Cultura

CID TEIXEIRA, UM LEGADO DE DIGNIDADE E SABEDORIA, p ZÉDEJESUSBARRÊTO

Creio que se foi um pedaço da Bahia, desprendeu-se, sumiu nas águas mornas da Baía de Todos-os-Santos, e Inquices, Orixás, Voduns, Encantados ...
ZedeJesusBarrêto , Salvador | 22/12/2021 às 15:24
Cid Teixeira
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  Partiu o grande mestre, aos quase cem anos, o professor Cid José Teixeira, Cid. Advogado, pesquisador, historiador, memorialista, jornalista, ótimo redator, editorialista, cronista, escritor, radialista, estudioso e profundo conhecedor de baianices e baianidades...

  Cid era tudo isso contido apenas numa palavra, a que mais gostava e a que mais lhe significava: professor. De escola pública. Sempre, todos os dias, 24 horas, todo tempo, até dormindo. Um professor, conhecedor de sabenças eruditas e populares, mestre na arte da comunicação, signo de simplicidade e decência. Cid não gostava de pose, não aturava posudos, desprezava títulos, formalidades e fugia de reuniões acadêmicas “onde as pessoas só querem mesmo é ouvir o som da própria voz”, dizia.

  Já sabia bem quem era – referências radiofônicas e nome no ensino -, mas fui conhece-lo bem de perto no IRDEB-Instituto de Rádio Difusão Educativa da Bahia, órgão criado no começo da década de 70 passada, vinculado à então Secretaria de Educação e Cultura do Estado, pioneiro no ensino à distância no país, instalado nos subsolos da Biblioteca Central dos Barris. A primeira diretora foi a educadora Rute Vieira, antes da marcante administração da professora Aristocléia Macedo, que mudou a sede para a Federação e criou a FM Educadora e a TV E. 

  Cid foi também artífice disso tudo, no IRDEB. Ainda nos Barris, Cid pairava como uma referência pra tudo, decisões, ensino... pura generosidade e equilíbrio. Circulava entre as mesas dos produtores de conteúdos com seu caminhar oscilante, pernas e braços compridos, camisas despencando do cós, livros e papéis sempre nas mãos, e aquele vozeirão único, solene, impactante, de fazer todos calar. Era necessário e imperioso ouvi-lo. Cada palavra, um ensinamento. Não tinha sala, mesa, cadeira...  nada. Era Cid Teixeira e pronto, bastava.

  Mas seu lugar preferido era o estúdio de rádio, com aquelas mesas do controle de som imensas, cheias de botões, gravadores em fitas de rolo enormes, cassetes, fios, microfones... ali ficava à vontade, trocando figurinhas com o operador Hélio Lima, amigo querido, perdido no tempo. Aulas informais pelo rádio, o famoso programa “Pergunte ao José”, onde ele respondia de improviso e leveza sobre tudo, abrindo portas e janelas do conhecimento em ondas curtas, ondas médias, depois FM, tevê ...  um jorro de aulas, de ensinamentos, de luz ... 

  Com ele, nos começos da Educadora/OC e OM, aprendi a falar, usar bem o microfone. Com o Mestre Cid, aprendi que “a História é a caminhada da humanidade pelos caminhos e atalhos do tempo”.  Ele e a querida professora Eugênia Lúcia Viana Nery fizeram-me amar e estudar a história da Bahia com afinco, da capital e do recôncavo, igrejas e terreiros, sertão, África, nossas origens e morada. 

  Cid amava, ouvia, estudava, usava como ferramenta de ensino também a música, colecionador de discos e de sonoridades variadas, desde os tempos dos bolachões em carnaúba, um aprender constante. Conheci seu apartamento abarrotado de discos e livros, afogava-se ali. 

  Cid era uma enciclopédia ambulante e um grande conversador, de brilhante memória, bem humorado, um crítico mordaz de costumes, ‘modernismos’ e boçalidades, com seu absurdo senso de observação e suas tiradas geniais. “Nessa terra não tem preto nem branco limpo, somos todos mulatos”, sacaneava. 

  Era eu um chefete de reportagem da Tribuna da Bahia, ainda na primeira metade dos anos/década 1970, quando ele assumiu o cargo de Chefe de Redação/Editor geral. Rodava pela redação, rindo e dando pitacos, descia pra comer aqueles pastéis infames, qualquer coisa no Manolo/Djalma Dutra, escrevia editoriais, mas não durou muito tempo. Chefiar não era a sua, nunca foi, preferia ser a fonte, trabalhar com a informação, o texto, a criação, dar entrevistas, conversar com os repórteres, era mais de tirar dúvidas do que comandar ou se reunir com patrões. 

  Lembro-me de suas angústias à frente da Fundação Gregório de Mattos, querendo fazer coisas e engessado, bloqueado pelas burocracias e as politicagens. Irava-se e largava tudo quando lhe enchiam o saco. 

  Escreveu livros sobre a evolução histórica e as transformações da Bahia desde os tempos dos bondes puxados a burro até os execráveis espigões e viadutos, as mudanças de hábito do nosso povo e espalhou conhecimento a vida inteira, como quem nada queria. Feito o dia em que, ainda com 19 anos, estudante, voltava de um congresso estudantil no Rio, à bordo de um Ita (navio de cabotagem), e deparou-se com um fotógrafo francês que estava indo/vindo pela primeira vez à Bahia. Era Pierre Verger. Trocaram merendas – latinhas de leite condensado por salsichas -, informações e ficaram amigos para sempre. Cid apresentou Salvador a Verger, deu-lhe dicas e roteiros.
 
   A derradeira vez que estive com Cid, numa visita à casa dele, na Pituba, fui acompanhado do amigo e fotógrafo Gaguinho, autor de um maravilhoso vídeo/ documentário com o mestre, navegando num saveiro, pisando o chão de Ilha de Maré, cavucando raízes recôncavas.

  Cid era uma entidade kirimurê. Saímos de lá, eu e Gago, muito tristes por vê-lo já bem debilitado, a formidável memória falhando, o vozeirão sumindo, a verve apenas relampeando. Fomos beber de tristeza, relembrando passagens, vivências, ensinamentos do mestre, eterno. Gaguinho, tão forte, foi-se antes dele, os desatinos da vida. 
 
  Confesso que Cid significou para mim um segundo pai. Assim o reverencio e reverenciarei sempre, agradecido pelos seus exemplos de despojamento, pela sua generosidade, todas as sabenças ditas, ouvidas, aprendidas... 
 
  Creio que se foi um pedaço da Bahia, desprendeu-se, sumiu nas águas mornas da Baía de Todos-os-Santos, e Inquices, Orixás, Voduns, Encantados ...
 
  Cid Teixeira está no Orum, ao lado deles.
 A benção de seu filho, agradecido.