Um relato diferenciado de quem fez boa parte do caminho de carro, mas concentrado na fé, nas mudanças de vida
Rosa de Lima , Salvador |
11/03/2021 às 11:51
Santiago de Compostela, um caminho de vida, Marcelo Prauchener Duarte
Foto: bjá
Já comentamos neste BJÁ sobre vários relatos dos caminhos de Santiago por autores brasileiros e estrangeiros. Muitos são esses roteiros na Europa para Santiago de Compostela, na Galícia, na própria Espanha, outros partindo da França, da Itália, da Inglaterra, da Alemanha, da Belgica e de Portugal. O relato mais famoso é o de Paulo Coelho (O Diário de um mago) que mistura ficção com a realidade, ele que fez o caminho na década de 1980.
Alguns autores fizeram os caminhos todos a pé e outros parte a pé e parte motorizada diante das dificuldades que é, por exemplo, percorrer o caminho tradicional entre os pirineus franceses (Saint-Jean-Pied-de-Port) até Santiago passando pelas regiões autônomas do Norte da Espanha - Navarra, Leon, Castela, Galiza - um percurso de 800 km. Paulo Coelho, por exemplo, andou até o Cebreiro e depois fez o restante do percurso de carro.
O empresário gaúcho residente em São Paulo, Marcelo Prauchner Duarte, publicou em 2015 o livro "Santiago de Compostela - um caminho de vida" (Editora do Autor, 145 páginas, à venda pela internet) um relato bem interessante, pois, ao contrário da maioria dos autores fez a quase totalidade do caminho de carro, num Smart, sozinho, cumprindo apenas pouco mais de 100 km a pé dos 800 entre Roncessalles e Santiago, justo o exigido pela Ordem de Santiago para receber o certificado da compostela.
Não deixa de ser interessante, até porque isso não diminui a fé do peregrino e apenas permite que a tecnologia do automóvel ajude nessa operação, ele que também optou por não ficar nos albergues dos religiosos e das alcadias, preferindo os hotéis.
Creio que essa atitude perde o sentido maior de fazer o caminho nas relações com outros peregrinos de várias partes do mundo. Esses albergues representam, em certo sentido, o original de percorrer a direção da Via Láctea da Compostela desde o século IX e é onde os peregrinos se encontram, dialogam, fazem amizades e há o prazer da coletividade, de dividir espaços com pessoas que você não conhece, da troca de ideias, de experiências, do cultivo de novas amizades.
Mas, é óbvio que cada cabeça é um mundo e Duarte adotou essa lógia do uso do automóvel e considerou que sua jornada deu-se de forma "meditativa e produtiva". Era um sonho que tinha de fazer o caminho e concretizou-se quando ele estaria no limite do esgotamento de suas forças produtivas no trabalho e precisava dar um templo, parar, refletir, deixar de lado a correria por um momento e dedicar-se a rever conceitos pessoais para melhorar sua autoestima e felicidade. Diz que conseguiu.
O curioso, de fato, é que Duarte modificou até mesmo o roteiro original que tinha pensado e programado, partiu de SP para Madrid, depois para Leon e desta cidade alugou um carro e retornou a Astorga, mais de 600 km, para fazer o caminho praticamente ao contrário, indo daí a histórica Roncesvalles, onde o exército de Carlos Magno sofreu uma grande derrota para os bascos (os vascões) e é, depois de Saint-Jean-Pied-de-Port (nos pirineus da França) o inicio do roteiro do camiho frances a Compostela, aquele que teria sido feito pelo apóstolo Tiago, por São Francisco de Assis e por Santa Isabel de Portugal, entre milhares de outros cristãos.
Veja o que diz Duarte sobre o primeiro dia da peregrinação: "No hotel estava inquieto, agitado e muito ansioso. Eu não sabia o que estava ocorrendo, então aproveitei o momento para rezar bastante e falar com Deus. Desta forma, fui me acalmando, obtendo paz e tranquilidade interna. Isso me fez entender o quanto, em muitos momentos da vida, tenho sido egoista, me isolado daqueles que amo, sendo superficial e não ajudado as pessoas. Compreendi ter o dever de estabelecer uma missão de me doar um pouco mais aos outros como forma de gratidão por tudo que tenho, ajudando o próximo a se desenvolver e conquistar a sua felicidade".
Revela-se no enunciado das palavras do autor, o seu sentimento interior e isso demonstra que, embora ele tenha feito o caminho com maior tempo do percurso num veiculo, não lhe tirou o foco da missão a ser alcançada.
"Queremos uma vida simples, e muitas vezes, não olhamos para o semelhante ao nosso lado. A nossa existência é baseada em valores financeiros, pois sem ele não conseguimos acolher o nosso frio, alimentar a nossa fome, saciar nossa sede, resgaurdar os nossos medos. Quantas vezes esquecemos das pessoas acuadas e necessitadas ao nosso redor? Quantas vezes deixamos de agradecer tudo aquilo que temos? Como discernir entre as pessoas boas e as más, que estão a nossa volta?, foi a reflexão inicial de Duarte.
É claro que o caminho percorrido por Duarte por ter sido feito uma grande parte de automóvel, embora ele tenha passado pela maioria das localidades espanholas, as pinceladas históricas e as vivências desses locais e de sua gente são rarefeitas, menores do que daqueles que fazem todo o trajeto a pé, às vezes por 40 a 60 dias, e detalha esses aspectos culturais com maior intensidade.
O livro de Duarte, no entanto, é apreciável - até porque muitos peregrinos chamados de 'turigrinos' adotam esse estilo - e ele, ao que revela no livro, se concentrou, tanto que, após 3 dias de peregrinação "já estava muito mais relaxado, as dores passaram e os pensamentos vinha apenas quando eu os desejava. A minha mente estava fluindo melhor, pois me permitir apenas observar e viver o momento, sem julgamentos e obrigações".
No final da jornada, em Santiago de Compostela, confessa ao assistir a missa dos peregrinos que suas lágrimas escorriam pelo rosto "estava com uma alegria interior imensa, uma paz, uma emoção e uma felicidade muito grande".
É isso, cada pessoa escolhe a sua maneira de fazer o Caminho de Santiago e Marcelo Prauchner Duarte dá-nos seu depoimento e uma lição de que é possível aliar as duas coisas - a fé e a tecnologia - com o objetivo comum de poder falar com Deus.