Cultura

MEMÓRIA DO CIRCO BRASILEIRO REGISTRADA EM AUDIOVISUAL DURANTE PANDEMIA

Lançado no youtube.com/user/memoriadocirco, com participação dos circenses.
Da Redação , Salvador | 17/06/2021 às 11:48
Memória do circo
Foto: DIV

De todas as atividades culturais, a circense talvez tenha sido a mais duramente golpeada pela pandemia, por conta de duas características fundamentais do circo: o contato direto com o público e a itinerância. Circos parados, picadeiros vazios e um exército de artistas e técnicos à espera da retomada plena.

Nesse meio-tempo, um programa do Centro de Memória do Circo (CMC), da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, em parceria com a produtora Tenda dos Milagres Filmes, foi a campo com o Programa Emergencial da Memória do Circo Brasileiro e ouviu 40 artistas em todo o país, em cerca de 80 horas de gravação audiovisual.  

Foram ouvidos palhaços, equilibristas, acrobatas, dançarinas, adestradores, secretários, capatazes, empresários e técnicos, todos de notável atuação, de diferentes regiões do país e de diferentes circos, do maior ao menor, do internacional ao local, com idade entre 60 e 89 anos. O principal objetivo do projeto foi salvaguardar a memória ameaçada pela pandemia, que afetou mais a população idosa.

As entrevistas audiovisuais, feitas pela internet, foram conduzidas por doze profissionais, pesquisadores e artistas ligados ao circo, num projeto concebido pela pesquisadora circense Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo, com produção geral da baiana Karina Paz.

Memória preservada

“Numa cultura como a circense, em que o conhecimento se preserva principalmente através da memória oral, o desaparecimento de um longevo/longeva equivale ao incêndio de uma biblioteca. Com esta pandemia, o circo corre o risco de ver incendiadas várias de suas bibliotecas. Sendo assim, não foi só necessária mas em caráter de emergência a realização deste projeto” diz Verônica Tamaoki.

Para Karina Paz, o maior desafio foi ter de fazer tudo remotamente, utilizando na outra ponta os aparelhos dos próprios mestres circenses, muitas vezes inadequados para este fim. Em alguns casos não havia boa conexão de internet, nem luz e enquadramento ideais. “Mas a gente não perdeu o foco no nosso objetivo, que foi primeiramente a preservação da memória. Registramos essas histórias dentro das condições técnicas viáveis, sujeitas algumas vezes à instabilidade de imagem e som, atenuadas na pós-produção, na medida do possível. Como historiadora e realizadora audiovisual, estou muito satisfeita e orgulhosa com o resultado”, avalia Karina.

Mosaico

Ao contrário do que seria de se esperar, os depoimentos não resultaram em lamentos nem queixas, nem lamúrias. Das falas dos circenses emergiram um profundo amor ao circo, realização profissional, relatos que formam um mosaico de fragmentos de experiências de um Brasil profundo, em quase um século de história, dos circos mais abastados, transportados por carretas e trailers do presente, aos circos pobres, sem teto, que no passado tinham lonas costuradas e enceradas à mão, pintadas com tinta xadrez e transportados em velhos caminhões, tropa de burros, canoas e carros de boi.

Maratonar nos 40 vídeos de 8 minutos em média, editados com fragmentos do depoimento de cada um dos artistas – que ficarão disponíveis no site do Centro da Memória do Circo a partir do lançamento do projeto -  é mergulhar num mosaico da história do circo brasileiro. São relatos que conduzem a um universo presente na lembrança de todos, como o mistério do cotidiano por trás das barracas armadas nas cidades com a chegada de uma nova trupe, os perigos e desafios da vida itinerante, a tentação de fugir com o circo, a sensualidade, os desafios e a magia dos números circenses, a música, o teatro, artes que chegavam ao interior do Brasil com o circo, antes do rádio e da televisão.

Os depoimentos revelam também semelhanças nos sonhos, nas alegrias, nas tristezas e nas dificuldades de quem está atrás das cortinas, seja num cirquinho de periferia, seja numa grande companhia. Semelhanças nas aventuras do constante armar e desarmar de lonas, nos caminhos por atoleiros das estradas do interior, nas dificuldades com a chuva, nos recomeços, no aprendizado, na rotina das crianças e no desafio das mulheres na múltipla jornada com as tarefas do cotidiano do circo, de dona de casa, do cuidado com as crianças e no fim do dia ainda brilhar como artista no picadeiro.

Começo

A identificação da origem do artista nos vídeos não é a mesma do local de nascimento. A ideia foi colocar estado onde o circense viveu a maior parte da vida artística e pessoal.  Assim foi com Herta Orfei, de São Paulo, que nasceu e começou como artista em Viena, na Áustria, casou com Orlando Orfei e viveu boa parte de seus 87 anos percorrendo o Brasil.

Assim foi com Clovis dos Santos (BA), que nasceu no Rio Grande do Sul. Ele começou no Vostok, circulou o Brasil, e hoje é capataz do Circo Picolino, em Salvador, que teve a lona rasgada no ano passado pela chuva.  “Temos uma lona que a gente ganhou de uma escola do Rio. Essa é minha função, me dedicar a isso, remontar a Picolino. Deixar ela em ponto de bala para ser novamente a maior escola de circo do Nordeste”, diz confiante.

Walter Carlo (RJ), o palhaço Teco Teco, de 89 anos lembra em seu depoimento de ter atuado ao lado de Grande Otelo, que começou em circos, palco inicial também de muitos outros artistas, como Luiz Gonzaga por exemplo, inspirador de um outro palhaço, o Facilita (RN). Fã do futuro Rei do Baião, José Milton gostou da música Facilita, lançada na época, que fala sobre a praticidade da minissaia de uma moça chamada Bastiana. O nome pegou e Facilita virou também nome de circo, um dos mais famosos do Rio Grande do Norte.

Crianças

A mãe de Suely Perez (MS), hoje no Circo Real Pantanal, terminou o número de arame e foi direto para a barraca do circo parir. Suely nasceu a tempo de ser apresentada ao público e receber os primeiros aplausos naquela mesma noite. Rotina semelhante da sua avó austríaca, que teve oito filhos, e a mãe, que também teve e criou cinco filhos no circo.

Guaraciaba Malhone (SP) também foi apresentada cedo ao respeitável público. Entrou em cena com 15 dias para contracenar com a mãe, recém-parida, numa peça de teatro, principal atração do circo, em Sorocaba. “Tínhamos um repertório grande, de comédia, alta comédia, chanchada. Comecei a atuar com fala nas peças aos 5 anos e vivi todos os personagens, até como uma velha, a Dona Santa. Fiz teatro do começo ao fim”.  

Circo também era sinônimo de muitas crianças do lado de dentro da cortina. Até os 30 anos, Maria Lúcia (BA) teve seus 11 filhos na itinerância. Mas sempre dava um intervalo na vida sob a lona para o parto. “Em cada cidade em que eu chegava e sabia que ia ganhar neném naqueles dias, pedia ao marido para alugar uma casa e e morava ali por um tempo.

Angela Cericola (RJ) cresceu cercada por 13 irmãos, apenas dois biológicos. A mãe entrou para a lona por conta de um defeito na lambreta na porta do circo. Depois de socorrida pelo galã da trupe, engatou um namoro e acabou se casando com ele.  E criaram 14 filhos. “O circo ia passando e minha mãe ficava com pena quando alguém falava, você não quer levar essa criança, o pai morreu, a mãe morreu, ele ficava com pena e levava, e adotava”.

A descoberta

Se muitos já nasceram num circo, outros tomaram a decisão de entrar no momento da descoberta. Foi o caso do Palhaço Pimenta (CE), que aos 14 anos, montado num burro para entregar leite, viu pela primeira vez uma lona armada, surgida do nada, no lugar onde sempre passava a trabalho, em Fortaleza. Não conteve o espanto ao ver uma grande “sombrinha armada”: O que é isso?, perguntou a um passante, abismado. Não sabia nada sobre aquela novidade. “Foi amor à primeira. Voltei à noite e fui o primeiro a comprar o ingresso”. Nunca mais deixou o circo. Este renascimento debaixo da lona é resumido por Iracema Cavalcante de São Paulo, que um dia, de repente, se deu conta do caminho sem volta: “Eu não nasci no circo. O circo nasceu em mim”