julgando−o moribundo, foi uma manhã a casa dele, à Lapa. Mas aí, o criado (um galego achavascado e triste, que, desde as suas relações com os Maias, Dâmaso trazia entalado numa casaca e mortalmente aperreado em sapatos de verniz) afirmou−lhe que o Sr. Damasozinho estava de boa saúde, e até saíra a cavalo. 

  Chegara ao fim da Rua do Alecrim quando viu o conde de Steinbroken, que se dirigia ao Aterro, a pé. Era a segunda vez que o diplomata fazia exercício depois do seu desgraçado ataque de entranhas. Mas não tinha já vestígios da doença: vinha todo rosado e louro, muito sólido na sua sobrecasaca.
 Do fim do Aterro aproximava−se, caminhando depressa, uma senhora – que ele reconheceu logo, por esse andar que lhe parecia de uma deusa pisando a Terra... vinha toda vestida de escuro ... e trazia na mão um guarda−sol inglês, apertado e fino como uma cana ; e toda ela, adiantando−se assim no luminoso da tarde, tinha, naquele cais triste de cidade... Carlos olhava para o Cais do Sodré. Mas tudo lhe parecia deserto.
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  Que maravilhas de textos de Saramago e Eça a descrever Lisboa que não muda suas paisagens na velha cidade e permanece integral.