Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA VIA LÁCTEA, CAMINHOS DE SANTIAGO, p GUY VELOSO

Assim como há diferentes roteiros para o caminho de Santiago; há várias interpretações. Apreciei bastante a descrição de Ruy Veloso sobretudo por não representar uma visão dogmática de um cristão puro.
Rosa de Lima , Salvador | 04/02/2021 às 10:06
Livro de Guy Veloso
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   Há várias maneiras de descrever o caminho de Santiago entre Saint-Jean-Pied-de-Port, França, até Santiago de Compostela, passando por 4 comunidades autônomas da Espanha - Navarra, Castela, Aragão e Leon - até chegar a Galiza, Norte da Espanha, a terra onde teria ocorrido uma chuva de estrelas e um pastor de ovelhas de nome Pelágio encontrou no campo dessas estrelas uma arca onde se encontrava o corpo degolado do apóstolo São Tiago (em português), saint Jaques, em francês, o Santiago do campo das estrelas (a compostela) dos espanhóis admirado e adorado por milhões de peregrinos que fazem essa travessia (800 km) desde o século IX até os dias atuais. Há outras trilhas (caminhos), porém, esse arriba é o tradicional, o chamado caminho francês.

  Existem várias trilhas na Europa tendo como destino final Santiago de Compostela: o caminho Aragonês, o Caminho Português (sai do Porto até Santiago, com 400 km), o Caminho Inglês, e cada peregrino opta pelo que deseja e é capaz de realizar.

  Comento, sobre um chavão, um lugar comum repetitivo muito citado nesse caminho tradicional dando conta da seguinte pergunta ou questionamento: o que faz uma pessoa largar tudo - família, amigos, trabalho, etc - e percorrer a pé essa rota medieval que um dia também foi percorrida por São Francisco de Assis, por Santa Isabel de Portugal (uma rainha que fez o caminho vestida e se comportando como mendiga) e muitos outros cristãos e personalidades da música, da literatura, do cinema, e também as pessoas comuns?

  Não há uma resposta para essa pergunta. Ou melhor, existem várias respostas porque o comportamento das pessoas é variável. Alguns fazem o caminho pelo sentido da aventura; outros, pela cultura; muitos por fé cristã - a consolidação ou confirmação dessa fé; outros por turismo; outros para ganhar dinheiro escrevendo um livro ou produzindo um video. Enfim, há muitas respostas.

  Também não é necessário largar tudo como se fosse percorrer uma trilha do sem fim. Os caminhos de Santiago têm início e fim e variam de tempo a depender da quantidade de quilômetros escolhida, o que significa entre 15 e 35 dias, no máximo. Para uma pessoa idosa os 800 km podem representar 60 dias. São 34 paradas estratégicas em locais com albergues públicos e privados para acolher os peregrinos e há pessoas com bom preparo físico que percorrem o caminho francês em 30 dias. Portanto, a expressão "largar tudo para fazer o caminho" é exagerada. Tem sentido parcial. Claro que se você se dispõe a realizar o caminho deve "largar tudo" no sentido de desvincular-se de sua vida normal, por 20 a 30 dias, usar um bermudão e desligar-se do que faz, tradicionalmente.

  Comento, hoje, neste BJÁ, o livro "Via Láctea - pelos caminhos de Santiago de Compostela", por Guy Veloso (Sedna Editora, 190 páginas, SP, R$35,00 - nos portais - recomendado pela Associação dos Amigos do Caminho de Santiago - Brasil) trilha percorrida em 1993 (caminho francês) primeira edição publicada em 1999, segunda edição de 2007, livro de um jovem advogado, documentarista e fotógrafo, espírito aventureiro, que é uma dessas pessoas que começam a fazer o caminho sem saber exatamente porque e de repente está envolvido e apaixonado pela trilha, pelos lugares, pelos peregrinos, pelo aconchego, pelo inesperado e até por um encontro com Deus.

  O título do livro "Via Láctea" se relaciona ao fato de que os peregrinos medievais seguiam a rota no Norte da Espanha orientados pela rota (as estrelas) da Via Láctea numa época em que ainda se acampava nas florestas com o perigo de serem atacados por lobos ou cães selvagens, banhava-se nos rios, existiam poucos albergues e casas hospitalares e muitos peregrinos morriam durante o percursos. As estrelas indicavam a direção no sentido Sul/Norte até Santiago de Compostela. Hoje, as rotas são sinalizadas com marcas em conchas (um dos símbolos de Santiago), há hospedarias em todos os pueblos e cidades maiores, o GPS pode orientar sua trilha, há wifis em muitos desses locais, hospitais, clínicas médicas e templo religiosos abertos.

  Ainda assim é precisa ter cautela, organizar-se para a trilha e obedecer às regras da natureza. Guy Veloso em seu "Via Láctea" é um exemplo de um peregrino jovem, de ótimo preparo físico, intrépido, ousado, capaz de num dia apenas percorrer 30 km com uma mochila nas costas. Não é uma exceção porque muitos outros jovens como ele fazem a mesma coisa; mas também não é a regra a ser seguida porque uma grande parte dos peregrinos tem média a alta idade e a parcimônia, a cautela é mais recomendada.

  Guy embora tenha feito o caminho quase num tempo recorde teve o cuidado de oferecer aos seus leitores alguns dados da cultura dos povos por onde passou (Nájera, cidade fundada pelos muçulmanos com um terreno rochoso cheio de covas naturais tomada pelos cristãos em 923, conserva o nome árabe) e disse que "mergulhado nas tradições peregrinas, eu era muitas vezes transportado para a Idade Média e, lá, levantado residência". 

  Isso faz com que seu livro seja agradável de ser lido, pois não representa apenas um guia de uma trilha com marcações apenas quilométricas, do tipo ande por aqui, siga por acolá, descanse em tal local, e vai dando detalhes de suas observações pessoas e dos locais onde passa (Viloria, aldeia em que nasceu Santo Domingo de la Calzada) o que prende o leitor  apontando um maior interesse pela obra. San Juan de Ortega é mais um dos pueblos percorridos e o autor detalha que se trata de um santo engenheiro onde assistiu a uma missa ao lado da tumba do santo com pregação de dom José Alonso e depois compartilhou o pão, jantar peregrino numa hospedaria. 

  Assim como há diferentes roteiros para o caminho de Santiago; há várias interpretações. Apreciei bastante a descrição de Ruy Veloso sobretudo por não representar uma visão dogmática de um cristão puro, muitas delas chatérrimas porque manifestam a intenção de incultir nos leitores suas visões sectárias do cristianismo, verdades em narrativas ficcionais, e ele deixa o leitor à vontade para interpretar seus conceitos. "Em um impulso irresistível. joguei-me ao solo, sem medo de sujar as roupas ou de irritar a pele já muito castigada pelo sol. Toquei naquele solo rugoso e encostei meu ouvido esquerdo no que parecia ser o centro da terra", relata num trecho da caminhada.

  Noutro: "Ao fim de uma esticada de 34 quilômetros, acudi à Vila de Acra. Como não havia nenhuma pensão, acabei alugando a cozinha de uma casa de família para a noite. Uma vez mais dormir ao solo já não era problema alguma". 

  Quando Ruy chegou a Santiago tinha 23 anos de idade naquele 13 de julho de 1993. Relato de um jovem: "Foram 37 dias e 800 quilômetros. Conheci pessoas e costumes diferentes. Desenvolvi a tolerância; vivi a liberdade. Apostei diariamente no imprevisível; fiquei perto da natureza. Fiz amigos, cultivei uma fazenda de bolhas nos pés, bebi muito vinho e andei mais feliz do que triste. Caí, sofri, cri e apaixonei-me algumas vezes. Aprendi que o mundo é bem maior do que imaginava; que ainda há muito a conhecer".

   Um dos livros mais interessantes que li sobre o Caminho, Via Láctea.