Cultura

MANDELA EM SSA: “QUASE FOMOS MORTOS DE TANTO AMOR!”, p MARCELO GENTIL

Marcelo Gentil é historiador e Vice-presidente do Olodum
Marcelo Gentil , Salvador | 05/08/2021 às 11:49
Nelson Mandela, em Salvador, e Marcelo Gentil, há 30 anos, 5 agosto de 1991
Foto: Arquivo pessoal
  Em 1989, um grupo de parlamentares brasileiros composto pelo hoje senador - à época, deputado federal pelo PT do Rio Grande do Sul - Paulo Paim, Benedita da Silva (PT-RJ), Edimilson Valentin (PCdoB-RJ), Domingos Leonelli (PMDB-BA), Carlos Alberto Caó (PDT-RJ) e João Herman (PMDB-SP), viajaram pra a África do Sul, para em nome da Câmara dos Deputados, para engrossar o coro das pressões diplomáticas e políticas internacionais e pleitear a libertação de Nelson Mandela.

   O grupo de parlamentares voltou com duas notícias alvissareiras: 1) O processo de libertação de Mandela estava muito próximo, faltando apenas alguns detalhes, para ele inegociáveis; 2) Nas conversas com a cúpula do Congresso Nacional Africano - ANC, trataram da importância de Mandela, quando liberto, visitar a maior nação africana fora do continente, o Brasil. 

   Um ano depois, em 11 de fevereiro de 1990, em uma tarde de domingo, quando a notícia da libertação de Mandela circulou mundialmente, o Olodum estava realizando o último dia do seu Festival de Música e Artes, o FEMADUM. Ao anunciarmos a grande novidade, todo o Pelourinho, entoou empolgado a música NkosiSikelel' iAfrika, hino da África do Sul, ao ritmo do samba reggae.

   As relações do Olodum com Mandela e a África do Sul remontam aos anos 1980, com a chegada de homens e mulheres negros com histórico de militância antirracista, quando a instituição deixa de ser apenas um bloco afro e se transforma em um grupo cultural, comprometido com a as lutas políticas, de combate ao racismo e de promoção e defesa dos direitos humanos. 

   No final desse período, o hino da África do Sul se transformou na trilha sonora de encerramento dos ensaios do Olodum aos domingos e foi gravada, em 1989,no LP “Do Deserto do Saara ao Nordeste Brasileiro”, cuja faixa é iniciada com a recitação do “Poema da Liberdade”, de autoria de João Jorge Rodrigues.

   Nesse período, participamos de protesto nacional em frente à embaixada da África do Sul em Brasília, pedindo o fim do apartheid e a libertação de Mandela; em 1989, juntamente com a Unegro e a APLB (Associação dos Professores Licenciados da Bahia) inserimos na Constituição do Estado, uma emenda popular que coletou o maior número de assinaturas entre todas à época, criando o Capítulo do negro  (Cap. XXXIII) - que, entre outros preceitos, proibiu  (Art.287) a Administração Pública de se relacionar política e comercialmente com países que praticassem oficialmente  a discriminação racial. Propositalmente, foi um texto inserido sob medida para fustigar e pressionar a África do Sul.

   Esta relação permaneceu e, em entrevista de João Jorge ao Jornal Correio da Bahia que circulou em 9/8/2020, ele afirma: "o Olodum talvez seja a entidade negra na Bahia com maior ligação com Nelson Mandela e com a África do Sul. O país foi tema do bloco em duas ocasiões e mantemos relações com os presidentes que sucederam a Mandela", lembra João Jorge. O auditório da Casa do Olodum leva o nome de Mandela e abriga livros e lembranças de sua trajetória e da passagem pela Bahia”. 

   Com Mandela em liberdade, começaram as tratativas para a sua visita ao Brasil. A primeira ação foi a realização de uma reunião na residência de Carlos Alves Moura em Brasília – DF., então presidente da Fundação Cultural Palmares, com a presença de deputados federais - os mesmos que visitaram o país em 1989, além de outros - e lideranças negras de diferentes estados e instituições, entre eles o presidente do Olodum, João Jorge Rodrigues.

   Quando foi anunciado o roteiro que estava sendo negociado com o Departamento de Assuntos Internacionais do ANC – DRI/ANC, fomos informados que a visita de Mandela abrangeria apenas, a capital federal, para ser recebido oficialmente pelo presidente Collor de Mello, reconhecendo-o como legitimo representante do seu povo e o Rio de Janeiro. 

   O presidente do Olodum, então, “deu um pulo” e disse que não sabia por que havia sido convidado para aquela reunião, visto que, Mandela não passaria pela Bahia! E mais: defendeu que era importante que o ilustre visitante conhecesse a cidade com maior número de negros fora de África, para ser calorosamente homenageado em praça pública pelos baianos.

    Igualmente, protestaram as lideranças paulistas e do Estado do Espírito Santo, que, neste caso específico, fez questão de frisar que o seu estado tinha um negro como governador (Albuíno Azeredo). A proposta foi acatada e inserida na nova programação a passagem também por São Paulo e pelas terras capixabas, mas que dependeria das conversas com o ANC.

   Para viabilizar o périplo e dar as devidas conotações de visita política, mas também com o merecido e forte viés popular, foi criado, em 1991, o Comitê Nacional de Recepção a Nelson Mandela, liderado pelo casal Jeniffer, uma sul-africana de origem holandesa e o cientista político Salomão Blajberg, ambos dirigentes do COMAFRICA – Comitê de Solidariedade aos Povos da África do Sul -.

    Importante ressaltar que neste período, o Itamaraty não reconhecia e não se relacionava com o ANC. Portanto, todas as notícias oficiais que chegavam ao Brasil a respeito do grupo de Mandela eram por meio do COMAFRICA.
 
   A partir do Comitê Nacional, foram criados os comitês estaduais. No caso do baiano, ele foi formado por um conjunto de entidades negras, entre elas o Olodum, Ile Aiyê, Unegro, MNU e NikerOkan, entre outras, além de representações do governo do estado da Bahia e da prefeitura de Salvador. 

   Durante o funcionamento dos Comitês de Recepção, um grupo representando DRI do ANC veio ao Brasil, pra planejar os detalhes da visita de Mandela. A reunião foi realizada no Rio de Janeiro, no imóvel do casal Blajberg, com a presença de parlamentares, personalidades negras, entre elas Martinho da Vila. Pela Bahia, estiveram presentes o deputado Leonellie e o então diretor de cultura do Olodum, Marcelo Gentil. 

   No dia 5 de agosto de 1991, Nelson Mandela desembarcou em solo baiano, com uma grande recepção de artistas, personalidades diversas e representantes de instituições no aeroporto internacional Dois de Julho, entre essas a Irmandade da Boa Morte. 

   Na sequência, seguiu para o seu primeiro compromisso, um almoço oficial com o governador Antônio Carlos Magalhães na residência do Palácio de Ondina. Almoçou, fez questão de cumprimentar o pessoal responsável por preparar a comida baiana, que ele considerou fantástica. Cumprimentou e abraçou a cada um dos membros da equipe e ainda coreografou uns passos de dança da sua aldeia. 

  Descansou um pouco e seguiu para a segunda parte da agenda, quando recebeu, na Assembléia Legislativa da Bahia, a Medalha Libertadores da Humanidade, criada por iniciativa da deputada estadual Maria José Rocha, do PCdoB.

   No final da tarde desse mesmo dia, aconteceu, sem dúvida, o ponto alto da visita de Nelson Mandela ao Brasil, quando ele foi recebido e homenageado na Praça Castro Alves, por um público estimado pela Polícia Militar em mais de 150 mil pessoas, em um evento no qual entrelaçaram-se apresentações musicais e discursos políticos de lideranças negras baianas e do próprio Mandela, que na oportunidade, proferiu a célebre frase: 

   "O racismo não pode passar por uma plástica para ser mais aceitável. Racismo é racismo, qualquer que seja o nome ou máscara que vestir".

   À Banda Olodum, coube, além de muitas outras, interpretar o Hino da África do Sul, aos aplausos de um emocionado Mandela, que antes de se despedir se dirigiu mais uma vez ao microfone e disse, segurando na mão de Winnie Mandela, “Quase fomos mortos de tanto amor!”.