Cultura

BECO DA LAMA DE NATAL É PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE E ÁREA ARTÍSTICA

Rose Serafim, da Agência de Cultura
Rose Serafim , da redação em Salvador | 04/11/2021 às 09:19
Beco da Lama de Natal
Foto: Canidé Soares
  Uma cidade é bem mais que uma junção de prédios e ruas. É feita diariamente a partir das relações construídas nos espaços, por pessoas, sons, cores e movimentos. Exploradores de grandes cidades desavisados podem passar desapercebidos pelo reduto oficial dos amantes de arte, política, música de todos os ritmos e boas conversas em Natal. Situado no bairro Cidade Alta, o aglomerado de ruas estreitas conhecido por Beco da Lama acaba de ser alçado a condição de Patrimônio Cultural da capital potiguar após décadas sendo o principal refúgio urbano de quem gosta de exercitar a arte do encontro de ideias, petiscar o que há de mais tradicional e apreciar uma boa birita.

A iniciativa partiu da vereadora Julia Arruda (PCdoB) e foi aprovada na Câmara Municipal no último dia 29 e segue para sanção pelo prefeito Álvaro Dias (PSDB). A proposta reconhece o Beco como Patrimônio Cultural, de natureza material, integrando o Centro Histórico natalense.

O projeto foi criado em junho de 2019, como parte do movimento de revitalização do Beco da Lama, quando os muros do lugar ganharam diversos murais e grafittis. Foto: Canindé Soares
A vereadora explica que a ideia é traduzir algo que o Beco já representa, com um título que pode nortear a construção de políticas públicas permanentes na região.

“Queremos que a gestão tenha um olhar diferenciado pro Beco da Lama, para além dos grafites e eventos pontuais. Que aquele ponto seja sempre prioridade, inclusive no circuito histórico e turístico de Natal. E tudo isso, claro, resulta diretamente no incremento do comércio e serviços adjacentes”, defende.

Comerciantes, apoiadores do Beco e frequentadores celebram a conquista e relembram as saudades de conviver no espaço antes da pandemia de Coronavírus.

“Tudo que for feito para potencializar esse espaço é muito bem-vindo”, garante Goretti, presidente da Samba (Sociedade dos Amigos e Amigas do Beco da Lama e Adjacências). A organização privada e sem fins lucrativos, atualmente dirigida somente por mulheres, promove uma série de ações no beco, é responsável por atividades que movimentam o bairro da Cidade Alta, como o Pratodomundo – Festival Gastronômico do Beco da Lama e o Festival Literário do Beco da Lama (FliBeco).

“É para acontecer”, aponta Lula Belmont, proprietário do Bardallos, um dos bares mais conhecidos da área compreendida como Beco da Lama e arredores, sobre os resultados advindos do novo título. À frente do bar há 16 anos, Lula circula pela área desde a década de 1980, e conta que ali é o ponto da cidade onde se tem contato com os artistas potiguares. Ele aguarda a melhoria na situação pandêmica enfrentada pelo país para o pleno funcionamento das atividades no local. “Agora é arregaçar as ideias e colocar o barco para flutuar”, direciona o comerciante que também se define como ativista cultural.

O que tem nesse Beco?

O cruzamento entre os pontos mais estreitos das ruas Coronel Cascudo e Vaz Gondim funciona com diversos tipos de comércios, de depósitos a sebos, tradicionais aos bairros centrais de qualquer cidade, durante o dia. À noite, quando a região silencia, o Beco reúne todos os sons em bares, com apresentação de música ao vivo, discotecagem e rodas de samba. Tudo isso em meio a uma galeria de arte aberta na rua, com pinturas, grafites, poesias em lambe, pixo e muita gente sorridente e colorida. Os acontecimentos bequianos já viraram tema de diversos trabalhos acadêmicos, teses de mestrado, poema e músicas.

A programação mais disputada é a de quinta-feira, com roda de Samba no Bar da Nazaré. Em dezembro de 2019, o evento “Quinta te quero samba”, posteriormente renomeado para “Quinta viva samba”, que ocorre há mais de 10 anos, foi elevado à condição de Patrimônio Imaterial de Natal após aprovação de projeto da vereadora Divaneide Basílio (PT).


 
“Toda quinta-feira eu estava lá já com o meu litro de cerveja na mão, comendo dois espetinhos e preparado já pra sambar a noite todinha. Era quinta por quinta por quinta por quinta. Toda quinta-feira eu estava”, relembra o professor Rodolfo Carvalho, 27. Natalense, ele nem sabe quando ou como começou a gostar de samba, mas chegou ao Beco pela primeira vez em 2019, por indicação de um amigo, e teve cadeira cativa lá no bar da Nazaré até março de 2020.

Satisfeito com a notícia do título dado ao seu lugar favorito, a expectativa dele agora é de que isso resulte em reformas na pavimentação das calçadas. Por enquanto, o professor aguarda mesmo é que se resolva a situação pandêmica para voltar à roda de samba.  “É eles falando: voltamos a tocar, e eu pisando lá”, garante.

BECO VIVE

“Saudade eu tenho de mainha. O que estou sentindo pelo beco ainda não tem nome”, diz Rodolfo, frequentador assíduo da roda de samba no Beco da Lama. Foto: Cedida.

Quem também conheceu o evento em 2019 foi a estudante de psicologia Yara Santos, 28, também numa quinta-feira, a convite de amigos para a roda de samba. Eclética, logo soube dos eventos envolvendo outros estilos musicais, como o pé-de-serra da banda “Forró de Pote”, que se apresentava aos sábados, num palco improvisado na interseção entre as ruas principais do Beco. A moradora do bairro Rocas também se sentiu contemplada pelas rodas de House, tocadas por DJs que costumavam se reunir em frente ao Bar da Meladinha.

“Foram muitos momentos vividos no Beco da Lama. Muitos encontros com amigos, muitas paqueras, muitas amizades iniciadas, danças e muitos litrões (risos). É difícil dizer apenas um acontecimento, eu amava tudo”, revive. Ela lembra que até o primeiro encontro com o atual namorado foi no Bardallos. Depois disso, os dois não se desgrudaram e tornaram-se oficialmente um casal bequiano.

Para um retorno pós-pandêmico, a universitária espera que tenham sido instalados banheiros químicos nos arredores dos bares. Ela também espera que o lugar ganhe a devida visibilidade com políticas públicas de fomento à cultura no local.

“Resido próximo ao centro e sinto muitas saudades das minhas Quintas e Sábados. Com certeza, assim que tudo melhorar pretendo voltar a frequentar sem pensar duas vezes“, garante a estudante Yara Santos, bequiana das quintas e sábados. Foto: Cedida.
O carioca Charles Ralph, 33, quis conhecer o Nordeste em 2014 e acabou fixando morada em Natal. Chegado à boa música e explorador de cidades, encontrou no centro histórico o espaço perfeito para aproveitar além do samba, o rock e MPB. O bar da Meladinha era destino certo nas sextas-feiras e sábados dele. “Fiquei apaixonado pela igualdade entre pessoas e simplicidade de se juntar em um lugar simples para falar de coisas banais com cerveja gelada e bons sons”, conta. Neste ano, em abril, Ralph voltou ao Beco da Lama, mas sentiu como a redução do fluxo de pessoas e a necessidade de cuidados sanitários muda o lugar.

A mineira Ana Maria  Guimarães, 67, chegou a capital do RN em 1995, após casar com um potiguar.  O Beco foi o lugar onde ela se sentiu acolhida na cidade, mas assume já vinha diminuindo as idas aos bares de lá antes mesmo da pandemia. Ainda assim, sente saudades e pretende voltar assim que sentir segura para isso.

“Sempre me senti muito bem andando por lá. Foi onde conheci muitas pessoas por quem tenho enorme afeto.  Frequentei muito o bar da Nazaré, bar do Pedrinho, Bardallos, o antigo bar de Pedro Abech, Dona Odete, bar do Chico, etc. Ainda é o lugar que eu irei quando voltar a sair de casa”, anuncia.

Além do local de trabalho, o Beco é a segunda casa de Neide Dantas, 55, proprietária do Bar da Meladinha. O empreendimento leva o nome da cachaça feita com mel e limão, receita criada pelo antigo dono, Nasi Canaã. Em 2021, Neide assumiu a marca junto ao marido, Francisco Vieira dos Santos, que morreu de Covid-19 ano passado, aos 62 anos. Apesar do falecimento do marido e das dificuldades financeiras, Neide continua à frente do bar criando jeitos de manter o negócio.

“Lá, além de ser o meu local de trabalho, é minha família também, é tudo pra mim. Já vi muitas pessoas, comerciantes abrirem e fecharem portas durante esse tempo que eu estou lá, na resistência pura, com pandemia, sem pandemia, com público, sem público… Eu estou sempre lá, trabalhando. Eu tenho esperança que tudo isso vai passar e que a gente vai voltar”, finaliza.